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A desnecessária assinatura de duas testemunhas em título executivo firmado por meio digital

A verdade é que nem o Código Civil, nem o Código de Processo Civil se mostravam totalmente permeáveis à realidade negocial vigente e, especialmente, à revolução tecnológica que tem sido experienciada no que toca aos modernos meios de celebração de negócios.

25/7/2023

Ao método usado pelo Poder Judiciário para definir a situação jurídica litigiosa dá-se o nome de processo de conhecimento; e ao utilizado para satisfação forçada da obrigação inadimplida pelo devedor, atribui-se a denominação de processo de execução. A instauração do processo, tanto de conhecimento como de execução, é provocada pela parte interessada por meio do exercício do direito de ação - direito à prestação jurisdicional - que se especializa em ação cognitiva, quando se busca a sentença, e ação executiva, quando são os atos de satisfação material o que se pretende da jurisdição1.

Deste modo, se uma parte não detém título executivo e pretende o reconhecimento de determinada obrigação deverá buscar seu direito por meio do processo de conhecimento e, se procedente o pedido, caso o devedor não cumpra a sentença, é que a parte poderá buscar a satisfação do direito pela via executiva, ou seja, ser detentor de título executivo, judicial ou extrajudicial, é que dá o direito da parte de buscar a do Poder Judiciário a satisfação do direito.

A ação executória sempre se baseará no título executivo. Célebre metáfora ao título designou de “bilhete de ingresso”, ostentado pelo credor para acudir ao procedimento in executivis2.

Para se ter o uso do processo de execução é, portanto, essencial a presença de título executivo que decorre, necessariamente, da lei. Somente é considerado título executivo o documento que o legislador deu essa característica. Um processo que tem início para aquele fim a partir da apresentação daquele título ao Estado-juiz que, bem entendido, marca as atividades executivas a serem desempenhadas no exercício da função jurisdicional. Não é por outra razão, aliás, que sua apresentação é exigência feita desde a petição inicial (art. 798, I, a, CPC)3.

O ordenamento jurídico prevê dois tipos de títulos executivos, quais sejam, os judiciais e os extrajudiciais. Os títulos executivos extrajudiciais são os definidos como tal, de forma expressa, em lei, sendo o critério meramente legislativo, estando os principais tipos de títulos executivos extrajudiciais descritos no art. 784 do Código de Processo Civil, com demais títulos descritos em leis específicas.

O título executivo pode ser judicial ou extrajudicial.

No caso de o credor deter título executivo judicial, deverá perseguir a satisfação de seu direito mediante o procedimento de cumprimento de sentença, porém se deter título executivo extrajudicial, o procedimento será o do processo de execução. Como cada espécie de procedimento – cumprimento de sentença e processo de execução – possui peculiaridades próprias, porém em ambos há aplicação de regras comuns (art. 711, CPC).

(Imagem: Divulgação)

Outrossim, importante reiterar que tanto o cumprimento de sentença quanto o processo de execução buscam a satisfação de uma determinada obrigação consubstanciada em título executivo, judicial ou extrajudicial, respectivamente, e que em ambas as formas há possibilidade que essa obrigação seja da espécie: (i) de pagar quantia; (ii) de entrega de coisa; (iii) de fazer ou; (iv) de não fazer; (v) de alimentos e (vi) contra a Fazenda Pública.

O art. 783 desta lei traz a necessidade de fundamento em obrigação certa, líquida e exigível. Para iniciar a ação executória, é requisito que ocorra a apresentação do título em questão já na petição inicial, nos termos do art. 798, inciso I, do CPC, uma vez que esta ação se baseia na existência do título executivo.

Assim, o Brasil adota o princípio da tipicidade dos títulos executivos, cujo rol está expresso na lei, por critério meramente legislativo, sendo que os principais títulos estão previstos no Código de Processo Civil, porém há títulos executivos que estão previstos em leis extravagantes como, por exemplo, as cédulas de crédito rural (decreto-lei 167/67), industrial (decreto-lei  413/69) e comercial (lei 6.840/80 c.c. decreto-lei 413/69); os créditos dos órgãos de controle de exercício de profissão (lei 6.206/75), o boletim de subscrição de ação de sociedade anônima (art. 107, I, lei 6.404/76) etc. (art. 784, XII, CPC).

a) Títulos executivos judiciais: I - as decisões proferidas no processo civil que reconheçam a exigibilidade de obrigação de pagar quantia, de fazer, de não fazer ou de entregar coisa; II - a decisão homologatória de autocomposição judicial; III - a decisão homologatória de autocomposição extrajudicial de qualquer natureza; IV - o formal e a certidão de partilha, exclusivamente em relação ao inventariante, aos herdeiros e aos sucessores a título singular ou universal; V - o crédito de auxiliar da justiça, quando as custas, emolumentos ou honorários tiverem sido aprovados por decisão judicial; VI - a sentença penal condenatória transitada em julgado; VII - a sentença arbitral; VIII - a sentença estrangeira homologada pelo Superior Tribunal de Justiça; IX - a decisão interlocutória estrangeira, após a concessão do exequatur à carta rogatória pelo Superior Tribunal de Justiça (art. 515, CPC).

b) Títulos executivos extrajudiciais: I - a letra de câmbio, a nota promissória, a duplicata, a debênture e o cheque; II - a escritura pública ou outro documento público assinado pelo devedor; III - o documento particular assinado pelo devedor e por 02 (duas) testemunhas; IV - o instrumento de transação referendado pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública, pela Advocacia Pública, pelos advogados dos transatores ou por conciliador ou mediador credenciado por tribunal; V - o contrato garantido por hipoteca, penhor, anticrese ou outro direito real de garantia e aquele garantido por caução; VI - o contrato de seguro de vida em caso de morte; VII - o crédito decorrente de foro e laudêmio; VIII - o crédito, documentalmente comprovado, decorrente de aluguel de imóvel, bem como de encargos acessórios, tais como taxas e despesas de condomínio; IX - a certidão de dívida ativa da Fazenda Pública da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, correspondente aos créditos inscritos na forma da lei; X - o crédito referente às contribuições ordinárias ou extraordinárias de condomínio edilício, previstas na respectiva convenção ou aprovadas em assembleia geral, desde que documentalmente comprovadas; XI - a certidão expedida por serventia notarial ou de registro relativa a valores de emolumentos e demais despesas devidas pelos atos por ela praticados, fixados nas tabelas estabelecidas em lei; XII - todos os demais títulos aos quais, por disposição expressa, a lei atribuir força executiva (art. 784, CPC).

O rol descritivo do art. 784, CPC, contém, em seu inciso II, como título executivo extrajudicial, o documento particular assinado pelo devedor e por 02 (duas) testemunhas excluindo, portanto, o documento particular firmado pelo devedor sem as assinaturas de 02 (duas) testemunhas.

Deste modo, documento particular firmado pelo devedor, porém sem assinatura de 02 (duas) testemunhas, embora existente, valido e eficaz entre as partes contratantes, não é título executivo extrajudicial, pois o art. 784, II, do Código de Processo Civil, exige expressamente que o documento particular seja assinado por 02 (duas) testemunhas para assumir o caráter de título executivo. Tal documento é hábil a autorizar e fundamentar ação de cobrança ou monitória, mas não pode embasar o ora processo de execução.

As 02 (duas) testemunhas exigidas pelo art. 784, II, do CPC, não são as pessoas que devem depor sobre o que é de seu conhecimento, para a evidência de fatos em juízo, mas, sim, são estranhos ao negócio jurídico que assinam o instrumento juntamente com as partes, em garantia de que houve o ato tal como redigido, e que foi efetivamente por elas firmado. Denominam-se, por isto mesmo, testemunhas instrumentárias4, podendo, inclusive, serem interessadas no feito (STJ - AgInt nos EDcl no REsp: 1523436 MT 2015/0068116-0).

A jurisprudência firmou entendimento que as testemunhas exigidas no documento particular para ser considerado título executivo extrajudicial são instrumentárias e a sua ausência não configura nulidade do documento (TJ/DF 20090111355784 DF, 0135578-48.2009.8.07.0001), mas tão somente o descaracteriza como título executivo extrajudicial apto a instruir ação de execução.

Portanto, a ausência das testemunhas não implica que o negócio jurídico está maculado por falsidade ou inexigibilidade, e sim que o documento particular não será qualificado como título executivo extrajudicial, tendo o credor outros meios judiciais de buscar o cumprimento de seus termos, como ação de cobrança ou monitória.

Fato é que a pandemia acelerou a necessidade de trazer atos do mundo físico ao mundo digital, popularizando o uso da inovação e tecnologia para o cotidiano negocial.

O meio que permitiu este avanço não é novo e já estava previsto desde 2001 com a MP 2.200-2/01 que estabeleceu a possibilidade do uso de assinatura digital, através da instituição do ICP-Brasil, com a finalidade de trazer maior segurança jurídica para documentos e transações eletrônicas, entre outras funções. O ICP-Brasil emite certificados eletrônicos utilizados para assinatura digital e a utilização destes certificados confere à assinatura maior confiabilidade.

Os tipos de assinaturas eletrônicas estão classificados no art. 4º da lei 14.063/20, que distingue, de acordo com o formato, entre assinatura eletrônica simples, assinatura eletrônica avançada e assinatura eletrônica qualificada – aquela que utiliza certificado digital nos termos da MP 2.200-2/01.

Pela referida norma, os 03 (três) tipos de assinatura caracterizam o nível de confiança sobre a identidade e a manifestação de vontade de seu titular, e a assinatura eletrônica qualificada é a que possui nível mais elevado de confiabilidade a partir de suas normas, de seus padrões e de seus procedimentos específicos (art. 4º., §1º, lei 14.063/20).

Portanto, não resta dúvidas quanto a validade do negócio jurídico firmado por meio de assinatura eletrônica em conformidade com a lei 14.063/20 e a MP 2.200-2/01.

Todavia, a questão levantada neste ponto seria sobre a necessidade ou não da assinatura de 02 (duas) testemunhas em documento particular firmado pelo devedor por meio de assinatura eletrônica.

A verdade é que nem o Código Civil, nem o Código de Processo Civil se mostravam totalmente permeáveis à realidade negocial vigente e, especialmente, à revolução tecnológica que tem sido experienciada no que toca aos modernos meios de celebração de negócios. Eles não mais se servem do papel, valendo-se do mundo digital para celebração.

O problema que surgiu com as novas mídias, principalmente as eletrônicas e digitais, foi a dificuldade de colocar sobre os documentos eletrônicos a subscrição (assinatura) exigida pelo nosso sistema legal para a existência do formulário (pelo menos se a assinatura é ligada ao movimento da mão feita com a caneta sobre o papel). Foi aí que se desenvolveu a técnica da assinatura digital. Quando se almeja a celebração de um contrato por computador, um dos requisitos relevantes é certificar-se de que a pessoa que está do outro lado é realmente quem diz ser para que se possa alcançar uma efetiva eficácia probatória do contrato digital5.

Nesta linha, em 2018, a 3ª turma do STJ, em Recurso Especial de relatoria do ministro Paulo de Tarso Sanseverino, entendeu que o contrato eletrônico com assinatura digital, mesmo sem testemunhas, é título executivo, pois a unidade certificadora é um terceiro desinteressado, que certifica que o usuário e garante serem aqueles os documentos assinados (REsp 1495920/DF, 2014/0295300-9).

RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. EXECUTIVIDADE DE CONTRATO ELETRÔNICO DE MÚTUO ASSINADO DIGITALMENTE (CRIPTOGRAFIA ASSIMÉTRICA) EM CONFORMIDADE COM A INFRAESTRUTURA DE CHAVES PÚBLICAS BRASILEIRA. TAXATIVIDADE DOS TÍTULOS EXECUTIVOS. POSSIBILIDADE, EM FACE DAS PECULIARIDADES DA CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO, DE SER EXCEPCIONADO O DISPOSTO NO ART. 585, INCISO II, DO CPC/73 (ART. 784, INCISO III, DO CPC/2015). QUANDO A EXISTÊNCIA E A HIGIDEZ DO NEGÓCIO PUDEREM SER VERIFICADAS DE OUTRAS FORMAS, QUE NÃO MEDIANTE TESTEMUNHAS, RECONHECENDO-SE EXECUTIVIDADE AO CONTRATO ELETRÔNICO. PRECEDENTES. 1. Controvérsia acerca da condição de título executivo extrajudicial de contrato eletrônico de mútuo celebrado sem a assinatura de duas testemunhas. 2. O rol de títulos executivos extrajudiciais, previsto na legislação federal em "numerus clausus", deve ser interpretado restritivamente, em conformidade com a orientação tranquila da jurisprudência desta Corte Superior. 3. Possibilidade, no entanto, de excepcional reconhecimento da executividade de determinados títulos (contratos eletrônicos) quando atendidos especiais requisitos, em face da nova realidade comercial com o intenso intercâmbio de bens e serviços em sede virtual. 4. Nem o Código Civil, nem o Código de Processo Civil, inclusive o de 2015, mostraram-se permeáveis à realidade negocial vigente e, especialmente, à revolução tecnológica que tem sido vivida no que toca aos modernos meios de celebração de negócios, que deixaram de se servir unicamente do papel, passando a se consubstanciar em meio eletrônico. 5. A assinatura digital de contrato eletrônico tem a vocação de certificar, através de terceiro desinteressado (autoridade certificadora), que determinado usuário de certa assinatura a utilizara e, assim, está efetivamente a firmar o documento eletrônico e a garantir serem os mesmos os dados do documento assinado que estão a ser sigilosamente enviados. 6. Em face destes novos instrumentos de verificação de autenticidade e presencialidade do contratante, possível o reconhecimento da executividade dos contratos eletrônicos. 7. Caso concreto em que o executado sequer fora citado para responder a execução, oportunidade em que poderá suscitar a defesa que entenda pertinente, inclusive acerca da regularidade formal do documento eletrônico, seja em exceção de pré-executividade, seja em sede de embargos à execução. 8. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. (STJ - REsp: 1495920 DF 2014/0295300-9, Relator: Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Data de Julgamento: 15/5/18, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 7/6/18)

Neste mesmo sentido surge a lei 14.620/23, a qual, em seu art. 34, acrescenta o § 4º ao Código de Processo Civil (lei 13.105/15), dispensando de forma expressa a necessidade de assinatura de testemunhas em documento particular firmado pelo devedor desde que a integridade das assinaturas do título executivo constituído ou atestado por meio eletrônico seja conferida por provedor de assinatura.

Art. 34.  O art. 784 da lei 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), passa a vigorar acrescido do seguinte § 4º:

“Art. 784. (...)

§ 4º Nos títulos executivos constituídos ou atestados por meio eletrônico, é admitida qualquer modalidade de assinatura eletrônica prevista em lei, dispensada a assinatura de testemunhas quando sua integridade for conferida por provedor de assinatura.”

Este acréscimo vem, portanto, consolida de forma expressa o que já vinha sendo discutido e seguido pelo Superior Tribunal de Justiça e pelos Tribunais Estaduais em diversos casos, permitindo a execução de documento particular assinado pelo devedor por meio de assinatura eletrônica, sem a necessidade de 02 (duas) testemunhas.

A nova regra reforça o entendimento dos Tribunais permitindo que o credor busque exercer seu direito consubstanciado em documento particular constituído ou atestado por meio eletrônico, no qual passa a ser admitido qualquer modalidade de assinatura eletrônica prevista em lei, dispensando-se, assim, a assinatura de testemunhas quando sua integridade for conferida por provedor de assinatura, mantendo uma confirmação externa de validade do negócio jurídico.

Ao prever de forma expressa a dispensa de assinaturas, o legislador traz também maior segurança jurídica para os documentos firmados em plataformas digitais, de atual relevância e ampla utilização, na medida em que confirma a validade destes documentos, em consonância com o que vem estabelecendo a jurisprudência.

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1 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo de Execução e Cumprimento da Sentença. Editora LEUD - Livraria e Editora Universitária de Direito. 2017. p. 35.

2 ASSIS, Araken de. Manual de execução. 11. ed. São Paulo: RT, 2007. p. 99.

3 BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil. Volume único. 3ª Edição. Ed. Saraiva. 2017. p. 552. 

4 MARIO, Caio. Instituições de Direito Civil, Forense, Rio, Vol. I, 12º ed., 1991, p. 420.

5 KLEE, Antonia Espíndola Longoni Klee, Comércio Eletrônico, Ed. RT, 1ª ed. em e-book, 2014.

Wagner José Penereiro Armani
Sócio do escritório Sartori Advogados. Doutor em Direito Comercial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direito Civil pela Universidade Metodista de Piracicaba. Professor de Direito Comercial pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas.

Marina Borges Dias de Almeida
Estagiária da equipe de processos estratégicos do escritório Sartori Advogados.

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