Em linhas iniciais, é importante relembrar quanto a viabilidade de revisão judicial dos contratos, desde que existam elementos inusitados e surpreendentes, que para tanto coloquem em risco o curso do contrato.
A cláusula rebuc sic stantibus define que “[a] imprevisão que pode autorizar uma intervenção judicial na vontade contratual é somente a que refoge totalmente às possibilidades de previsibilidade” (VENOSA, 2001).
Para aplicação da supracitada cláusula, devem existir acontecimentos extraordinários e imprevisíveis.
Tais lições são expressamente previstas no Código Civil de 2002, ao qual prevê a possibilidade resolução por onerosidade excessiva, consoante previsto em seu art. 478.
Comumente conhecido no setor rural, existem determinados períodos no ano em que ocorrem condições de seca extrema, ora definida pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN/MCTI) como o grau mais elevado e capaz de afetar diretamente na agricultura.
Contudo, os eventos advindos da seca ou estiagem, nos casos de dívidas originadas de crédito rural, como exemplo, são decorrentes do próprio risco do negócio empresarial administrado, conforme ratificado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), enquanto não são considerados fatores extraordinários ou imprevisíveis, vejamos:
TEORIA DA IMPREVISÃO AFASTADA. ESCASSEZ DE CHUVAS NÃO É CONSIDERADO FATO EXTRAORDINÁRIO. PRECEDENTES. AGRAVO INTERNO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
[...]
6. Nos contratos agrícolas, o risco é inerente ao negócio, de forma que eventos como seca, pragas, ou estiagem, dentre outros, não são considerados fatores imprevisíveis ou extraordinários que autorizem a adoção da teoria da imprevisão.
7. Agravo interno a que se nega provimento.
(STJ - AgInt no AREsp: 1027435 GO 2016/0318725-6, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento: 24/08/2020, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 01/09/2020)
No caso acima, houve entendimento que a atividade agrícola é sujeita às variações climáticas e outras vulnerabilidades próprias da atividade rural, como na hipótese de pragas.
Em compasso com tal entendimento, uma vez celebrado contrato com observância de todos os pressupostos e requisitos necessários à sua validade, entendo ser o caso de execução pelas partes como se suas cláusulas fossem preceitos imperativos, ou seja, o contrato obriga os contratantes.
Entretanto, existem determinados casos em que existe a possibilidade de alongamento de dívida originada de crédito rural.
Tal discussão originou em meados do ano de 2004 a edição da Súmula 298 do STJ, a qual prevê que “[o] alongamento de dívida originada de crédito rural não constitui faculdade da instituição financeira, mas, direito do devedor nos termos da lei”.
Os fundamentos que motivaram à época o surgimento do supracitado entendimento pacífico são relacionados ao contexto governamental de incentivo aos produtores rurais, como na securitização de créditos e da lei 9.138/95, que dispôs sobre o alongamento de dívidas no âmbito de crédito rural.
As legislações que sucederam essa previsão legal, por muitas vezes, não repetiram a equalização proposta pela legislação base deste entendimento.
À luz disso, existe a possibilidade de alongamento de dívida originada de crédito rural, desde que existe previsão normativa autorizando eventual prolongamento, conforme se constate atualmente pela lei 14.554, de 20 de abril de 2023.
A referida legislação permite a renegociação das operações do Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (PRONAMPE) e de débitos no âmbito dos Fundos Constitucionais de Financiamento do Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
No art. 3º da lei 14.554/23, tal como, consta alteração normativa que permite a substituição de encargos das operações de crédito rural e não rural contratadas até 31 de dezembro de 2018 pelos encargos correntemente utilizados para contratação de nova operação, desde que haja expressa solicitação do beneficiário.
Em síntese, atualmente os produtores rurais que possuem operações originadas do PRONAMPE ou relativas aos Fundos Constitucionais de Financiamento inerentes as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, poderão se beneficiar e requerer o alongamento de suas dívidas.
É evidente, assim, que apesar da aparente discricionariedade negocial por parte das Instituições Financeiras, verifica-se existir norma impositiva direcionada para elas, qual seja, da obrigatoriedade de conceder o direito do devedor de renegociação com base em Lei Federal ou qualquer ato normativo semelhante.
Se porventura houver negativa infundada para não concessão de alongamento de dívida originada de crédito rural, existirá a possibilidade de judicialização.
Portanto, quando houver o preenchimento dos requisitos legais, ora relacionados ao cumprimento das exigências previstas em programa ou forma de incentivo governamental, conclui-se quanto a possibilidade de alongamento de dívida originada de crédito rural, pois tal direito é subjetivo do devedor, nos termos da Súmula 298 do STJ.
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BRASIL. Lei 9.138, de 29 de novembro de 1995. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/cciviL_03/leis/L9138.htm. Acesso em: 12 jul. 2023.
BRASIL. Lei 13.340, de 28 de setembro de 2016. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13340.htm. Acesso em: 12 jul. 2023.
BRASIL. Lei 14.554, de 20 de abril de 2023. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/Lei/L14554.htm. Acesso em: 12 jul. 2023.
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial n. 1027435/GO. DJe: 01/09/2020. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=5&documento_sequencial=114283924®istro_numero=201603187256&peticao_numero=202000338441&publicacao_data=20200901&formato=PDF Acesso em: 12 jul. 2023.
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Súmula 298. O alongamento de dívida originada de crédito rural não constitui faculdade da instituição financeira, mas, direito do devedor nos termos da lei. DJ: 22/11/2004. Disponível em: https://www.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-sumulas-2011_23_capSumula298.pdf Acesso em: 12 jul. 2023.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil – contratos. 21ª ed. São Paulo: Atlas, 2021, p. 123.