A Emenda Constitucional 45/04, também conhecida como Reforma do Judiciário, que se aproxima de 20 anos de vigência, introduziu importantes inovações ao Sistema de Justiça do Brasil, tais como: a criação do Conselho Nacional da Justiça, que se consolidou, alcançou reconhecimento e legitimidade (social, política e jurídica); a Súmula Vinculante – SV; e a repercussão geral nos Recursos Extraordinários – REXT.
As súmulas vinculantes são enunciados sintetizadores do entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal – STF, a respeito de questões constitucionais, que se impõem a todas as instâncias do Poder Judiciário, alcançando a Administração Pública direta e indireta, obrigando sua aplicação, afim de garantir maior celeridade, segurança jurídica e uniformidade interpretativa no direito brasileiro.
Para o direito administrativo, destaca-se:
SÚMULA VINCULANTE 3: Nos processos perante o Tribunal de Contas da União asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão.
SÚMULA VINCULANTE 5: A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição.
SÚMULA VINCULANTE 13: A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.
SÚMULA VINCULANTE 21: É inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento prévios de dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso administrativo.
SÚMULA VINCULANTE 37: Não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob o fundamento de isonomia.
SÚMULA VINCULANTE 42: É inconstitucional a vinculação do reajuste de vencimentos de servidores estaduais ou municipais a índices federais de correção monetária.
SÚMULA VINCULANTE 43: É inconstitucional toda modalidade de provimento que propicie ao servidor investir-se, sem prévia aprovação em concurso público destinado ao seu provimento, em cargo que não integra a carreira na qual anteriormente investido.
São 59 Súmulas Vinculantes no total, sendo que a primeira foi editada em 2007 e a última em 2023.
Entretanto, em análise panorâmica, nota-se que o instituto vem perdendo fôlego. À guisa de exemplificação, em 2015 foram editadas 16 Súmulas Vinculantes e em 2016 apenas três (SV’s 54, 55 e 56). Depois de um lapso temporal sem edição de novas SV’s duas foram editadas em 2020 (SV’s 57 e 58), e somente de 2023 mais uma foi aprovada pelo plenário do STF (SV 59).
A principal causa disso é a utilização dinâmica da repercussão geral, instituto associado aos Recursos Extraordinários apresentados ao STF, que, por intermédio de temas analisados e teses proferidas nos denominados “recursos paradigmas” passam a ser replicadas pelas instâncias inferiores.
A repercussão geral é, efetivamente, um filtro ao qual se submetem os Recursos Extraordinários. Portanto, o recorrente precisa demonstrar à Corte Suprema a relevância jurídica, política, social ou econômica do tema, além do impacto geral para casos semelhantes (presentes e futuros). Em tal contexto, o STF julga a questão e torna a decisão vinculante para todos os tribunais e juízes brasileiros, mas não alcançaria, como as Súmulas Vinculantes, a Administração Pública, por exemplo.
A repercussão geral também está inserida no contexto de necessidade de redução das demandas levadas à análise do STF, além da promoção de uniformização jurisprudencial. Sua utilização, a partir de 2007, revelou as vantagens do “efeito multiplicador”, tornando desnecessários julgamentos múltiplos em casos idênticos, sobre uma mesma temática constitucional.
É do julgamento de mérito dos recursos extraordinários que surgem as teses. Constituem-se em proposições firmadas nos julgamentos de mérito dos “recursos paradigmas”, que na operabilidade do “efeito multiplicador” projeta-se que sejam aplicadas aos casos semelhantes, em todas as instâncias judiciais brasileiras, promovendo, além da redução de demandas, eficiência na prestação jurisdicional e segurança jurídica.
No campo administrativista, o STF tem avançado significativamente no uso da repercussão geral para analisar e estabelecer a adequada interpretação constitucional em temáticas diversificadas, mas que impactam decisivamente nos processos que envolvem a Administração Pública lato sensu.
Nos últimos dois meses de 2023, podem ser destacados três julgados:
1) No Recurso Extraordinário – RE 1426306, considerado com leading case (recurso paradigma) pela relatoria da ministra Rosa Weber, discutiu-se a possibilidade de uma servidora estadual do Tocantins, que alcançou a “estabilidade excepcional”, reconhecida pelo art. 19 do ADCT, da Constituição Federal de 1988 – CF/1988, ser mantida no regime próprio de previdência estadual - RPPS, pelo qual se aposentou. A fundamentação seria baseada em legislação estadual tocantinense (Lei 1.246/2001), garantidora de aposentadoria por tempo de contribuição, com proventos integrais e paridade pelo RPPS.
Na ocasião, o STF reconheceu que se tratava de questão constitucional relevante e que estava configurada a repercussão geral, definindo-o como Tema 1254, sob o título: “Regime previdenciário aplicável aos servidores estabilizados pelo art. 19 do ADCT não efetivados por concurso público, se o regime próprio de previdência do Estado a que vinculado o servidor ou se o regime geral de previdência social”.
No julgamento de mérito, o STF reafirmou sua jurisprudência que diferencia a “estabilidade excepcional”, conferida pelo ADCT aos servidores sem concurso, da "efetividade" que somente é alcançada via concurso público, pelo que fixou a Tese: “Somente os servidores públicos civis detentores de cargo efetivo (art. 40, CF, na redação dada pela EC 20/98) são vinculados ao regime próprio de previdência social, a excluir os estáveis nos termos do art. 19 do ADCT e os demais servidores admitidos sem concurso público”.
2) Em outro recurso paradigma, o RE 910552, sob a relatoria da ministra Carmem Lucia, discutiu-se à luz de dispositivos constitucionais (Arts. 30, 37 e 61 da CF/1988) se a Lei Orgânica de um Município mineiro poderia vedar contratações públicas com prefeito, vice-prefeito, vereadores, servidores públicos e com pessoas ligadas a qualquer deles, seja por matrimônio ou parentesco (afim ou consanguíneo), até o terceiro grau, e mesmo por adoção, tomando como fundamento àquele utilizado para a edição da Súmula Vinculante 13.
O título do Tema 1001 ficou assim definido: “Limites da competência legislativa municipal em matéria de contratação pública e âmbito de incidência da vedação constitucional ao nepotismo (restrita à contratação de mão de obra pela Administração Pública ou extensiva à celebração de contratos administrativos)”.
Ainda em 2018, o STF reputou constitucional e reconheceu a repercussão geral da matéria. Durante a votação, encerrada apenas em 2023, surgiram três propostas de tese. A relatora assim concebeu o texto: "É constitucional a norma municipal pela qual proibida a participação em licitação ou em execução de contratos de parentes, até terceiro grau, de Prefeito, Vice-Prefeito, Vereadores e de servidores públicos municipais, editada no exercício de competência legislativa suplementar municipal e editada com o objetivo de dotar de máxima eficácia os princípios da impessoalidade, da igualdade e da moralidade administrativa".
Houve divergência inaugurada pelos ministros Luiz Roberto Barroso e Alexandre de Moraes, que apresentaram outras propostas de tese, tendo prevalecido a seguinte: “É constitucional o ato normativo municipal, editado no exercício de competência legislativa suplementar, que proíba a participação em licitação ou a contratação: (a) de agentes eletivos; (b) de ocupantes de cargo em comissão ou função de confiança; (c) de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, de qualquer destes; e (d) dos demais servidores públicos municipais”.
Nesse caso, ao mesmo tempo que reafirmou o teor da Súmula Vinculante 13, o STF admitiu que os Municípios têm a competência de ampliar vedações de condutas que firam aos princípios constitucionais, especialmente da moralidade e da impessoalidade. Entendeu que nem todos os servidores públicos geram para seus cônjuges, companheiros e parentes a proibição de contratar com a Administração Pública, mas apenas aqueles que ocupem cargos em comissão ou funções de confiança.
3) Por fim, no RE 1428399, relatado pela ministra Rosa Weber, discute a possibilidade de retirar das diferenças de valores do FUNDEB, recebidos por intermédio da atuação de advogados, o pagamento de honorários profissionais. A base constitucional da análise encontra-se nos artigos 133 e 205 da Constituição Federal e art. 60 do ADCT.
O Tema 1256, recebeu como título: “Pagamento de honorários advocatícios contratuais por meio de retenção de valores destinados ao FUNDEF/FUNDEB (principal e juros de mora), obtidos em ação judicial”. O STF confirmou a impossibilidade de pagamento, com recursos do próprio fundo, de advogados que atuaram em causas de cobrança das diferenças do Fundeb, contudo, admitiu que os valores auferidos por juros de mora, incidentes sobre o precatório devido pela União, sejam utilizados, por entender que possuem natureza jurídica autônoma, portanto, sem vinculação com os investimentos vinculados, constitucionalmente, à educação e ensino.
A Tese ficou assim fixada: “1. É inconstitucional o emprego de verbas do Fundef/Fundeb para pagamento de honorários advocatícios contratuais. 2. É possível a utilização dos juros de mora inseridos na condenação relativa a repasses de verba do Fundef para pagamento dos honorários contratuais”.
Apesar dos efeitos da Repercussão Geral não se equipararem com as “poderosas” Súmulas Vinculantes, na prática, não se restringem ao campo jurisdicional.
Não se pode admitir que órgãos da Administração Pública, seja direta ou indireta, da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, com a devida assessoria jurídica de suas procuradorias ou advocacias-gerais, ignorem uma decisão judicial originada do STF, sobre determinada matéria que repercute nas atividades da gestão pública, apenas por não estarem classificadas como Súmulas Vinculantes. Até pela lógica de que, havendo judicialização, já na primeira instância a tese será mantida, a não ser que se pretenda alterar a tese por intermédio do reconhecimento de um novo recurso paradigma.