Escolhemos o Direito por vislumbrarmos uma sociedade melhor por seu intermédio, por não nos conformarmos com as injustiças, por nos sentirmos impulsionados a, mediante a aplicação correta da lei, impedir a exploração dos vulneráveis, a condenação dos inocentes e a penalização desmesurada dos culpados.
Muita gente tem no Direito o ganha-pão, mas não são muitos os que o exercem com devoção, com aquele encantamento apaixonado diante de um caso aparentemente menor, mas de flagrante injustiça e merecedor de minuciosa atenção.
Respeito ao cidadão, ao jurisdicionado, e consciência da própria função social, além da judicial, demonstrou a 22ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo em acórdão de 20 de julho último, especialmente o relator do caso em tela, desembargador Roberto Mac Cracken.
Em síntese, a 22ª Câmara reduziu a taxa de juros cobrada em um empréstimo contratado por 24% ao mês, 1.269,7% ao ano. Na época da contratação, a taxa média de mercado era de 4.54% ao mês. No acórdão, o desembargador Mac Cracken enumerou 50 decisões precedentes semelhantes. E fez bem mais do que isso ao expor o caráter socialmente deletério da conduta da instituição bancária emprestadora - um flagrante abuso.
O relator elaborou um acórdão, sobre uma causa de R$ 514,55 (sim, quinhentos e catorze reais e cinquenta e cinco centavos), que constitui verdadeira aula de Direito.
O juiz Mac Cracken escreveu que a cobrança dos juros contratuais “efetivamente atenta contra o princípio da função social do contrato” e que “o comportamento da instituição financeira credora viola o princípio da boa-fé objetiva com ofensa ao fundamento constitucional de proteção da dignidade da pessoa humana, tendo em vista que tal cobrança excessiva pode levar a pessoa natural à situação de penúria e miserabilidade”.
A lucidez, o saber jurídico e o cuidado redacional do desembargador nos faz acreditar que ainda há juízes nestas terras. Antes que os simplistas embandeirem-se do argumento da liberdade contratual, vale lembrar, como lembra Mac Cracken no acórdão, que o artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor define como prática abusiva “prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos e serviços”.
Mac Cracken ainda busca o saudoso professor Álvaro Villaça Azevedo, entre outros eminentes juristas, para embasar sua decisão: “Se a lei não estabelecer em seu texto um freio, no capítulo da liberdade contratual, o contrato será um meio de verdadeira opressão entre os homens, restando ao Judiciário um controle quase impossível, de difícil realização. Tudo porque, nessa liberdade os interesses humanos existem, teoricamente, em pé de igualdade, pois o mais forte, economicamente, reduzirá, na avença, a área do direito do mais fraco, que resta sem proteção jurídica no momento em que o contrato surge”.
Não vamos aqui demonizar as instituições bancárias, fundamentais para o andar da economia no mundo capitalista. Porém, é preciso ficar claro que o setor financeiro, cujos lucros ignoram quaisquer crises, não pode utilizar seu enorme poder como ferramenta para escorchar cidadãos vulneráveis. É disso que fala a decisão da 22ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, pela pena do desembargador Roberto Mac Cracken.