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De quem é o filho?

O nosso Código Civil reza que presumem-se concebidos na constância do casamento, dentre outros, os filhos havidos por fecundação artificial homóloga (art. 1597, III). No mesmo artigo, inciso V, admite também a presunção dos filhos havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que haja a prévia autorização do marido.

14/5/2007


De quem é o filho?

Eudes Quintino de Oliveira Júnior*

Recentemente, um casal nova-iorquino procurou uma clínica especializada em reprodução humana, em razão das dificuldades para conceber o segundo filho. A técnica utilizada seria a da inseminação homóloga (óvulos da esposa e sêmen do marido).

Vingou a fecundação. Nasceu uma menina com traços afro-americanos, de pele bem mais escura que a de seus pais. O fato preocupou o casal e o marido se submeteu a testes de DNA, que foram conclusivos no sentido de que a mulher tinha sido fertilizada por outro homem.

Ocorreu, na hipótese, a inseminação heteróloga (óvulos da mulher casada com esperma de terceiro), circunstância que, por si só, justificou o ajuizamento de ação em desfavor da clínica, em razão da negligência no implante do embrião.

O nosso Código Civil (clique aqui) reza que presumem-se concebidos na constância do casamento, dentre outros, os filhos havidos por fecundação artificial homóloga (art. 1597, III). No mesmo artigo, inciso V, admite também a presunção dos filhos havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que haja a prévia autorização do marido.

Com o advento do biodireito, em matéria de presunção, pouca ou quase nada sobreviveu. Até mesmo a certeza da maternidade caiu por terra. Basta ver que, em determinada modalidade da reprodução assistida, utiliza-se o sêmen do marido, o óvulo de uma estranha e sua conseqüente implantação no útero da esposa. De quem é o filho? Da mulher que cedeu o material genético ou da que o alojou e deu à luz? E pode ser até que, na maternidade de substituição, em que são utilizados o esperma do doador, os óvulos da doadora e o útero de uma mãe substitutiva, falecendo os encomendantes, o recém-nascido deverá ser entregue para adoção, com total dúvida a respeito da paternidade e maternidade. E, com a competência indiscutível de sempre, Maria Helena Diniz faz ver que, na fecundação na proveta, a criança poderá viver um conflito de maternidade e paternidade, envolvendo, ao mesmo tempo, dois pais e duas mães numa situação e três pais e três mães em outra:

“Conflito de maternidade e de paternidade, uma vez que, na fecundação na proveta, a criança poderá ter: duas mães, uma institucional e outra genética; dois pais, o institucional que será o marido de sua mãe, que anuiu na fertilização in vitro cum semine alieno, e o genético, ou seja, o doador do elemento viril fertilizante, que não terá responsabilidade jurídica pelo ser que gerou; três pais e três mães, ou melhor, mãe e pai genéticos (os doadores do óvulo e do sêmen), mãe e pai biológicos (a que o gerou em seu ventre e seu marido) e mãe e pai institucionais (os que a encomendaram à clínica), sendo os responsáveis legalmente por ela, por terem feito o projeto de seu nascimento.” (O estado atual do Biodireito, p. 575, Ed. Saraiva, 2006)

Não se pode banalizar a iniciativa científica, que deverá ser analisada com os olhos da bioética. O ser humano vem dotado do desejo de procriação e, como tal, é uma valor que merece especial atenção do Estado, que deverá selecionar as melhores técnicas com critérios rigorosos. Trata-se aqui de um atividade de exceção e não de regra. No pensamento de Francesco D’agostino, ocorre, na realidade, um ato de despersonalização do ato gerador humano. “Na reprodução assistida, afirma, por maior que seja o desejo psicológico de um casal estéril por um filho, a despersonalização do procedimento empobrece o próprio significado da geração (como fica evidente na freqüente solicitação do casal para manter a máxima privacidade em relação ao recurso à reprodução assistida) e altera de modo significativo o valor pessoal dos papéis geradores, aos quais é confiada a construção da própria identidade pessoal profunda do homem.” (Bioética, segundo o enfoque da filosofia do Direito, Ed. Unisinos. p 155, 2006)

Pois bem. Voltando ao caso narrado, várias conseqüências ético-jurídicas e morais virão à tona: descobrindo-se o engano durante a gravidez, fica afastada qualquer possibilidade de aborto, por falta de previsão legal; rejeita-se eventual pedido de separação judicial intentada pelo marido por injúria grave, pois sua esposa não praticou qualquer ato que importe em grave violação dos deveres do casamento; o pai, cujo nome vem arrolado na certidão de nascimento, na realidade, figurará como adotivo, desde que, sabedor da inexistência da paternidade proclamada, aceite a aparente realidade; a filha não receberá o patrimônio genético do pai e também desconhecerá a identidade genética do doador do elemento fertilizante; a filha poderá, posteriormente, casar-se com o filho do doador ou até com ele mesmo, em flagrante situação incestuosa; introdução na família de pessoa detentora de material genético diferente daquele do marido, que poderá acarretar alguma moléstia física ou psicose mental, de que seja o doador portador; a filha contará com dois pais. Um jurídico e outro genético. Pode acontecer que, por interesses financeiros, ela venha a acionar judicialmente o pai biológico para receber uma considerável pensão alimentícia ou até mesmo disputar direitos sucessórios. Pode, também, com a mesma intenção, o pai genético reclamar sua paternidade e reconhecer o filho havido fora do casamento, de acordo com a regra do artigo 1609 do Código Civil.

Muitas outras conseqüências podem ser apontadas da irregular fecundação humana assistida. É uma nova realidade que se apresenta em razão da evolução da embriologia e engenharia genética O casal estéril poderá atingir a procriação com a utilização de componentes genéticos de ambos, de um só deles ou de nenhum deles. É de se questionar, nesta oportunidade, a opção que se abre com a adoção, que entregaria ao casal uma criança que possa ser rodeada de relações afetivas, tendo como base e sustentáculo a dignidade humana. Ocorre que, nesta situação não há o compartilhamento genético de um dos pais ou de ambos, fato que, na conotação popular, distanciaria o homem da sua função de procriação.

É certo que o assunto é envolvente e carece de considerações multidisciplinares. Daí, a necessidade de regulamentação de todas as técnicas científicas de reprodução humana assistida, inserindo na legislação alguns conceitos que já se sedimentaram no noviciado da bioética. Algumas sugestões são apresentadas:

a) a doação dos gametas será sempre livre, realizada na mais ampla gratuidade, com o espírito voltado para a solidariedade humana;

b) os doadores não devem ter acesso à identidade dos receptores e vice-versa, justamente para que não ocorram transtornos futuros com prejuízos para todos os envolvidos no procedimento;

c) somente escolher doadores que tenham a maior semelhança fenotípica e máxima compatibilidade com a receptora;

d) por determinação judicial ou motivação médica será quebrada a identidade dos doadores e receptores, visando impedir a união entre consangüineos, resguardando sempre a identidade civil do doador;

e) estabelecer o número máximo de embriões para a mulher receptora e a preservação do restante para a utilização em pesquisa e terapia, desde que sejam embriões inviáveis ou congelados há três anos e, em ambos os casos, receber o consentimento dos genitores, conforme já determina o art. 5º da Lei 11.105, de 24-3-2005 (clique aqui);

f) restrições para a realização da reprodução assistida post mortem, com a utilização do esperma congelado de pessoa falecida ou de óvulo fecundado in vitro de mulher morta. É inaceitável a situação do filho, nascido de pais mortos e gerado por uma mãe de substituição.

Muitas outras recomendações poderão ser apresentadas para se buscar uma perfeita adequação entre o universo científico e a realidade social, com um olho arguto dirigido especialmente para a ética e o direito. O homem, como ser racional que é, deve procurar sempre o florescimento humano, ponderar os bens existentes e fazer sua escolha compatível com a dignidade humana.

Para arrematar e arrefecer os espíritos, observo que bom ainda é à moda antiga. A fecundação desenvolve-se no útero, bem pertinho do coração.

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*Promotor de Justiça aposentado, advogado, Pró-Reitor da Unorp



 

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