Recentemente, entrou em vigor a lei 14.592/23, a qual positivou as previsões da MP 1.159/23, para, em seus arts. 6º e 7º, alterar a redação do art. 3º, das leis 10.637/02 e 10.833/03, as quais instituíram o regime não-cumulativo da Contribuição ao PIS e da Cofins.
Tal alteração provocou sensível aumento na tributação do PIS e da Cofins para as empresas submetidas ao regime não-cumulativo, por obriga-las a excluir da apuração dos créditos das contribuições sociais em análise o ICMS incidente sobre as aquisições de matérias-primas, produtos intermediários, materiais de embalagem, etc.
Até então, a legislação permitia às empresas a tomada de créditos sobre o valor do ICMS nessas aquisições, para não onerar o consumidor final da cadeia produtiva com o impacto tributário no preço.
Tal lógica advém do princípio da não-cumulatividade, previsto na Constituição com relação ao IPI (art. 154, I), ao ICMS (art. 155, § 2º, I), e às contribuições sociais (art. 195, § 12 – inserido pela EC 42/03).
A não-cumulatividade, por sua vez, pode ser entendida como uma técnica de limitação do poder de tributar dos entes federativos sobre as cadeias de produção e circulação mais extensas, fazendo com que, a cada etapa da cadeia, o imposto incida somente sobre o valor adicionado nessa etapa - justamente, por isso, na maioria dos países, é denominado de IVA (Imposto sobre Valor Agregado ou adicionado).
A metodologia do cálculo decorre da própria não cumulatividade do PIS e da COFINS que, diferentemente do IPI/ICMS (tributo contra tributo), permite a desoneração da cadeia produtiva das empresas, autorizando o crédito sobre qualquer despesa operacional utilizada em sua produção ou prestação de serviço, considerando o valor total da nota (“base sobre base”, incluindo o ICMS, porque o imposto representa um custo enfrentado pelo contribuinte e integra o preço da mercadoria em cada etapa produtiva.
Entretanto, não permitiu o constituinte que o legislador ordinário negasse vigência ao núcleo do princípio da não-cumulatividade. E esse núcleo representa a criação de um sistema de compensação de créditos (seja de “imposto sobre imposto” ou “base sobre base”) a fim de que a incidência cumulativa de tributos em diversas etapas de uma cadeia produtiva não implique em impacto econômico mais severo sobre o consumidor final. Afirma Rodrigo Koehler Ribeiro que1:
“O núcleo do princípio (que é o direito do contribuinte creditar-se do valor recolhido a título do imposto nas operações anteriores da cadeia produtiva) deve permanecer intacto, sendo inconstitucional qualquer disposição do legislador complementar que colida com o mesmo. Então, o “regime de compensação do imposto”, que será definido pelo legislador complementar, conforme o dispositivo constitucional acima citado, consiste tão-somente nos aspectos temporal e pessoal da apuração do imposto (sua periodicidade e a forma de recolhimento pelo contribuinte).”
Não se pode negar, portanto, a aproximação do princípio da não-cumulatividade com a realização dos princípios da capacidade contributiva e da vedação ao confisco, que limitam o poder de tributar do Estado de acordo com a proporção do ônus econômico aos cidadãos.
Nesse ínterim, o papel do custo de aquisição na norma que constitui ao contribuinte o direito aos créditos de PIS e Cofins é o da base de cálculo, uma vez que o aspecto quantitativo desta regra será calculado sobre este mesmo custo de aquisição.
Negar, portanto, a possibilidade de inclusão de um tributo incidente em cada operação da cadeia produtiva, e que não pode ser destacado do custo de aquisição na apuração de créditos, representa, invariavelmente, negar a não-cumulatividade, aumentar a tributação das contribuições sociais incidente nesta cadeira e, ultima ratio, onerar ainda mais o consumidor final.
Importa destacar que a compatibilidade de uma determinada lei com a Constituição é fundamental para o equilíbrio do sistema jurídico. Desde o marco teórico de Konrad Hesse, a Constituição passou a ter força normativa a partir de três premissas básicas: o condicionamento recíproco existente entre a Constituição jurídica e a realidade político-social; os limites e possibilidades da vigência da Constituição jurídica; e os pressupostos de eficácia da Constituição2.
Inserida esta força normativa da Constituição no sistema escalonado do direito positivo, apresentam-se as normas constitucionais não somente como fundamento de validade de todas as outras, como também impõe necessariamente a sua observância plena e irrestrita, o denominado princípio da supremacia da Constituição.
Sobre ele, assevera Luis Roberto Barroso que “é a nota mais essencial do processo de interpretação constitucional. É ela que confere à Lei Maior o caráter paradigmático e subordinante de todo o ordenamento, de forma tal que nenhum ato jurídico possa subsistir validamente no âmbito do Estado se contravier seu sentido”3.
Portanto, de acordo com a supremacia que a Constituição exerce no sistema jurídico, ainda que uma determinada lei tenha, hipoteticamente, o âmbito de validade de disciplinar determinada apuração de tributo, este mesmo âmbito de validade está limitado às normas constitucionais afeitas ao sistema tributário nacional.
Porém, como dito anteriormente, sendo a Constituição o fundamento de validade das leis ordinárias, de acordo com seu conteúdo material, resta inválida a lei na medida em que nega vigência a princípios constitucionais de eficácia plena, impossibilitando a sua própria vigência no sistema jurídico. Vejamos os ensinamentos do Professor Roque Carrazza4:
“De fato, em nosso ordenamento jurídico, os tributos só podem ser instituídos e arrecadados com base em lei. (...)
No direito positivo pátrio o assunto foi levado às últimas consequências, já que uma interpretação sistemática do Texto Magno revela que só a lei ordinária (lei em sentido orgânico-formal) pode criar ou aumentar tributos. Dito de outro modo só à lei -tomada na acepção técnico-específica de ato do Poder Legislativo, decretado em obediência aos trâmites e formalidades exigidos pela Constituição - é dado criar ou aumentar tributos.”
Nesse ínterim, é preciso estabelecer as premissas que balizam a ideia de que existe um limite objetivo e aferível ao caráter arrecadatório da tributação, pois, a partir deste limite, pode-se concluir que a capacidade contributiva relativa pode ser atestada objetivamente, de modo racional, a partir dos próprios elementos do sistema do direito positivo.
Por um lado, é notável e indiscutível a necessidade do Estado em arrecadar recursos para promoção dos objetivos sociais pretendidos pela Constituição, e, assim, de exigirem tributos dos cidadãos para tanto.
Entretanto, o que se pretende demonstrar é a existência de um limite objetivo para tanto e, nesse contexto, é impossível ignorar a discussão doutrinária acerca do mínimo existencial, tido por muitos como parte do núcleo essencial do próprio princípio da dignidade da pessoa humana5.
O fato é que o critério quantitativo da regra-matriz de incidência dos tributos (base de cálculo e alíquota), às vezes, é insuficiente para aferir se aquela obrigação tributária é legítima ou não, a partir do filtro da vedação ao confisco e da capacidade contributiva. Assim, qualquer medida tributária com efeito de confisco deveria, automaticamente, ser declarada inválida ou sequer ser inserida no ordenamento jurídico.
Curioso observar, contudo, que, caso o atual regime de apuração dos créditos de PIS/Cofins estivesse “causando esvaziamento” no sistema de Seguridade Social, não teria o país, nos últimos 20 anos, ter conseguido implementar tantas políticas públicas na área social, diminuindo a miséria, a subnutrição, o acesso à saúde e saneamento básicos, e etc.
A sanha arrecadatória do Estado brasileiro é tão grande que se utiliza de tributos de natureza tão especial para subverter o sistema e aumentar o ônus tributários aos contribuintes, incluindo as empresas, mas também os cidadãos comuns, consumidores finais.
As contribuições são espécies tributárias vinculadas, ou seja, demandam determinada contraprestação ou atividade estatal através da sua exação. Logo, a arrecadação dos tributos vinculados atende a uma determinada finalidade, que resulta uma atividade estatal específica. Neste sentido, “No caso específico das contribuições, a regra-matriz de incidência (norma de conduta) deve prever, expressamente, não só a materialidade, mas também a finalidade e a destinação do produto de sua arrecadação, em respeito à norma constitucional de competência”6.
Porquanto não se pode negar a legalidade formal da promulgação da lei 14.592/23, é inegável e notória a sua incompatibilidade com normas constitucionais de eficácia plena e obrigatória, por mitigar o princípio da não-cumulatividade das contribuições sociais, negar o conteúdo material do princípio da legalidade e do corolário da segurança jurídica e, claro, a própria supremacia da Constituição no direito brasileiro.
Promover a majoração de tributos ao contribuinte sem observar os fundamentos jurídicos e normativos da incidência tributária é praxe para a Administração Pública, mas representa uma mácula no próprio Estado Democrático de Direito.
----------
1 RIBEIRO, Rodrigo Koehler. O princípio da não-cumulatividade no Direito Tributário Brasileiro. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n.18 , jun. 2007. Disponível em: https://revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/Edicao018/Rodrigo_Ribeiro.htm
2 HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1991.
3 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
4 CARRAZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 22ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
5 “O mínimo existencial empresta imunidade à incidência da norma tributária em virtude da ausência de signo presuntivo de renda ou riqueza; por sua vez, o não confisco é um marco limitador da capacidade contributiva com o escopo de evitar o esgotamento da renda ou riqueza, proporcionando o respeito à propriedade privada e a continuidade da tributação para a manutenção e desenvolvimento do Estado.” (OLIVEIRA, Alexandre Machado de; BORGES, Antônio de Moura. Limitações ao Princípio da capacidade contributiva: Minimo Existencial e Confisco. Conpedi Law Review. 2.180.10.26668/2448-3931_conpedilawreview/2016.v2i4.3660. p. 186. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/329333616_Limitacoes_ao_princípio_da_Capacidade_Contributiva_Minimo_Existencial_e_Confisco)
6 ZOMER, Sílvia Regina. Reflexões sobre o critério constitucional da destinação na conformação da regra-matriz de incidência tributária das contribuições especiais. In: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=10268
----------
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
CARRAZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 22ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1991
OLIVEIRA, Alexandre Machado de; BORGES, Antônio de Moura. Limitações ao Princípio da capacidade contributiva: Minimo Existencial e Confisco. Conpedi Law Review. 2.180.10.26668/2448-3931_conpedilawreview/2016.v2i4.3660. p. 186. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/329333616_Limitacoes_ao_princípio_da_Capacidade_Contributiva_Minimo_Existencial_e_Confisco
RIBEIRO, Rodrigo Koehler. O princípio da não-cumulatividade no Direito Tributário Brasileiro. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 18, jun. 2007. Disponível em: https://revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/Edicao018/Rodrigo_Ribeiro.htm
ZOMER, Sílvia Regina. Reflexões sobre o critério constitucional da destinação na conformação da regra-matriz de incidência tributária das contribuições especiais. In: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=10268