“A verdade é que a proibição nunca chegou aqui em casa. Por ser homem, branco, cisgênero e de classe média alta, a polícia sempre me tratou com o maior respeito, Fosse eu negro, pobre ou travesti, teria conhecido o famoso esculacho – um mimo da PM que muitas vezes acaba em morte. A guerra às drogas é uma guerra aos pobres – e a prova disso é que não conheço nenhum rico preso por tráfico”. (Gregório Duvivier)
“Tivessem as drogas sido descriminalizadas 17 anos atrás, o crack nunca teria sido inventado (ele foi inventado porque o alto custa das drogas ilegais torna lucrativo fornecer uma versão mais barata) e hoje haveria um número bem menor de dependentes...” (Milton Friedman, prêmio Nobel de Economia em 1976)
O STF marcou para o próximo 2 de agosto a retomada do julgamento do RE 635.659 sobre a inconstitucionalidade do art. 28 da lei 11.343/06 (posse para consumo de drogas ilícitas).
Em substancioso e bem fundamentado voto o relator ministro Gilmar Mendes decidiu pela inconstitucionalidade do referido artigo e, consequentemente, pela descriminalização da posse para consumo de drogas ilícitas, de todas as drogas e não apenas da “maconha”. Segundo o relator, “a criminalização da posse de drogas para uso pessoal conduz à ofensa à privacidade e à intimidade do usuário. Está-se a desrespeitar a decisão da pessoa de colocar em risco a própria saúde”. O voto do ministro Gilmar Mendes se baseia no argumento da Defensoria Pública de São Paulo, autora do recurso. A alegação dos defensores públicos é que o artigo é inconstitucional por violar o direito fundamental à intimidade e à privacidade. Afirmam, ainda e acertadamente, que criminalizar o uso de drogas viola o princípio da lesividade, segundo o qual só podem ser considerados crimes condutas que afetem bens jurídicos de terceiros ou coletivos.
O i. ministro Luiz Edson Fachin após pedido de vista votou pela descriminalização tão somente da “maconha”. De acordo com Fachin “em virtude da complexidade inerente ao problema jurídico que está sob a análise do Supremo Tribunal Federal no presente recurso extraordinário, propõe-se estrita observância às balizas fáticas e jurídicas do caso concreto para a atuação da Corte em seara tão sensível: a definição sobre a constitucionalidade, ou não, da criminalização do porte unicamente de maconha para uso próprio em face de direitos fundamentais como a liberdade, autonomia e privacidade”. (Grifamos).
De igual modo e em seguida, o ministro Luís Roberto Barroso se ateve a questão da inconstitucionalidade do art. 28 da lei 11.343/2006. Afirmou o i. ministro que: “o caso concreto aqui em discussão, e que recebeu repercussão geral, envolve o consumo de 3 gramas de maconha. A droga em questão, portanto é a maconha. O meu voto trabalha sobre este pressuposto. É possível que algumas das ideias que eu vou expor aqui valham para outras drogas. Outras, talvez não.” (Grifamos).
Dúvida não há de que o RE 635.659 tem como objeto o caso concreto a posse para uso de 3 gramas de maconha. Isto ninguém discute. Contudo, no que pese os alentados votos dos eminentes ministros Luiz Edson Fachin e Luís Roberto Barroso bem como dos argumentos por eles devidamente expostos, não há razão, com todas as vênias, para declarar a inconstitucionalidade do artigo 28 da lei 11.343/06 apenas em relação à “maconha”, quando o artigo 28 se refere as “drogas”.
Os fundamentos jurídicos para a descriminalização à luz da Constituição valem para todas as drogas: i. violação ao direito de privacidade; ii. violação à autonomia individual; iii. violação ao princípio da proporcionalidade, e, iv. Violação ao princípio da lesividade.
No que diz respeito ao objeto jurídico do crime – para maioria da doutrina e dos tribunais a saúde pública – Maria Lúcia Karam afirma: “que na conduta de uma pessoa, que destinando-a a seu próprio uso, adquire ou tem em posse de uma substância, que causa ou pode causar mal à saúde, não há como identificar ofensa à saúde pública, dada a ausência daquela expansibilidade do perigo”.
Não se pode, também, olvidar o caráter limitado do direito penal, sob duplo aspecto: i. o da subsidiariedade de sua proteção à bens jurídicos; ii. o dever estar condicionada sua intervenção à importância ou gravidade da lesão, real ou potencial. Assim, conforme o ensinamento de Francisco de Assis Toledo , “mesmo em relação aos bens jurídicos-penalmente protegidos, restringe o direito penal sua tutela a certas espécies e formas de lesão, real ou potencial. Viver é um risco permanente, seja na selva, entre insetos e animais agressivos, seja na cidade, por entre veículos, máquinas e toda sorte de inventos da técnica, que nos ameaçam de todos os lados. Não é missão do direito penal afastar de modo completo, todos esses riscos...” Mais adiante o saudoso ministro do STJ proclama: “A criação legal de figuras delitivas que não impliquem lesão real, ou potencial, a bens jurídicos seria, com efeito, a admissão de um sistema penal que pretendesse punir o agente pelo seu modo de ser ou de pensar”.
Vale aqui transcrever parte do voto do ministro relator Gilmar Mendes: “Ainda que se afirme que a posse de drogas para uso pessoal não integra, em sua plenitude, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, isso não legitima que se lance mão do direito penal para o controle do consumo de drogas, em prejuízo de tantas outras medidas de natureza não penal, como, por exemplo, a proibição de consumo em lugares públicos, a limitação de quantidade compatível com o uso pessoal, a proibição administrativa de certas drogas sob pena de sanções administrativas, entre outras providências não tão drásticas e de questionáveis efeitos como as sanções de natureza penal”.
A questão da criminalização de condutas, como bem ensina o jurista Juarez Tavares , “não pode ser confundida com as finalidades políticas de segurança pública, porque se insere como uma condição do Estado democrático, baseado no respeito dos direitos fundamentais e na proteção da pessoa humana. Isto quer significar que, em um Estado democrático, o bem jurídico deve constituir um limite ao exercício da política de segurança pública, reforçado pela atuação do Judiciário, com órgão fiscalizador e controlador e não como agência seletiva de agentes merecedores de pena, em face da respectiva atuação do Legislativo ou do Executivo”.
Necessário pois, que o Estado e a sociedade entendam de uma vez por todas que nem tudo pode e deve ser objeto do direito penal. Neste viés, devem ser excluídas do direito penal as condutas que não afetam qualquer bem jurídico; as “condutas desviadas” ; as condutas, ainda que “pecaminosa, imoral, escandalosa ou diferente” , mas que não extrapola o individuo; as condutas desprovidas de nocividade social , etc.
Por tudo, não há razão jurídica para que o STF não julgue inconstitucional o art. 28 da lei 11.343/06 e, consequentemente, descriminalize o porte e o uso de toda e qualquer droga em consonância com os princípios fundamentais e garantistas que norteiam a Constituição da República.
Referências
- KARAM, Maria Lucia. De crimes, penas e fantasias. Niterói, RJ: Luam, 1991.
- TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 14.
- Idem, p. 16.
- Idem, p. 19.
- TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 200.
- BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1990.
- Idem.
- CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. Trad. Eliana Granja et. al. São Paulo: RT, 1995.