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O STF e os novos desdobramentos do caso Gradiente iPhone x iPhone

Que a decisão final da Suprema Corte privilegie a lógica sistemática do direito de marcas, de modo a não subverter princípios consagrados que orientam todo o sistema de marcas brasileiro, de modo a manter coerência intrínseca e extrínseca com o sistema posto.

8/8/2023

Our search for a better trademark law will require instead that we continue to imagine openly a more normative regime. I’m not sure I can really claim that the result will be a “truth.” Because trademark law is not really about truth. It’s about more than a single truth. And it is certainly about so much more than mere facts.1

A alteração de realidade fática no curso do processo administrativo de registro de marca deve ser responsável pela relativização de premissa conceitual estabelecida no direito de marcas brasileiro? Qual o valor atribuído à boa-fé procedimental? Essas e outras questões estão sendo debatidas na disputa judicial pela marca “iPhone” iniciada em 2013, com o ajuizamento de ação ordinária pela Apple requerendo a nulidade parcial do registro da marca mista “G Gradiente iPhone”, registro 822112175, em busca do registro da marca “iPhone”, para identificação do famoso smartphone da empresa estadunidense, até então negados pela Autarquia Federal, com base na marca anterior da empresa brasileira.

A controvérsia existe porque, em março de 2000, a Gradiente (IGB ELETRÔNICA SA), requereu, no INPI, o registro da marca “G GRADIENTE IPHONE”, na Classe NCL (7) 9, para identificar aparelhos telefônicos celulares. A marca em questão foi concedida após vários anos, em 02/01/2008. Ocorre que, ao mesmo tempo em que se aguardava a decisão do pedido de registro da Gradiente, a Apple lançava, em 2007, o seu primeiro modelo de iPhone nos Estados Unidos, sem registro de marca no Brasil.

No Primeiro Grau de Jurisdição, na Vara Federal do Rio de Janeiro, a Sentença foi no sentido de julgar procedente o pedido da Autora Apple, no sentido de “anular a decisa~o concesso'ria de registro e a republica'-la no O'rga~o Oficial, na forma do art. 175, §2º, da LPI, fazendo constar a ressalva quanto a` exclusividade sobre o termo “iphone” isoladamente, tal como empregado pela empresa Re', de modo que o respectivo registro figure como “concedido SEM EXCLUSIVIDADE SOBRE A PALAVRA IPHONE ISOLADAMENTE”. E, no TRF-2, a Apelação da Gradiente não obteve maior sucesso. O voto do Desembargador Federal Relator, Paulo Espírito Santo, manteve a decisão de primeiro grau, destacando as seguintes passagens da ementa:

“[...]

- E' indubita'vel que, quando os consumidores e o pro'prio mercado pensam em IPHONE, esta~o tratando do aparelho da APPLE.

- Permitir que a empresa Re' utilize a expressa~o IPHONE de uma forma livre, sem ressalvas, representaria imenso prejui'zo para a Autora, pois toda fama e clientela do produto decorreram de seu ni'vel de compete^ncia e grau de excele^ncia. A pulverizac¸a~o da marca, neste momento, equivaleria a uma punic¸a~o para aquele que desenvolveu e trabalhou pelo sucesso do produto. - Na~o ha' que se falar em "inovac¸a~o" ou "subversa~o" do sistema atributivo do direito, uma vez que o apostilamento de elemento marca'rio deve ser utilizado relativamente a`queles elementos nominativos que seriam, isoladamente, irregistra'veis, na medida em que guardam relac¸a~o direta e/ou necessa'ria com o segmento mercadolo'gico que a marca visa distinguir. Intelige^ncia do artigo 124, VI, da LPI.

- O apostilamento determinado na sentenc¸a, diz respeito ta~o somente a` proibic¸a~o pela empresa apelante de se valer do termo "IPHONE", de forma isolada, uma vez que este encontra-se estritamente vinculado, tanto no mercado nacional como no internacional, aos produtos da ora apelada.”

Como já era esperado, a empresa nacional recorreu da decisão, com interposição de Recurso Especial (REsp 1688243) na origem, ao Supremo Tribunal Federal, e Recurso Extraordinário com Agravo ao Superior Tribunal de Justiça (ARE 1266095). O principal argumento da Gradiente é que a expressão com o “i” é meramente indicativa de acesso à internet e que a anulação do seu registro se deu em razão do sucesso do produto da Apple, e não pela lei, no que dispõe sobre o sistema atributivo de direitos. Ressaltou, ainda, que depositou a sua marca “G Gradiente iPhone” antes do próprio lançamento do produto da Apple, já havendo expectativa de direito sobre o registro anteriormente ao reconhecimento sobre o produto da Concorrente, explicando que deixou de usar a marca por certo período, mas retornou dentro do prazo legal.

No Recurso Especial dirigido ao STJ, em 2018, a 4ª Turma do STJ, sob relatoria do Ministro Luiz Felipe Salomão, decidiu que a Gradiente não tem exclusividade sobre a marca iPhone, afirmando que o direito de uso exclusivo da marca não é absoluto, havendo dois princi'pios que limitam tal protec¸a~o, quais sejam: o princi'pio da especialidade (ou especificidade) e o princi'pio da territorialidade. A Decisão pendeu para o lado da possibilidade de coexistência de marcas idênticas, com baixo grau de distintividade, no sentido de que o elemento secundário da marca “G Gradiente iPhone”, o termo “iPhone”, é termo evocativo constituído pela aglutinação dos substantivos ingleses “internet” e “phone”, sendo marca mista que sugere característica do produto a ser protegido. E, assim, a Gradiente precisaria conviver com o bônus e o ônus de ter uma marca evocativa, ou seja, precisaria conviver com outros titulares com o mesmo termo marcário.

Ainda, o Voto foi no sentido de vangloriar os investimentos publicitários feitos pela Apple ao disseminar a marca “iPhone”, com a seguinte passagem na ementa: “Diferentemente do que ocorreu com a IGB, a Apple, com extrema habilidade, conseguiu, desde 2007, incrementar o grau de distintividade da expressa~o "iPhone" (originariamente evocativa), cuja indiscuti'vel notoriedade nos dias atuais tem o conda~o de alc¸a'-la a` categoria de marca noto'ria (excec¸a~o ao princi'pio da territorialidade) e, quic¸a', de alto renome (excec¸a~o ao princi'pio da especificidade)”. Ou seja, foi reconhecida a ocorrência de secondary meaning à marca da Apple e, portanto, a possibilidade de uso do sinal em apartado de qualquer complemento nominativo, bem como foi possibilitada a manutenção do uso do sinal “G Gradiente iPhone” pela Gradiente, por ter registrado a marca precedentemente, ficando afastada a exclusividade de uso da expressão “iPhone” de forma isolada pela empresa brasileira. Houve voto divergente, que foi vencido.

No STF, a demanda foi inicialmente encaminhada ao Centro de Conciliação e Mediação do STF, mas terminou sem acordo entre as partes. Seguiu-se, então, para a análise e decisão dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, cujo início se deu no dia 02 de junho, se estendendo, a princípio, até o dia 12 de junho. Entretanto, no dia 09 de junho, o Ministro Alexandre de Moraes pediu vista dos autos do julgamento, adiando uma decisão esperada. Antes do pedido de vista, os Ministros Dias Toffoli, Luiz Fux e Luís Roberto Barroso já haviam votado. Após a paralisação, o Ministro Gilmar Mendes antecipou o seu posicionamento, em favor do relator, estando os votos em empate, 2X2. Os Ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes votaram no sentido de reformar o acórdão do TRF-2, já os Ministros Luiz Fux e Luís Roberto Barroso votaram para manter a decisão do TRF-2. O voto do Ministro Alexandre de Moraes é aguardado para, finalmente, pôr fim a esta demanda que se prolonga por mais de 10 anos.

A corrente do Relator vai no sentido de reforma do Acórdão do TRF-2, ficando estabelecida tese segundo a qual a precedência de deposito de pedido de concessão de registro de marca não é afetada por uso posterior de mesmo sinal distintivo por terceiros no Brasil ou no exterior, uma vez que, considerando o sistema atributivo de direitos que segue o Brasil e, ainda, considerando linha de tempo dos pedidos de registro, a Gradiente ocupou, nas palavras do Ministro, com primazia, o espaço para utilização exclusiva da expressão “Gradiente iPhone”. Ou seja, ninguém, nem mesmo a Apple, poderia “furar a fila” de anterioridade, mesmo que tenha feito uso da marca alheia depois do depósito do pedido originário. Frise-se que trata-se do princípio do “primeiro a requerer” consagrado no direito brasileiro e que encontra exceções lastreadas apenas na situação de uso anterior de boa-fé por terceiros ou em circunstâncias comprovadas de requerimento de pedido de registro maculado pela má-fé.

E, ainda, diante do cenário de silêncio da Apple durante o período de 05 anos da concessão do registro da Gradiente até o final do prazo prescricional, mas com constante uso da marca de terceiro, sem registro próprio, o Ministro Relator entendeu como irretocável a atuação do INPI no caso, não apenas em razão da motivação dos seus atos, considerada a realidade vivenciada no momento de decisão, mas também diante do comportamento da empresa estadunidense. O Ministro Relator ainda votou no sentido de não reconhecer o secondary meaning da marca iPhone, da Apple, que pudesse embasar qualquer pretensão da autora de invalidar o ato do INPI, porque, à época do pedido de registro da Gradiente, o iPhone da Apple sequer havia sido lançado.

O voto divergente inaugural se deu por parte do Ministro Luiz Fux e foi no sentido contrário a obedecer a prioridade de registro da Gradiente sobre a marca “iPhone”, por entender que o direito de exclusividade sobre a marca não é absoluto, sendo necessário observar as alterações do mercado durante o processo de registro da marca “Gradiente iPhone”, sob pena de “comprometer o próprio interesse social do instituto da propriedade intelectual, vez que se estaria premiando o agente econômico que se manteve inerte por estar protegido pela morosidade no processo de análise da autarquia”. O Ministro Luís Roberto Barroso, além de votar, preliminarmente, por não admitir o recurso extraordinário e cancelar a repercussão geral, por entender que o tema “possui caráter estritamente patrimonial”, no mérito, manteve o acórdão do TRF-2. O Ministro entende que a resposta dada à demanda pelos tribunais de origem é a que melhor resolve a situação: não se afasta o direito de anterioridade da Gradiente, mas afasta o uso exclusivo do elemento secundário que compõe a marca registrada, ou seja, mantém hígido e eficaz o registro na exata extensão que foi requerido, tendo em vista a vinculação do termo isolado “iPhone” ao produto fabricado por sua Concorrente.

Fato é que a questão é complexa e foi bem estabelecida a necessária repercussão geral (Tema n. 1205 da Suprema Corte). Por um lado, há a questão fática inquestionável envolvendo todo o reconhecimento, prestígio e divulgação da marca “iPhone” pela Apple. Para fins de exame dos requisitos necessários para concessão de um registro de marca e, também, para formação de anterioridade, a data a ser considerada é do depósito, e não da concessão, bem como os fatos analisados para concessão de um registro não devem ser aqueles visualizados no momento de decisão do deferimento, e sim do cenário anterior no momento do depósito. A demora na concessão de um registro de marca não pode ser baliza para negar provimento a registro de marca por posterior uso de terceiro, mesmo que de forma mais constante e maciça. 

O INPI não errou ao conceder o registro da marca mista “G Gradiente iPhone” em 2007 sem apostilamento, porque sequer o termo “iPhone” era descritivo à época, muito menos comum, estando apenas iniciando a comercialização de smartphones no Brasil. E, se não errou o INPI ao deferir a marca mista “G Gradiente iPhone” sem apostilamento em 2007, não há base para o pedido de nulidade parcial do registro pela Apple em 2013. A Apple só veio a lançar o seu produto no mercado brasileiro em 2008, realizando pedido de registro para sua marca própria, mas sem interpor Pedido de Nulidade Administrativa ao registro concedido da Gradiente, mantendo-se silente sobre o caso até quase vencer o prazo prescricional para ingresso de ação judicial anulatória do ato do INPI, em 2013, quando, de fato, a marca “iPhone” já era comumente associada à empresa estadunidense, associação que só cresce aos olhos do público consumidor. A base para o seu pedido de Nulidade Parcial, excluindo a possibilidade de uso isolado do termo Iphone pela Gradiente, é justamente o seu quase unânime reconhecimento pelo público como titular da marca iPhone, termo que, em 2013, no momento do ingresso da ação judicial, já era distintivo para apenas um produto, o smartphone da empresa estadunidense.

Uma prejudicialidade externa/interna (dependendo da perspectiva) consistente em fato relativamente novo que envolve o caso é o reconhecimento da insuficiência de prova de uso da marca G Gradiente iPhone pela Gradiente (ou, ainda, prova de uso viciada pela intenção da Gradiente em manter ativo o registro com finalidade unicamente de opor o mesmo contra a Apple), conforme sentença lançada pela 13ª Vara Federal do Rio de Janeiro em 2022 (processo º 0121438-67.2013.4.02.5101), pendente de decisão da apelação interposta.

E aqui vai uma crítica (que já realizamos em inúmeras oportunidades pregressas) ao nosso sistema brasileiro que privilegia o primeiro a requerer (first to file) ao invés do sistema estadunidense baseado no primeiro a usar (first to use): o sistema concorrencial deve atentar para a racionalidade de que sinais distintivos apropriáveis/apropriados existem para serem usados e que do uso/posse nascem direitos. Ou seja, dentro do sistema brasileiro posto, correta a racionalidade e relevância do Tema n. 1205 do STF. Isso não significa que nosso direito marcário não possa/deva evoluir através de solução legislativa integradora para um sistema mais complexo baseado no uso como premissa para interpretação da origem do direito sobre determinado sinal distintivo. Mas, frisamos, esse não é o sistema posto e as exceções à regra do primeiro a requerer a marca são explícitas e taxativas em nosso ordenamento jurídico, em especial na lógica da Lei 9279/96.

Que a decisão final da Suprema Corte privilegie a lógica sistemática do direito de marcas, de modo a não subverter princípios consagrados que orientam todo o sistema de marcas brasileiro, de modo a manter coerência intrínseca e extrínseca com o sistema posto.

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1 Dinwoodie, Graeme B., Trademark Law as a Normative Project. 01/02/2023. Disponível em SSRN: https://ssrn.com/abstract=4344834, p. 29. 

Daniela Lopes Ferreira
Advogada na Leão Propriedade Intelectual. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Cursando Especialização em Direito da Propriedade Intelectual na Pontifícia Universidade do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

Milton Lucídio Leão Barcellos
Advogado e Agente da Propriedade Industrial sócio da Leão Propriedade Intelectual. Mestre e Doutor em Direito pela PUCRS. Especialista em Direito Internacional pela UFRGS. Professor e Pesquisador.

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