Migalhas de Peso

Inteligência Artificial e os seus impactos no Direito Civil e no Direito Autoral

Os herdeiros de um autor falecido podem proibir o lançamento de letras e músicas inéditas, caso achem tais obras inconvenientes para publicação.

24/7/2023

1. Colocação do Problema

A cantora Elis Regina, uma das mais lindas e potentes vozes da história da música popular brasileira, faleceu na manhã do dia 19 de janeiro de 1982, aos 36 anos, vítima de overdose acidental. Elis não tinha um histórico de consumo de drogas. Daí por que a fatalidade potencializou o impacto da triste notícia no grande público.

Quando Elis morreu, sua filha caçula Maria Rita tinha apenas 4 anos de idade.

Em 2003, Maria Rita lançou seu primeiro disco, que teve participação especial de Milton Nascimento, seu padrinho musical.

Elis foi a primeira cantora conhecida a gravar uma música de Milton. “Canção do Sal” foi gravada por ela em 1966. Elis Regina disse que “Se Deus cantasse, teria a voz de Milton Nascimento”.

Desolado com a sua morte, Milton, que era um grande fã e amigo de Elis Regina, sequer conseguiu ir ao enterro da cantora. Elis foi madrinha musical de Milton. E, tempos depois, Milton foi o padrinho musical de Maria Rita.

Pois bem. Em 2023, a Inteligência Artificial permitiu que Maria Rita e Elis Regina cantassem juntas a música “Como Nossos Pais”, de Belchior, num anúncio publicitário da Volkswagen, que comemorava 70 anos da filial brasileira.

O anúncio fez um estrondoso sucesso.

Ganhou muitos elogios, mas também severas críticas.

O filho mais velho de Elis, João Marcelo Bôscoli, elogiou o filme publicitário: “Ver Elis cantando ao lado da filha que ela não viu crescer, isso me comoveu muito”.1

O anúncio não informou ao consumidor que as imagens eram sintenizadas, criadas por Inteligência Artificial (IA). Tal omissão será analisada, em breve, pelo Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária).

O presente estudo não pretende discutir, casuisticamente, o filme publicitário contendo o histórico dueto de Elis Regina e Maria Rita, mas apenas analisar impactos da Inteligência Artificial (IA), que utiliza a ténica do deep fake, na eficácia post mortem de alguns direitos da personalidade, tais como o direito à imagem, o direito à voz e os direitos morais de autor2.

2. “Ressurreição Digital” e Direitos da Personalidade

Em quais circunstâncias a chamada “ressurreição digital” pode infringir direitos da personalidade?

Inexistindo cláusula testamentária impedindo o uso post mortem da sintetização de voz e imagem, pode-se dizer que é lícita a autorização dada pelos sucessores?

Caso afirmativo, em toda e qualquer hipótese? Quando o uso post mortem sai do campo da ética e entra no campo jurídico da ilicitude?

Trata-se de questões difíceis e que exigem uma reflexão cuidadosa.

A morte não é um obstáculo nem para as religiões nem para as indústrias do entretenimento e da publicidade.

A religião católica, por exemplo, acredita na ressurreição da carne. A religião espírita, por sua vez, crê na reencarnação.

A “religião” capitalista acredita na “ressurreição digital”.

Está em alta o mercado de celebridades mortas, e o capitalismo acredita, firmemente, na “ressurreição digital”, tanto que já vem tentando impor contratos por adesão para atores e dubladores.

Caetano Veloso, na sua música “Sampa”, fala da “força da grana que ergue e destrói coisa belas”.

A indústria do entretenimento enxerga muito dinheiro no uso de hologramas. Até que ponto a Inteligência Artificial (IA) não degenerará a ética? Quais são os limites desse novo mundo da IA?

Compartilhando as suas preocupações com tais questões, ponderou Mauricio Bunazar:

“Imaginemos uma situação grave. Pego um artista que faleceu há muitos anos para fazer propaganda política de um sujeito que ele nunca conheceu. Ou pior: de um sujeito com o qual ele tinha profundas divergências ideológicas. Imagine o Gandhi fazendo propaganda de armamentos, ou o Pontes de Miranda fazendo propaganda de sinopse jurídica. Será que isso é aceitável? Vejam que temos profundos dilemas éticos aqui.”3

A tecnologia, de fato, apresenta situações até então impensáveis e que, por certo, exigirão do jurista uma cuidadosa reflexão, impondo, em algum momento, a necessária atuação legislativa.

3. Reflexões Necessárias na Perspectiva do Direito Autoral

Os direitos patrimoniais de um autor caem em domínio público 70 (setenta) anos depois de sua morte.4

A obra “Como Nossos Pais”, de Belchior, cairá em domínio público depois de 70 anos da morte de seu autor, que ocorreu em 2017. O prazo começou a contar a partir de 1° de janeiro de 2018.

Findo esse prazo, não haverá mais necessidade de se pleitear autorização para alguém regravar tal obra, ou até mesmo utilizá-la num filme publicitário.

A lei autoral brasileira prevê o prazo de duração apenas dos direitos patrimoniais.

Omitiu-se sobre qual seria aquele dos direitos morais5.

Com tal omissão, pode-se dizer que são perpétuos? Caso afirmativo, todos eles ou apenas alguns?

Há divergência doutrinária a esse respeito6.

No Brasil, compete ao Estado a defesa da integridade e autoria da obra caída em domínio público.

Portanto, os direitos morais à integridade e à paternidade de tais obras serão exercidos pelo Estado (lei 9.610/98, art. 24, § 2º). Tais direitos extrapatrimoniais, portanto, são perpétuos. O exercício deles é ilimitado no tempo.

Vale dizer que uma obra caída em domínio público não consiste em res nullius (coisa sem dono). Precisa, portanto, de zelo, já que não somente reflete a personalidade do autor falecido como, também, representa a memória cultural de um povo, conforme dispõe o art. 216, III, da Constituição Federal. 

Após a morte do autor, portanto, pode-se afirmar que se perpetuam tão somente os direitos morais à paternidade e à integridade.

O direito moral ao arrependimento (art. 24, VI), por exemplo, extingue-se, logicamente, com a morte do autor. Só este, em vida, pode se arrepender de sua obra e exigir sua retirada de circulação. Falecendo, a faculdade é extinta.

Defendendo a tese de perpetuidade apenas dos direitos morais à paternidade e à integridade da obra, pontifica Marisela Gonzalez Lopez:

“De las facultades que persisten post mortem auctoris sólo son perpetuas las manifestaciones negativas de defensa a la paternidad e integridad de la obra, cuyo ejercicio corresponde, ‘sin límite de tiempo’, a las personas legitimadas. A igual conclusión sobre la perpetuidad de estas facultades se llega por la norma que impone a quien utilice las obras de dominio público la obligación de respetar la autoría e integridad de la obra.

Luego entonces, cabe afirmar la perpetuidad de algunas facultades del derecho moral del autor, no sólo por el ejercicio ilimitado en el tiempo que se concede a estas facultades de defensa al respeto a la paternidad e integridad de la obra, sino también porque los sujetos legitimados para dicho ejercicio no actúan en provecho propio, sino que ostentan un poder relativo orientado a proteger la personalidad pretérita del autor y a impedir que el acervo cultural sufra mutilaciones”.7

Os direitos morais não podem ser transmitidos a outros sujeitos. Nem por livre e espontânea vontade podem sofrer mudança de titularidade, seja a título gratuito, seja a título oneroso.

É preciso, contudo, uma análise mais atenta da intransmissibilidade, tendo em vista que os direitos morais do autor se projetam além da vida do seu titular.

O § 1.º do art. 24 da LDA-98 dispõe: “§ 1.º Por morte do autor, transmitem-se a seus sucessores os direitos a que se referem os incisos I a IV”.

A Lei de Direitos Autorais (LDA), de maneira atécnica, afirma que, por morte do autor, algumas de suas prerrogativas “transmitem-se” aos sucessores, que conservam a faculdade de se opor à violação de autoria, à publicação desautorizada de obra inédita e às modificações e mutilações contra a obra do de cujus.

Na verdade, houve uma atecnia do legislador autoral pátrio.

Este tema de intransmissibilidade suscita certa divergência doutrinária. O civilista italiano Pietro Perlingieri, por exemplo, afirma o seguinte:

“O direito moral do autor é pessoal e intransmissível mesmo mortis causa; os familiares em questão – indicados expressamente pela lei – assumem relevo iure propio, e não como sucessores. Trata-se de um interesse não patrimonial pelo qual somente impropriamente se pode falar de transferência”.8

Orlando Gomes também leciona nesse sentido, ao afirmar que os direitos da personalidade “não se transmite sequer mortis causa, embora gozem de proteção depois da morte do titular”. Para o civilista baiano, a proteção post mortem se dará com a legitimação de parentes próximos para requerê-la em juízo.9

Não há exatamente transmissão mortis causa das prerrogativas de paternidade, ineditismo e integridade.

Estes direitos gozam de proteção depois da morte do autor titular, sendo legitimados a requerê-la os sucessores.

Em outras palavras, tais direitos morais não são “transmitidos”, mas, sim, há transmissão da legitimação para a defesa.10

Não há, no rigor técnico, transmissão mortis causa dos direitos morais, mas se permite o seu exercício pelos parentes próximos do autor.

Em síntese, os direitos morais se extinguem com o falecimento do autor. O que os sucessores passam a ter é legitimação para a defesa em juízo de algumas dessas prerrogativas extrapatrimoniais.

À guisa de exemplo, com a morte de um escritor viúvo, seu filho único não passa a ser o titular do direito moral à paternidade da obra.

A autoria de um romance, por exemplo, continuará sendo, obviamente, de seu falecido pai.

O sucessor terá tão somente legitimação para proteger post mortem a autoria dessa obra criada pelo seu genitor, podendo adotar medidas para inibir, interromper ou remediar violações à paternidade dessa criação intelectual.

O parágrafo único do art. 12 do Código Civil brasileiro diz que “em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau”.

Da mesma forma, o parágrafo único do art. 20 do Código Civil elenca os legitimados para a tutela post mortem dos direitos da personalidade.

Em suma, os sucessores do autor falecido tornam-se legitimados para a tutela post mortem dos direitos morais previstos nos incisos I a IV do art. 24 da LDA-98.

E um outro aspecto deve ser salientado.

O § 1º do art. 24 da LDA-98 dispõe que, por morte do autor, o direito moral ao inédito transmite-se a seus sucessores.

É bastante comum ver autores falecidos deixarem obras inéditas, seja porque não houve tempo para publicá-las, seja porque optaram, tácita ou expressamente, por mantê-las em segredo. 

Pergunta-se: uma vez morto o autor, seus sucessores podem, em qualquer circunstância, autorizar ou vetar a divulgação de quaisquer obras inéditas? Não. O exercício do direito encontra limites, não podendo ser arbitrário. Uma decisão, por mero capricho, de simplesmente não divulgar obras do de cujus, desrespeitando, assim, a vontade que este manifestara em vida, consiste em abuso de direito, ato ilícito, conforme o art. 187 do Código Civil.

O abuso torna-se evidente quando existe contradição entre a vontade manifestada pelo autor em vida e a atuação post mortem dos seus sucessores.

Chico Buarque, por exemplo, repugna o “comércio de material inédito”. O compositor, preventivamente, costuma destruir rascunhos inacabados:

CC: O senhor tem uma preocupação particular com a preservação da sua obra, não?

CB: Eu trituro todos os rascunhos e jogo na fogueira. Hoje, menos, porque muitos rascunhos são apagados no computador. Algumas vezes eu imprimo e corrijo à mão. Esse material impresso eu prefiro destruir. É uma questão de pudor. Não quero que ninguém veja um rascunho inacabado.

CC: Dessa forma, o senhor pretende evitar o “comércio de material inédito”?

CB: Isso me incomoda bastante, mas comigo não vai acontecer. Não deixei rastros. E não vou deixar”.11

Em se tratando de divulgação post mortem de obras inacabadas, a decisão dos sucessores torna-se ainda mais palpitante. Isso porque a difusão de obra inconclusa oferece ao público uma visão distorcida da personalidade do autor. Tal atitude, além de violação ao direito ao ineditismo, não deixa de ser também ofensa a uma outra prerrogativa moral: à integridade da obra.

O parágrafo único do art. 55 da LDA-98 dispõe o seguinte: “É vedada a publicação parcial, se o autor manifestou a vontade de só publicá-la por inteiro ou se assim o decidirem seus sucessores”.

Enfim, a solução para o embate entre os dois interesses (público e privado) será casuística. O direito de acesso a bens culturais não é ilimitado, assim como não pode ser abusivo o exercício do direito pelos sucessores do autor falecido.

Mário de Andrade, em uma carta enviada a Manuel Bandeira, em 25 de janeiro de 1925, afirmou expressamente:

“As cartas que mando pra você são suas. Se eu morrer amanhã não quero que você as publique. Nem depois da morte de nós dois quero um volume como o epistolário Wagner-Liszt. Essas coisas podem ser importantes, não duvido, quando se trata dum Wagner ou dum Liszt que fizeram arte também para se eternizarem. Eu amo a morte que acaba tudo. O que não acaba é a alma e essa que vá viver contemplando Deus”.12

Os herdeiros de um autor falecido podem proibir o lançamento de letras e músicas inéditas, caso achem tais obras inconvenientes para publicação.

Podem, portanto, impedir que uma obra inédita seja publicada após a morte do criador intelectual. Ou, ainda, aguardar o momento oportuno para publicá-la, o que geraria maiores dividendos econômicos, numa visão eminentemente comercial. Por exemplo: lançar um disco ou livro na data de dez anos de sua morte ou cem anos de seu nascimento.

Mas poderiam ainda, os sucessores, lançando mão de novos recursos tecnológicos, inimagináveis há décadas, utilizar a própria imagem e voz do falecido autor para uma determinada finalidade, especialmente econômica, sem que houvesse prévia autorização em vida?

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1 Disponível em: https://f5.folha.uol.com.br/celebridades/2023/07/maria-rita-agradece-carinho-apos-comercial-com-elis-regina.shtml. Acesso em: 19 jul. 2023.

2 Aliás, “se e' verdade que as novas tecnologias impo~em renovados desafios, o direito civil mostra-se apto a oferecer as respostas adequadas a partir de seus pro'prios fundamento teo'ricos.” (TEPEDINO, Gustavo e SILVA, Rodrigo da Guia. Desafios da Inteligência Artificial em Matéria de Responsabilidade Civil, Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 21, p. 61-86, jul./set. 2019).

3 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/389777/nao-podemos-ter-medo-do-novo--diz-advogada-sobre-comercial-com-elis. Acesso em: 19 jul. 2023.

4 Art. 41. Os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil.

Parágrafo único. Aplica-se às obras póstumas o prazo de proteção a que alude o caput deste artigo.

5 Questão ainda mais delicada fora abordada neste texto: MORAES, Rodrigo e GAGLIANO, Pablo Stolze. Direito de Imagem após a Morte: o Vácuo Normativo e a sua Perspectiva Patrimonial, disponível no: https://www.migalhas.com.br/depeso/379478/direito-de-imagem-apos-a-morte.

6 MORAES, Rodrigo. Os direitos morais do autor: repersonalizando o Direito Autoral. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021.

7 LOPEZ, Marisela Gonzalez. El dere­cho moral del autor en la ley espa­ño­la de pro­pie­dad inte­lec­tual. Madri: Marcial Pons Ediciones Jurídicas, 1993, p. 140. “Das faculdades que persistem post mortem auctoris, apenas são perpétuas as manifestações negativas de defesa da paternidade e integridade da obra, cujo exercício corresponde, ‘sem limite de tempo’, às pessoas legitimadas. À mesma conclusão sobre a perpetuidade dessas faculdades se chega pela norma que impõe a quem utiliza as obras de domínio público a obrigação de respeitar a autoria e a integridade da obra.

Então, cabe afirmar a perpetuidade de algumas faculdades do direito moral do autor, não só pelo exercício ilimitado no tempo concedido a essas faculdades de defesa da paternidade e integridade da obra, mas também porque os sujeitos legitimados para este exercício não agem em proveito próprio, mas ostentam um poder relativo orientado a proteger a personalidade pretérita do autor e impedir que o patrimônio cultural sofra mutilações” (tradução nossa).

8 PER­LIN­GIE­RI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Tradução de Maria Cristina De Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 181.

9 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 132-133.

10 VÁZQUEZ, Marta Madriñán. La sucesión post mortem auctoris de los derechos morales. Prólogo de Isabel Espín Alba. Madrid: Reus-AISGE, 2015, p. 79.

11 STYCER, Maurício. Preconceito na mira. Carta Capital, n. 392, 10 maio 2006, p. 50.

12 WEIN­TRAUB, Fabio. Sereias da vida ­alheia. Cult – Revista Brasileira de Literatura, edi­ção de abril de 2000, n. 33, p. 20.

Pablo Stolze Gagliano
Professor de Direito Civil da Faculdade de Direito da UFBA.

Rodrigo Moraes
Professor de Direito Civil da Faculdade de Direito da UFBA

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