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Episódio “A Joan é péssima” de Black Mirror: o que é real no Direito do Entretenimento?

O 1º episódio da 6ª temporada de Black Mirror deu o que falar. Pensando nos acontecimentos catastróficos do enredo, trouxemos uma análise sobre como o direito do entretenimento brasileiro lida com essas questões.

17/7/2023

Nesta nova temporada de Black Mirror, temos a história de Joan, executiva com uma vida cotidiana, até que no final de seu dia, ela e seu noivo decidem assistir uma série no Streamberry e notam o lançamento de “Joan é péssima”, em que a personagem retratada por Salma Hayek, apresenta características de Joan. Ao assistir, percebem que o que está passando no streaming é seu dia, praticamente em tempo real.

Ao contar a história, o streaming acaba alterando fragmentos para deixar a história mais atrativa, e Joan busca descobrir como conseguiram acesso a sua vida, além dos episódios estarem saindo quase que de forma assíncrona com o que está vivendo.

Do ponto de vista jurídico, a série nos faz refletir principalmente sobre três pontos, sendo eles: 1) Existe perigo ao aceitar termos de uso das plataformas de streaming sem ler?; 2) eu posso licenciar meus direitos de imagem e voz para uma inteligência artificial me interpretar?; 3) Será que o retratado no episódio poderia acontecer ou seria pura ficção?

Nos próximos tópicos iremos explicar todos os pontos elencados acima, além de como funciona o licenciamento de imagem no Brasil. 

1. Existe perigo ao aceitar Termos de Uso das plataformas de streaming sem ler?

Todos que assistiram ao primeiro episódio com a mais absoluta certeza acabaram tendo um choque ao saber que nos Termos de Uso a “Streamberry” (streaming que fazia alusão à Netflix) concedia à plataforma o direito de criar série sobre sua vida, além de ter acesso a personagem e a todos os momentos dela através de seus equipamentos eletrônicos.

Atualmente, o Termo de Uso conforme apresentado no episódio teria sido considerado com sua finalidade desviada, podendo ser discutido judicialmente sobre sua ilegalidade, por infringir os princípios da finalidade e adequação, determinados no artigo 6º, inciso I e II, da lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.

Além de possivelmente infringir a LGPD, o Termo de Uso retratado no episódio poderia ser também discutido a partir das regras trazidas pelo próprio Código de Defesa do Consumidor, já que o CDC define que os contratos dessa natureza, similares ao que a protagonista “assinou” ao contratar o serviço de streaming, deverão conter informações claras e precisas sobre os seus termos.

Então, quando a Streamberry adiciona a cláusula de cessão de direitos de história de vida, de natureza diferente do objetivo principal do contrato, que era a de contratar os serviços da plataforma, é possível que isso seja entendido como uma maneira de privar o consumidor sobre a real natureza do documento, já que a circunstância de contratar um serviço e junto a isso acabar por autorizar o acesso a informações da sua própria vida não é nada comum, de modo que o consumidor acaba sendo pego de surpresa caso não esteja atento a cada linha do Termo de Uso. 

Mesmo assim, é de suma importância que você leia os Termos de Uso de todas as plataformas e aplicativos utilizados, uma vez que este é o instrumento que contém seus direitos ao utilizar a plataforma. Ao não ler, o usuário pode não ter conhecimento de seus direitos e obrigações ao utilizar a plataforma, podendo concordar a transmitir dados pessoais desnecessários, compartilhar esses dados com empresas terceiras, e até o desenvolvimento de seu perfil comportamental.

2. Como funciona a cessão de direitos de história de vida?

No direito brasileiro e internacional, é sim possível que você realize a cessão de seus direitos de história de vida, isto acontece em caso de documentários inspirados em fatos reais.

Assistindo ao episódio podemos reparar que foi este o instrumento realizado por Joan ao aceitar os Termos de Uso da plataforma, e como funciona a cessão de direitos de história de vida?

A cessão dos direitos de história de vida ocorre em um contrato específico, em que será determinado o valor a ser pago pelo licenciamento ou se será de forma gratuita, como poderão ser utilizados os direitos e que forma poderão ser transmitidos.

Portanto, diferentemente do que é retratado no episódio, em que a Joan acaba por “acidentalmente” ceder seus direitos de história de vida ao consentir com os Termos de Uso da plataforma Streamberry, na vida real, embora seja juridicamente possível ceder os direitos sobre contar a própria história de vida, isto acontece apenas por meio de muitas negociações prévias, com termos que detalham exatamente como será o uso da história de vida que a pessoa cedeu e sua respectiva limitação, caso exista.

Assim, o contrato de cessão de direitos de história de vida é um documento mais complexo e detalhado do que os Termos de Uso de uma plataforma de streaming, que envolve muita negociação e ajustes no instrumento contratual, dependendo do objetivo de cada projeto com a exploração dos direitos de história de vida da pessoa retratada.

3. Até que ponto uma pessoa pode ceder/licenciar seus direitos autorais envolvendo inteligência artificial?

O uso de Inteligência Artificial generativa em obras audiovisuais ainda é um assunto muito novo, sobre o qual existem mais discussões do que esclarecimentos.

No episódio da série, o telespectador consegue observar o incômodo que a atriz Salma Hayek sente ao notar o uso que fizeram da sua imagem a partir de um sistema de IA generativa, que acaba por gerar uma circunstância em que supostamente a atriz é filmada fazendo algo extremamente vexatório, coisa que ela mesma provavelmente não faria se estivesse atuando ou até mesmo no próprio cotidiano dela.

A personagem retratada por ela, ao observar a cena que construíram com IA, ressente ter fornecido autorização para que tal criação artificial pudesse ter sido realizada, e até chega a mencionar alguns outros artistas que têm feito o mesmo. Mas será que isso é mesmo uma tendência nas produções audiovisuais futuras?

Em termos tecnológicos, é possível que uma criação nesses termos aconteça. Não é raro, inclusive, sabermos sobre casos de trailer e curta-metragens criados exclusivamente por meio de inteligência artificial. Os próprios deep fakes já são realidade e podem ser observados em vídeos postados na internet.

Contudo, também sabe-se que o ato de atuar em uma produção audiovisual envolve a expressão da cultura de um povo, retratado na tela a partir de uma vasta equipe de pessoas engajadas na produção.

Pensando nisso, algumas organizações já começaram a se manifestar formalmente como sendo contrários a essa tendência, como é o caso da Interartis Brasil, associação de gestão coletiva do audiovisual que disponibilizou um comunicado em suas plataformas digitais com a recomendação de que artistas, intérpretes ou qualquer outro tipo de criador artístico não assinem contratos que contenham cláusulas que cedam suas vozes ou imagens para que sejam reformuladas ou readequadas por meio de ferramentas de inteligência artificial.

No ordenamento jurídico brasileiro, não existem artigos de leis vigentes que abordem o tema de maneira exata, então, é possível que haja essa tendência de existirem contratos que solicitem a autorização de qualquer forma de expressão social para que estes atributos humanos sejam utilizados por ferramentas de IA, geralmente do tipo generativa.

4. Conclusão

Sempre foi muito importante analisar cuidadosamente as cláusulas de qualquer contrato antes de assiná-lo, porém, o que este episódio de Black Mirror nos mostrou, e o que o desenvolvimento das novas tecnologias também tem nos mostrado, é que as consequências da falta de análise minuciosa pode ferir alguém em níveis que ultrapassam o prejuízo econômico, estando a própria imagem da pessoa em risco de ser retratada de uma maneira indesejada por ela.

Concluímos que por mais que o episódio trate de ficção, vários aspectos são realidade e aplicados no cotidiano do audiovisual, ou até mesmo, sendo discutido pelas classes profissionais.

Beatriz Junque
Advogada na PDMLaw. Especialista em Direito Digital e Compliance pelo Damásio/IBMEC. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Presidente da Comissão de Direito Digital da OAB Indaiatuba/SP, Cofundadora do Grupo de Estudos de Direito Digital- GEDD da PUC-Campinas.

Luisa Ponce
Advogada na PDMLaw. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Pós-graduanda em Direito Digital pelo ITS-UERJ. Cofundadora da Liga de Mercado Financeiro da PUC-Campinas

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