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PL 980/19: participação de empresas em recuperação judicial nos procedimentos licitatórios

Procedimentos licitatórios recentes dificultam a participação de empresas em recuperação judicial, com inabilitação automática ou desclassificação por falta de certidão negativa de recuperação judicial.

17/7/2023

Algumas das grandes e mais notórias empresas que atuam no mercado brasileiro nasceram, cresceram e se consolidaram a partir do cadastro/credenciamento e participação em procedimentos licitatórios junto a entes públicos e empresas estatais, estando grande parte do seu faturamento, naturalmente, vinculado aos contratos realizados sob a égide da lei 8.666/93.

Contudo, muitos dos procedimentos licitatórios mais recentes têm criado óbices à participação de empresas em recuperação judicial – seja por determinar a automática inabilitação de empresas submetidas ao procedimento da lei 11.101/05, seja pela desclassificação em razão da não apresentação de certidão negativa de recuperação judicial.

A esse respeito, alguns certames preveem restrições específicas para licitantes que estejam passando pelo processo judicial de reestruturação, criando limitações variadas, como, por exemplo:

“Qualificação Econômico-Financeira:

Certidão negativa de falência, recuperação judicial ou recuperação extrajudicial expedida pelo distribuidor da sede do licitante;

No caso de certidão positiva de recuperação judicial ou extrajudicial, o licitante deverá apresentar a comprovação de que o respectivo plano de recuperação foi acolhido judicialmente, na forma do art. 58, da lei nº. 11.101, de 09 de fevereiro de 2005, sob pena de inabilitação, devendo, ainda, comprovar todos os demais requisitos de habilitação.”

Participação no Processo de Contratação:

Está impedido de participar ou apresentar proposta neste processo de contratação o interessado que:

a) tenha sofrido decretação de falência ou dissolução ou se encontre em processo de recuperação judicial ou extrajudicial e no momento da apresentação de proposta ainda não tenha o seu plano de recuperação devidamente deferido ou homologado [...]”

De todo modo, fato é que as exigências exemplificadas maculam de forma contundente o espírito da lei 11.101/05 e, em especial, o entendimento de há muito sedimentado pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Tribunal de Contas da União, segundo o qual empresas em recuperação judicial podem participar de processos licitatórios sem precisar apresentar certidão negativa de recuperação judicial como condição para a sua habilitação.

Nesse sentido, o artigo 52, II, da LFRE é peremptório ao prestigiar os princípios da preservação e da função social da empresa e, com isso, viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeiro do devedor:

Art. 52. Estando em termos a documentação exigida no art. 51 desta lei, o juiz deferirá o processamento da recuperação judicial e, no mesmo ato:

[...] II - determinará a dispensa da apresentação de certidões negativas para que o devedor exerça suas atividades, observado o disposto no § 3º do art. 195 da Constituição Federal e no art. 69 desta lei;

Por sua vez, julgados do STJ1 e do TCU2 também têm sido deveras esclarecedores, sendo mais do que suficientes para rechaçar de plano a inabilitação de empresas submetidas à recuperação judicial e/ou a sua desclassificação pela não apresentação de certidões negativas de recuperação judicial:

De mais a mais, tem se tornado prática comum em diversos procedimentos licitatórios a imposição de critérios de habilitação desarrazoados, apartados das disposições previstas pela lei 11.101/05 e contrários às diretrizes já estabelecidas pelo STJ – com a única finalidade de impedir a participação/habilitação de empresas em crise nas licitações, pelo simples fato de se encontrarem em recuperação judicial.

Nesse contexto é que, no último mês de junho, a Comissão de Indústria, Comércio e Serviços da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de lei 980/19, que impede a inabilitação de licitantes em recuperação judicial. Agora, segundo o texto, caberá ao poder público analisar a viabilidade econômica da empresa durante a fase de habilitação.

O relator do projeto, deputado Marangoni (União-SP), deu parecer favorável, destacando a importância de permitir que essas empresas participem das licitações, considerando a preservação da atividade econômica e dos postos de trabalho, uma vez que, embora não seja prevista na legislação, algumas licitações pelo país têm criado restrições e exigido a apresentação de certidão negativa de recuperação judicial para o prosseguimento nos certames.

A proposta, de autoria do ex-deputado Darci de Matos (SC), altera a lei de Falências e a lei de Licitação. Ela se baseia na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que já reconheceu que a falta de apresentação da certidão negativa de recuperação judicial não pode ser motivo exclusivo de inabilitação de uma empresa.

O projeto, que tramita em caráter conclusivo e ainda será analisado pelas comissões de Finanças e Tributação e de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ), reflete nada mais do que a carga normativa e principiológica da lei 11.101/05, a lei de Falências, Recuperações Judiciais e Extrajudiciais, que privilegia a superação da crise e preservação das atividades empresariais.

Negar à empresa recuperanda, pessoa jurídica em estado de crise econômico-financeira, o direito de participar de licitações públicas, única e exclusivamente pela ausência de entrega da certidão negativa de recuperação judicial, ou por estar submetida a tal procedimento, vai de encontro ao sentido atribuído pelo legislador ao instituto recuperacional.

A recuperação judicial de empresas visa à preservação das suas atividades e à manutenção sua função social. Sendo assim, é ilógico e contraditório que o Poder Público e seus entes criem impeditivos para a participação da Recuperanda que impactem diretamente o seu potencial de faturamento, a viabilidade econômica de sua reestruturação e, por consequência, comprometam o resultado útil da recuperação judicial.

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1 TRIBUTÁRIO. ADMINISTRATIVO. EXIGÊNCIA DE APRESENTAÇÃO DE CERTIDÃO NEGATIVA DE DÉBITO. IMPOSSIBILIDADE. SOCIEDADE EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL.

1. Hipótese em que o Tribunal local decidiu que no caso dos autos a empresa em Recuperação Judicial estava dispensada de apresentar certidões negativas, inclusive para contratação com Poder Público.

2. O STJ vem entendendo ser inexigível, pelo menos por enquanto, qualquer demonstração de regularidade fiscal para as empresas em recuperação judicial, seja para continuar no exercício de sua atividade (já dispensado pela norma), seja para contratar ou continuar executando contrato com o Poder Público. Nos feitos que contam como parte pessoas jurídicas em processo de recuperação judicial, a jurisprudência do STJ tem-se orientado no sentido de se viabilizarem procedimentos aptos a auxiliar a empresa nessa fase. Nesse sentido: REsp. 1.173.735/RN, Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 9.5.2014; AgRg na MC 23.499/RS, Rel. Ministro Humberto Martins, Rel. p/ Acórdão Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 19.12.2014.

3. Registro que o novo regime trazido pela lei 13.043/2014, que instituiu o parcelamento específico para débitos de empresas em recuperação judicial, não foi analisado no acórdão a quo, uma vez que foi proferido em data anterior à vigência do mencionado normativo legal.

4. Agravo Regimental não provido.

(STJ – Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial: AgRg no AREsp. 709.719-RJ 2015/0108222-9 – Relator: Ministro Herman Benjamin, julgado em 13/10/2015)

2 LICITAÇÃO. QUALIFICAÇÃO ECONÔMICO-FINANCEIRA. EXIGÊNCIA. HABILITAÇÃO DE LICITANTE. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. 

Admite-se a participação, em licitações, de empresas em recuperação judicial, desde que amparadas em certidão emitida pela instância judicial competente afirmando que a interessada está apta econômica e financeiramente a participar de procedimento licitatório. [...] Não se trata de vedar a exigência editalícia da certidão negativa de falência ou recuperação judicial, e sim a relativização durante a fase de julgamento, conforme o caso e as circunstâncias da fase do processo de recuperação judicial, cabendo a empresa em tal situação demonstrar sua viabilidade econômica.

(TCU – Acórdão nº. 1201/2020. Plenário. Relator: Ministro Vital do Rêgo)

Lucas Gavaza
Sócio do escritório Freire, Gavaza & Lima Advogados. Advogado atuante na área de Reestruturação, Insolvência e NPL/Distressed Assets. Pós-Graduado em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestre em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas - FGV.

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