Migalhas de Peso

Por que o setor de serviços deve ficar fora da reforma tributária

Tratar igualmente setores diferentes é afrontar o princípio da isonomia tributária.

7/8/2023

O substitutivo da PEC 45/19 aprovado pela Câmara dos Deputados deve ser revisto pelo Senado Federal.

Primeiramente, porque a proposta apresentada pelo relator da reforma tributária, Deputado Aguinaldo Ribeiro, não deu conhecimento prévio à população em geral do inteiro teor da proposta. Nem mesmo os Deputados tiveram conhecimento das “emendas aglutinativas” que foram sendo apresentadas durante a discussão da proposta.

Com tamanha rapidez impingida à proposta em discussão, tudo deixando para a lei complementar preencher os imensos vazios existentes, é natural que as imperfeições não tenham sido sanadas.

Em segundo lugar, a reforma aprovada pela Câmara fere de morte o princípio federativo.

O Estado Federal Brasileiro é o único no mundo com características peculiares inexistentes nos outros países de forma federativa, onde os municípios aparecem como meras circunscrições administrativas dos Estados ou das Províncias.

No Brasil a Federação foi formada de forma centrífuga, isto é, a partir da fragmentação das províncias, pelo que o poder central restou fortalecido, ao contrário dos Estados Unidos onde a federação foi formada de fora para dentro em um movimento centrípeto, razão pela qual os Estados lá mantêm a maior parcela de poder.

A nossa Federação é horizontalizada. União, Estados e Municípios são entidades políticas juridicamente pacificadas com previsão de suas atribuições privativas na Constituição Federal. Como se verifica dos artigos 21 e 22 da CF o poder da União é muito grande, disso resultando maior poder de tributação, fazendo com que a União fique com a maior parcela do bolo tributário.

Cada entidade política detém o seu poder tributário. Daí a discriminação de impostos (arts. 153, 155 e 156 da CF). Daí, também, o regime de partilha do produto de arrecadação do IPI/IR (art. 159 da CF) não só para compensar a maior fatia do bolo tributário que coube ao ente central, como também para socorrer os Estados e Municípios economicamente fracos (Norte, Nordeste e Centro-Oeste).

Sem ter em vista essas características de um País de dimensão continental (5º maior país em termos de extensão territorial), e a peculiaridade de nossa Federação que torna inadequado qualquer modelo tributário importado, notadamente, da Europa, não se pode projetar uma reforma tributária de forma válida.

O sistema tributário é um microssistema jurídico inserto dentro do Sistema Jurídico Global que é a Constituição.

Nenhum ramo do Direito acha-se tão imbricado com o Direito Constitucional como o Direito Tributário. São inúmeros os princípios constitucionais tributários, todos protegidos por cláusula pétrea, que limitam o poder de tributar.

O Sistema Tributário há de harmonizar-se com os princípios constitucionais tributários.

Na proposta aprovada pela Câmara faltou a mão do jurista para ajustar a reforma ao figurino constitucional.

O tipo do imposto previsto sob o nome de IBS, com a não-cumulatividade plena, não é adequado para o setor de serviços, onde não há etapas de prestação de serviços, como acontece no setor industrial e no setor comercial, onde há no mínimo três etapas de circulação desde a fonte produtora até o consumidor final. Tratar igualmente setores diferentes é afrontar o princípio da isonomia tributária.

Por isso esse setor deve ficar de fora da reforma tributária, continuando os municípios com o ISS na forma vigente.

Com isso se corrigiria a terrível distorção que o IBS causa na área de serviços que representa 70% do PIB, de um lado, e de outro lado haveria  respeito ao princípio federativo protegido em nível de cláusula pétrea (art. 60, § 4º, I da CF). Arruinar o único setor da economia que está dando certo não é o caminho.

Deixando o Município fora dessa reforma, o Estado teria a sua competência privativa preservada. A estranha e complexa figura do Conselho Federativo, problemático desde a sua composição até a sua operacionalização em regime de condomínio Estados/Municípios, igualmente, desapareceria.

Assim as sociedades de profissões legalmente regulamentadas continuariam com o regime especial de tributação previsto pelo Decreto-lei nº 406/68, recepcionado pela Constituição de 1988, respeitando-se o escopo político-social relevante dessas sociedades reconhecido pelo legislador de 1968.

Outra alternativa seria submeter o IBS à tributação pelas três entidades políticas, porém, fixando para os Municípios uma alíquota máxima de 5% que vigora no sistema atual e que vem propiciando arrecadação suficiente.

Isso simplificaria o sistema tributário para os contribuintes que passariam a lidar com um único imposto com o mesmo fato gerador, a mesma base de cálculo e os mesmos contribuintes.

Por fim, o IBS deve-se denominar Imposto Sobre Circulação de Bens e Serviços, a fim de aproveitar o conceito de Circulação de Mercadorias (ICMS)  que levou exatos 23 anos para o STF fixar definitivamente o seu conceito no sentido de circulação jurídica, isto é, uma operação mercantil que envolve mudança de propriedade ou de posse. 

 

Kiyoshi Harada
Sócio do escritório Harada Advogados Associados. Especialista em Direito Tributário pela USP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário - IBEDAFT.

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