No dia 2 de junho de 2023 o Poder Executivo, através do Ministério da Fazenda e da Secretaria de Reformas Econômicas, enviou ao Congresso Nacional o PL 2.925/23. O PL já está em tramitação na Câmara dos Deputados e, se aprovado, promoverá alterações na Lei da CVM (lei 6.385/76) e na Lei das S.A. (lei 6.404/76), especialmente sobre o sistema de tutela de direitos de investidores do mercado de valores mobiliários.
A justificativa apresentada pelo atual Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, é a de “aperfeiçoar os mecanismos de tutela privada de direitos de acionistas minoritários” contra atos de acionistas controladores e administradores. Com isso, o PL quer “conferir maior segurança jurídica” aos investidores.
Por essa razão, o Projeto prevê modificações relevantes na atual estrutura de defesa dos interesses dos investidores, como a supressão da exoneração automática dos administradores prevista no art. 134, §3º da Lei das S.A. e o aumento do prêmio do art. 246, §2º da Lei das S.A. de 5% para 20%.
Na seara procedimental, chamam atenção as alterações nos procedimentos arbitrais coletivos. O PL propõe a criação do art. 27-H à Lei da CVM para criar a chamada “ação civil coletiva” de responsabilidade para defesa dos interesses individuais homogêneos de todos os titulares de valores mobiliários da mesma espécie e classe que eventualmente tenham sofrido danos por infrações à lei ou à regulamentação do mercado.
Esta ação civil coletiva foi inspirada no microssistema do Código de Defesa do Consumidor e da lei 7.913/89 para a tutela coletiva. Mas, ao contrário da legislação já existente, na qual a legitimidade para propositura das ações coletivas é transferida a entidades (União, Ministério Público, associações...), o PL prevê que os investidores poderão se agrupar diretamente para propositura da ação.
Basta que o investidor (ou investidores) detenha 2,5% dos valores mobiliários da mesma espécie ou classe ou possua valores mobiliários de valor igual ou superior a R$ 50 milhões, e haverá legitimidade para propositura da ação coletiva.
O PL ainda previu que esta ação coletiva poderá ser submetida à arbitragem, desde que prevista cláusula compromissória nos estatutos, regulamentos, escrituras e instrumentos de emissão dos valores mobiliários. Nesses casos, o procedimento arbitral deverá ser público por disposição legal (art. 27-I, inciso III do PL). O PL deixou ao regulador (CVM) a tarefa de regulamentar as hipóteses de exceção e os limites da previsão de publicidade.
A lei brasileira não prevê a confidencialidade das arbitragens. Ao longo dos anos, contudo, estabeleceu-se, como prática costumeira, a adoção do sigilo nos procedimentos. Por essa razão, grande parte dos regulamentos das câmaras de arbitragem brasileiras e internacionais, assim como a cláusulas arbitrais, prevê a confidencialidade dos procedimentos de antemão.
Por outro lado, é discutível (e certamente esse debate surgirá em breve) se o procedimento criado pelo PL constitui tutela coletiva em sentido estrito, e não apenas uma ação multipartes. Mas, sendo o primeiro (ao que parece ser a intenção do Projeto), a criação de um novo mecanismo para defesa coletiva dos interesses dos titulares de valores mobiliários demandará, de fato, ajustes na prática comercial das arbitragens.
Isso porque, em decorrência do direito de ação previsto constitucionalmente, doutrina e jurisprudência há muito tempo aludem ao “princípio da informação e publicidade adequadas”1 como pilares da tutela coletiva. A publicidade dos procedimentos coletivos tem assento constitucional.
Por isso, ao equiparar a ação coletiva do art. 27-H a uma tutela coletiva em sentido estrito, dificilmente o PL apresentado andaria em sentido contrário, sob pena de ser rejeitado por potencial inconstitucionalidade.
Não é inédito, nem recente, o movimento de mitigação do sigilo das arbitragens coletivas societárias. Em 2021, a CVM realizou audiência pública para debater a alteração da regulamentação vigente em relação à comunicação de demandas societárias ao mercado.2 Esses debates culminaram na edição, em 2022, da Resolução 80 em conjunto com o Ministério da Economia (que apresentou o PL em 2/6/23), cujo Anexo I prevê a divulgação ao mercado da instauração de demandas societárias – inclusive arbitragens.
A justificativa para esse movimento, dada pelo atual Ministro da Fazenda, é a possibilidade de que os conflitos societários entre acionistas minoritários e administradores ou acionistas controladores podem “afetar os interesses de todos os participantes do mercado de valores mobiliários”.
A justificativa também é debatível. Via de regra, os interesses discutidos nestas demandas serão caracterizados como individuais homogêneos – ou seja, de origem comum e restritos aos titulares de valores mobiliários da classe ou espécie envolvida na disputa, ainda que numerosos. Dificilmente uma disputa desta natureza será transindividual e afetará a todo o mercado (apesar de não ser inimaginável).
Isso não significa, contudo, que a publicidade das demandas arbitrais coletivas não tenha outros aspectos positivos, como a redução da assimetria informacional e maior efetividade da responsabilização, além da possibilitação de criação de uma jurisprudência arbitral.
Diga-se, por fim, que o PL também abordou questões tipicamente debatidas quando se trata de arbitragem coletiva societária, como os efeitos da coisa julgada e litispendência. Contudo, a autorização para submissão dessas demandas ao juízo arbitral deixou em aberto o que efetivamente se aplica à arbitragem, ao prever que os procedimentos arbitrais estarão sujeitos aos procedimentos da ação coletiva “no que for compatível”.
Apesar dos debates que podem surgir da redação dos dispositivos, o PL é um importante passo na regulamentação das arbitragens coletivas societárias. Não se pode ignorar que atualmente existem no Brasil arbitragens societárias com caráter tipicamente coletivo. A regulamentação dos procedimentos aplicáveis a este tipo de demanda traz maior segurança jurídica aos investidores e, consequentemente, fortalecerá o mercado de valores mobiliários.
----------
1 DIDIER JR., Fredie; e ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processo Civil: processo coletivo. 9. ed. Salvador, JusPodivm, 2017, pp. 118/119; STJ, REsp 1.594.024/SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, DJe 5/12/18; STJ, Decisão Monocrática em TutPrv no Recurso em Mandando de Segurança 61.306 – RJ, Ministro João Otávio de Noronha, 4/2/20.
2 Disponível em: https://conteudo.cvm.gov.br/audiencias_publicas/ap_sdm/2021/sdm0121.html