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Reflexão sobre a aplicação do protocolo de julgamento com perspectiva de gênero

O "Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero" emerge como uma ferramenta essencial a ser adotada pelos operadores do Direito, especialmente após o término de um relacionamento conjugal.

14/7/2023

O fim de um relacionamento conjugal não é uma situação agradável para as pessoas ali envolvidas. No entanto, para as mulheres, essa experiência pode ser particularmente difícil, especialmente na retomada da sua vida social e na carreira, considerando as desigualdades de gênero no relacionamento e na sociedade em geral.

Ao longo dos anos, os papéis das mulheres no casamento e no trabalho sofreram profundas modificações. Durante muito tempo, em decorrência de uma sociedade patriarcal, a vida conjugal e familiar era construída em torno de uma divisão clara de papéis pautada na diferença de poder entre os sexos. À mulher cabia os papéis de esposa, mãe e de responsável exclusiva pelos afazeres domésticos, sendo sistematicamente subjugadas pelos homens.

Embora tenham ocorrido avanços na desconstrução desses estereótipos tradicionais, especialmente com a entrada das mulheres no mercado de trabalho, ainda se pode observar que as relações conjugais contemporâneas permanecem amplamente influenciadas por papéis socialmente estabelecidos. Nesse contexto, as mulheres muitas vezes são designadas com o papel de cuidadoras familiares, enquanto os homens são vistos como provedores financeiros.

Isso porque, num contexto de sociedade que ainda está sob os padrões masculinos e patriarcais, de modo geral, as mulheres ainda são as cuidadoras de referência de suas famílias e dos filhos, de modo que após o fim do relacionamento conjugal, são encontradas dificuldades na retomada da vida pessoal e da carreira, onde seus salários continuam sendo inferiores aos dos homens (ainda que ocupem a mesma função), não têm as mesmas oportunidades de emprego, além de se depararem com estresse e sobrecarga na tentativa de conciliar as demandas do trabalho com os cuidados com a casa e a questão da maternidade.

Além disso, essas adversidades têm um impacto negativo na formação da identidade feminina, uma vez que emoções de insucesso, responsabilidade e desamparo podem ser mais evidentes quando as mulheres (inclusive mães) percebem suas competências parentais diminuídas ou inadequadas devido ao término da relação conjugal.

E ainda. A disparidade de gênero se evidencia em comportamentos discriminatórios nos quais os direitos e a dignidade humana das mulheres são transgredidos por meio de múltiplas formas de opressão e violência, abrangendo diferentes aspectos (físico, moral, psicológico e econômico), o que, sem dúvida, é agravado após o término da relação conjugal.

No âmbito legislativo, o Código Civil de 1916, previa expressamente tratamento discriminatório em relação à mulher, que eram privadas de seus direitos civis básicos, tais como alienar imóveis, administrar bens, exercer profissões, sem que houvesse a necessária autorização do marido. Somente em 1962, com a promulgação do Estatuto da Mulher Casada, é que houve um avanço significativo no Brasil, conferindo às mulheres a capacidade civil plena. A despeito disso, somente com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que finalmente se estabeleceu a preocupação expressa em igualar os direitos de homens e mulheres, consoante os artigos 3º, inciso IV; 5º, inciso I; 7º, incisos XVIII, XX e XXX; 40, inciso III, alíneas a e b; e 226, parágrafo 5°.

Outro marco na legislação brasileira, talvez o mais abrangente e essencial documento legislativo elaborado com o objetivo de proteger os direitos das mulheres, levando em consideração a perspectiva de gênero, foi a Lei Maria da Penha (Lei  11.340/06), a qual foi recentemente alterada pela lei 14.550/23, para dispor sobre as medidas protetivas de urgência e estabelecer que a causa ou a motivação dos atos de violência e a condição do ofensor ou da ofendida não excluem a aplicação da Lei.

No campo do direito penal, foi criada a Lei do Feminicídio (Lei 13.104/15), devido à persistência da violência contra a mulher devido ao patriarcado e machismo, ainda enraizados e que favorecem a impunidade.

Contudo, está longe de ser realidade que as mulheres tenham atingido a igualdade e proteção concebida pela lei.

A despeito do amparo da Constituição Federal e da legislação ordinária que consagram a igualdade entre os gêneros, o cenário de discriminação das mulheres e de desigualdade persiste na atuação dos operadores de direito e nas decisões proferidas pelo judiciário brasileiro, sobretudo diante dos reflexos da sociedade patriarcal.

Assim, como forma de combate à desigualdade de gênero, em 2021, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) lançou o “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero”, para colaborar com a implementação das políticas relativas ao Enfrentamento à Violência contra as Mulheres pelo Poder Judiciário e ao Incentivo à Participação Feminina no Poder Judiciário, o qual se trata de instrumento e guia para que os julgamentos, nos diversos âmbitos do judiciário, assegurem o direito à igualdade e à não discriminação das mulheres. A adoção do “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero” foi incentivada pelo CNJ em 2022, por meio da edição da Recomendação 128. Todavia, o documento somente sugeria a adoção das medidas.

Assim, em 17 de março de 2023, foi instituída a Resolução do CNJ 492/202, que obriga a observância das diretrizes do “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero” aos órgãos do Poder Judiciário.

Em casos de divórcio ou de dissolução de união estável, quando se está em discussão diversas vertentes pós fim do relacionamento conjugal, tais como a partilha de bens, alimentos aos filhos ou entre os ex-cônjuges, reputa-se necessária a utilização do “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero”, sobretudo para orientar a necessária adequação das questões procedimentais de acordo com a realidade concreta da mulher envolvida, a fim de que sejam superadas as desigualdades de gênero e conceitos discriminatórios existentes.

Recentemente, em 21 de junho de 2023, no julgamento da Apelação Cível 1002714-33.2017.8.26.0417, pela 7ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, foi utilizado o “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero”, cujo trecho do voto de relatoria da Desembargadora Lia Porto, merece destaque:

“Atividades desempenhadas pelas partes direcionada à manutenção do vínculo, à construção da família e à consolidação da affectio maritalis também devem caracterizar o esforço comum Conforme restou estabelecido na r. decisão de fls. 401/402, “o esforço comum não diz respeito apenas a bens materiais, ou ao valor que cada companheiro empregou no bem adquirido, mas também à contribuição moral, afetiva e psicológica. Nesse sentido, ainda que a requerente não tenha empregado seu patrimônio na Farmácia São Marcos, a existência do relacionamento demonstra o suporte dado pela autora”. Não há espaço, nesse sentido, para invisibilizar as atividades desempenhadas por mulheres. Nos termos do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, do CNJ, “independentemente do espaço (na esfera pública ou privada) e da forma (remunerado ou não) pela qual o trabalho de cuidado é desenvolvido, ele é predominantemente realizado por mulheres e, em geral, desvalorizado e invisibilizado”. O cuidado com os negócios, com a família, com o sucesso do companheiro, enfim, também deve ser visto como esforço comum para fins de meação dos bens adquiridos na constância da união. Não se pode permitir que a narrativa sobre a ausência de contribuição financeira, unicamente, seja instrumento para excluir mulheres da partilha de bens.”

Nota-se que, neste julgado, a partir do “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero”, houve tratamento das medidas de gênero a fim de reconhecer o esforço invisível das mulheres durante o relacionamento conjugal, que não pode ser ignorado ou diminuído após o fim da união.

Apesar de existirem leis de garantias e de proteção às mulheres, vê-se que a aplicação do “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero” é instrumento imprescindível para se promover a igualdade de gênero e a justiça social, sobretudo após o término de um relacionamento conjugal, devendo ser observado por todos os operadores do Direito, de modo substancial.

Somente com esforços contínuos e uma abordagem sensível às questões de gênero que poderemos alcançar uma sociedade em que todas as mulheres sejam verdadeiramente empoderadas e tenham seus direitos protegidos.

Vanessa Martins Ferreira
Advogada sênior na área cível no GHBP Advogados; pós-graduanda em Direito das Famílias e Sucessões pelo IBDFAM e pós-graduada em Direito Processual Civil pela FAAP. Membro da Comissão de Direito das Famílias e Sucessões da OAB Campinas.

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