Olá colegas Migalheiros!
É sempre um prazer oferecer a vocês um espaço de discussão acerca de temas e situações relevantes da interface entre o Direito e a Psicologia.
Neste artigo, quero abordar com vocês algumas regras importantes quanto à psicoterapia de menor, principalmente em contexto de divórcio (e litígio) dos pais.
Primeiro, quero esclarecer que, quando uso a palavra “filho”, é só para facilitar a escrita, e deve ser entendida em sentido genérico, independentemente da quantidade de filhos e/ou do gênero do filho, ok?
Em segundo lugar, é importante entender que, independentemente da forma como os pais se separam, é um acontecimento sempre impactante para o filho, em termos emocionais e relacionais. Salvo em situações em que a criança ou adolescente presencie violência doméstica contra si e/ou entre genitores e entenda que a saída do(a) genitor(a) agressor(a) ou negligente seja a melhor solução, em geral sentem a separação dos pais como uma ruptura de vínculos e uma forte alteração de rotina.
Então, vemos que muitos conflitos da conjugalidade acabam também se estendendo à parentalidade. O principal deles é a alienação parental, em suas diferentes variações: alienação parental clássica (com ou sem falsas acusações de abuso sexual), auto-alienação parental (ou alienação parental autoinflingida), alienação parental familiar (praticada e/ou sofrida por terceiros, estendendo para além dos genitores), alienação parental beyond borders1, a falsa acusação de alienação parental, etc.
Já mencionei em outro artigo2 que o uso inadequado das leis da alienação parental e guarda compartilhada, o entendimento equivocado, as distorções propositais e a ausência de qualificação dos psicólogos para identificar os casos de alienação parental, origina situações que desviam o espírito da lei e as intenções do legislador, como a banalização das acusações de abuso sexual, a falsa acusação de alienação parental, a guarda compartilhada imposta "de cima pra baixo" em sentenças judiciais sem considerar que nem todos os pais são maduros e responsáveis para exercê-la, ou por outro giro o entendimento psicológico equivocado de que "os pais não podem exercer a guarda compartilhada devido à alta litigiosidade", colocando o litígio dos pais acima do direito da criança à convivência equânime com cada um dos pais!
Conforme ensina DOLTO (2003):
INÉS ANGELINO: Muitos divórcios ainda são homologados ‘pelas falhas’ e ‘pelos erros’. Estes ainda podem ser compartilhados, mas ainda é comum ouvirmos dizer: ‘Meu marido (minha mulher) tem toda a responsabilidade pelos erros’.
FRANÇOISE DOLTO: Qualquer que seja a idade do filho, essa expressão pejorativa e acusatória é desestruturante para ele, sem contar que é sempre falsa; destila seu veneno no coração dos filhos.
As dissenções de um casal provêm de dificuldades bilaterais relacionadas com a evolução pessoal de cada um. E o único erro de cada um foi de se enganar a seu respeito e a respeito do outro ao constituir uma família.
É mais frequente falarmos em ‘alienação parental’ em contexto jurídico, uma vez que as condutas são tipificadas em lei, assim como as partes instam o juiz a declarar a ocorrência, e o juiz manda o setor técnico avaliar se está mesmo ocorrendo, e em caso afirmativo, sua extensão e gravidade. Obviamente já mencionei em outro artigo3 que essa atuação tem limitações e cerceamentos ilegais por parte do Conselho Federal de Psicologia. O cerceamento ilegal e inidôneo da atuação dos psicólogos jurídicos para identificar e mencionar a ocorrência da alienação parental acoberta a falta de visibilidade de suas práticas, que vão se tornando cada vez mais graves e insidiosas, e isso vai impedindo os órgãos de elaborarem políticas públicas apropriadas de orientação familiar, programas eficazes que auxiliem as famílias e lidarem de forma amadurecida com os conflitos conjugais e não permitirem que atinjam a parentalidade. A falta de visibilidade da alienação parental em âmbito jurídico faz com que os detratores da lei exijam que os psicólogos descumpram leis federais (no caso, a lei 12.318/10 (lei principal, que tipifica a alienação parental), a lei 13.431/17 que elenca a alienação parental como uma das formas de violência sofridas pela criança ou adolescente e a lei 14.340/22 que complementa a lei principal), bem como sua revogação – e, em breve, essa prática criminosa, se não for barrada e punida a tempo, vai se estender também para a revogação das leis da Guarda Compartilhada (justaposição entre a lei 11.698/08 e 13.058/14), institucionalizando-se o caos nas relações de família. Comparativamente, é o mesmo que dizer: “existem crimes e infração de trânsito porque o Código de Trânsito é ineficaz. Então, vamos revoga-lo e extingui-lo, que tal?”. Ora, se com legislação de trânsito, ainda vamos crimes e infrações de trânsito, por imprudência de condutores acumpliciados pela impunidade da falta de fiscalização, multas e condições apropriadas de tráfego, imagine se revogarmos!
Mas a situação se torna mais grave quando, além da falta de visibilidade da alienação parental em contexto jurídico, ela também não é devidamente identificada em contexto clínico:
1. Alterações de comportamento: irritabilidade, transtorno desafiador opositor, agressividade, depressão; automutilação, comportamentos autodestrutivos e desadaptativos;
2. Mudanças no relacionamento: isolamento social, agressão a terceiros, desobediência;
3. Reações psicossomáticas: dores, fadiga, indisposição, perda ou aumento de apetite, alterações de sono, etc.;
4. Reações emocionais aleatórias: medo, insegurança, desinteresse;
5. Queixas escolares: problemas de aprendizagem, TDAH, queda de rendimento escolar, problemas de entrosamento e interação com colegas e professores.
São sintomas que frequentemente aparecem nos consultórios, e a parte pede que o psicólogo clínico redija um relatório. O(a) genitor(a) alienado(a) vai usar esse relatório como “prova” da alienação imputada ao(à) outro(a), enquanto o(a) genitor(a) alienador(a) nunca vai admitir que esteja praticando qualquer ato de alienação parental e vai usar esse relatório como argumento de que os sintomas da criança são consequência das acusações de alienação parental.
Enquanto não se resolve esse impasse, quem sofre é a criança, perdida e esquecida (melhor dizendo, abandonada!) nesse meio.
Conforme os ensinamentos de DUARTE (2012, p.176):
Nos casos de litígio conjugal, como é possível constatar na clínica, é que se podem e tender a ocorrer os maiores problemas envolvendo os filhos. Como os pais querem vencer, em geral, não se importam com as “armas” desse embate. E é nesse fogo cruzado que se encontra a criança, um sujeito que está se constituindo que preciso de amor e de modelos positivos para se identificar. Quando um casal, antes ligado pelos laços de amor, passa a brigar movido pelo ódio, pela necessidade de vingança e pela posse dos bens adquiridos, em que o sujeito criança, na sua posição radical de dependência e desamparo pode ser incluído, isso quase sempre não acontece sem consequências. Embora queiram permanecer neutros, os filhos do casal acabam aspirados pela luta e tornam-se “objetos torpedos” das batalhas travadas entre os pais.
Os sintomas se agravam, à medida que o litígio entre os pais se agrava. A tendência é que os filhos se tornem “parceiros” ou “muletas” do(a) genitor(a) alienador(a), ou de ambos, e se veja envolvido em relações tóxicas de PARENTIFICAÇÃO, que é quando o filho acaba cuidando do(a) pai(mãe). Essa é a parte mais nociva do conflito porque, se pelo lado jurídico é possível equacionar atrás das providências judiciais (cumprimento da legislação federal pertinente ao tema), de que forma pode o psicólogo clínico atuar, quando o Conselho Federal de Psicologia cerceia ilegalmente a atuação dos psicólogos para identificarem a ocorrência de alienação parental e pensar em intervenções clínicas à criança/adolescente e à família para dirimir os conflitos emocionais latentes e ajudar a família e encontrar soluções sensatas e amadurecidas?
O correto, além da óbvia e urgente necessidade de revogação da Nota Técnica 04/22 (que se estende aos psicólogos clínicos), é a qualificação dos psicólogos para identificarem a possível ocorrência da alienação parental, entendida aqui como um fenômeno comportamental e, em caso afirmativo, sua extensão e gravidade, bem como orientação familiar adequada.
Espero que tenham apreciado a leitura do artigo que queria expor aqui, sem pretender esgotar o assunto, uma vez que me disponibilizo ao debate saudável.
Até os próximos artigos! Agradeço a atenção!
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1 SILVA, D.M.P. Alienação parental beyond borders, já ouviu falar? Migalhas. Ribeirão Preto, 21/09/2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/373819/alienacao-parental-beyond-borders-ja-ouviu-falar.
2 SILVA, D.M.P. Lei da Alienação Parental: o que mudou? Migalhas. Ribeirão Preto, 01/02/2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/380914/lei-da-alienacao-parental-o-que-mudou.
3 SILVA, D.M.P. A infame nota técnica 4/22 do Conselho Federal de Psicologia. Migalhas. Ribeirão Preto, 15/05/2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/386493/a-infame-nota-tecnica-4-22-do-conselho-federal-de-psicologia.
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DOLTO, F. Quando os pais se separam. 2.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
DUARTE, L.P.L. A guarda dos filhos na família em litígio. 4.ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2012.