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Demandas fundadas unicamente na “palavra do consumidor” e a hermenêutica jurídica como instrumento a favor das instituições financeiras

Cerca de 80% das transações bancárias, no Brasil, são realizadas de forma digital. Tal fato é de relevância estratégica para os departamentos jurídicos das instituições financeiras, especialmente quando se em demandas fundadas unicamente na “palavra do consumidor”, nas quais a hermenêutica jurídica se mostra como um instrumento fundamental.

6/7/2023

Ao longo das últimas décadas, as “[...] relações jurídicas – relações de consumo, por exemplo – adaptaram-se ao universo digital, passando a ter etapas digitais e, até mesmo, a serem firmadas de forma totalmente digital, sem a presença física dos contratantes (consumidor e fornecedor, no caso) [...]”1. Ou seja, muitas relações jurídicas, atualmente, não são formalizadas por meio de um instrumento de papel com a rubrica e a assinatura apostas de próprio punho pelos envolvidos, na presença de testemunhas (se o caso), mas sim por meio de autenticação/assinatura eletrônica por meio do uso de senha, código, biometria, certificado, de forma digital e on-line, a qualquer hora, de qualquer lugar do planeta, sem a intervenção de uma terceira pessoa.

Se você abrir, agora, o aplicativo de internet banking da instituição financeira em que você tem maior movimentação financeira, provavelmente encontrará oferta de crédito imediato, que poderá ser contratado por meio do próprio aplicativo (sem a intervenção do gerente, sem a necessidade de comparecimento à agência bancária, sem a necessidade de assinatura em documentos físicos), com a liberação imediata do dinheiro na sua conta bancária, por meio de contratação com autenticação/assinatura eletrônica do correntista.

Liberado o crédito contratado, você terá a possibilidade de, dentro do limite diário, fazer, por exemplo, uma transferência instantânea via PIX - para pagar uma dívida, ajudar um familiar, entre outras possibilidades -, também sem a intervenção direta de algum preposto da instituição financeira. Tudo isso -dependendo do aparelho celular, da velocidade da internet e da habilidade da pessoa - pode ser realizado em menos de dois minutos – o que, num passado não muito distante, demoraria horas ou dias, a depender do caso, para concluir todas as transações.

Importa destacar, incremento da contextualização fática, que, atualmente, segundo a Pesquisa Febraban de Tecnologia Bancária, 80% das transações bancárias no Brasil são realizadas por meios digitais. Neste sentido, as transações bancárias devem ser enxergadas tais como são em sua maioria atualmente: Digitais2!

Pois bem, é importante lembrar, brevemente, que o Código Civil estabelece que a validade do negócio jurídico requer agente capaz; objeto lícito, possível, determinado ou determinável; e forma prescrita ou não defesa em lei (art. 104), e que “a validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir” (art. 107). Além disso, estabelece que a interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que, dentre outros (art. 113): “I – for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio; II – corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio; III – corresponder à boa-fé”.

Nesse sentido, é correto afirmar que o fato de um determinado negócio jurídico não estar consubstanciado num instrumento físico escrito e assinado de próprio punho pelas partes, não o invalida de plano.

Pode parecer uma afirmação óbvia para alguns. Entretanto, ela se faz necessária, tendo em vista que há quem já tenha afirmado – em sentença, num passado recentíssimo - que a comprovação - mediante a apresentação do registro de acesso e transação -, pela instituição financeira, no sentido de que a transação impugnada havia sido realizada com autenticação/assinatura eletrônica não é suficiente para comprovar a contratação, já que ausente instrumento assinado pelo correntista.

A evolução tecnológica e a adaptação das relações e negócios jurídicos a ela proporcionaram a facilidade de, por exemplo, realizar transações bancárias em minutos – até mesmo, em segundos, a depender da situação -, de qualquer lugar do planeta. Por outro lado, há aqueles (as) que, maliciosamente, podem utilizar de subterfúgios para tentarem obter vantagem indevida sobre as instituições financeiras. Explicamos:

Imagine que uma pessoa formaliza, por meio do aplicativo de internet banking, a contratação de empréstimo bancário, uma transferência bancária, um pagamento, entre outras operações possíveis, e depois, arrependida, mal intencionada e/ou mal orientada, sem sequer fazer contato pretérito com a instituição financeira, propõe ação visando o cancelamento da operação sob o argumento de que não a reconhece, sem, entretanto, apresentar qualquer indício ou comprovação de irregularidade na transação, bem como a condenação da instituição ao pagamento de indenização por dano material e/ou moral.

Nessa situação a instituição financeira terá como prova o registro (log) de acesso e autenticação da operação, que conterá as informações de acesso do correntista na plataforma digital por meio de uso de senha, código, biometria, entre outras possibilidades. O consumidor, por sua vez, terá a sua palavra no sentido de que não reconhece a transação e que, então, decorreria erro ou fraude.

Situações como essa podem gerar demandas judiciais que são fundadas, unicamente, na palavra do correntista/consumidor/requerente, devendo  aqueles que nelas atuarem, mas especialmente o juízo, ter atenção redobrada, tendo em vista que se o Judiciário considerar que para a caracterização de responsabilidade das instituições basta a alegação do consumidor no sentido de que teria, por exemplo, sido vítima de fraude, mesmo diante de circunstâncias que, legitimamente, fazem crer que a operação ocorreu dentro dos padrões normais de segurança – uso de senha ou código de segurança na operação realizada; compatibilidade da operação com a movimentação financeira da conta; e da inexistência de comunicação de ocorrência de perda, furto ou roubo de cartão, documentos pessoais, etc. – e normalidade, a sociedade como um todo poderá ser colocada numa posição delicada e temerária, já que pessoas mal intencionadas e/ou orientadas, podem vir a utilizar de subterfúgios objetivando se esquivarem das obrigações bancárias assumidas.

Nesse sentido, cumpre lembrar que, em termos de responsabilidade civil, mesmo nos casos de responsabilidade objetiva, para efeito de responsabilização, é indispensável que haja a prática de ato pelo suposto ofensor e a existência de nexo causal entre o ato e o dano supostamente suportado pelo (a) ofendido (a).

Em vista disso, em situações como a acima exposta, é importante que a instituição financeira fundamente adequadamente a impossibilidade de inversão do ônus da prova, destacando a diabolicidade de eventual decisão neste sentido, já que, diante de uma situação em que os registros (logs) evidenciam que a operação foi realizada dentro dos padrões e circunstâncias normais de segurança e consumo, a instituição financeira se verá diante de uma situação difícil, já que não há como fazer prova de algo que não existiu (o que pode favorecer indevidamente pessoas mal intencionadas e/ou mal orientadas); e, no mérito, a inexistência de elementos que evidenciem irregularidade na transação impugnada, bem como a inexistência de fortuito interno capaz de ensejar a sua responsabilização, sempre com destaque ao fato de o (a) requerente não ter feito prova do fato constitutivo do seu direito.

Em vista disso, quando da análise da validade ou não do negócio jurídico, é imperioso que o (a) operador (a) do direito (na posição de advogado ou de magistrado, por exemplo) verifique se o negócio jurídico analisado cumpriu ou não os requisitos mínimos para a validade (art. 104 e seguintes do Código Civil). Para tanto, é importante que, na análise do caso concreto, as circunstâncias que circundam os fatos narrados e comprovados (ou não) pelas partes, especialmente em situações em que a demanda é unicamente fundada na palavra do (a) consumidor (a), sejam adequadamente levadas em consideração pela instituição financeira (na medida do possível, “destrinchar” a transação impugnada e modo a encontrar inconsistências na narrativa apresentada na inicial), já que a apresentação de defesa “padrão” - em razão da escassez de subsídios probatórios em situações como a descrita – tem considerável probabilidade insucesso. Neste sentido, a hermenêutica jurídica é fundamental.

De acordo com Roberto Senise Lisboa e João Felipe Oliveira Brito, o problema da hermenêutica jurídica se revela,

 “[...] como um problema filosófico mais amplo, não se limitando à questão da ‘‘incidência’’ de uma norma a um caso [...]” (SOLON, 2017, p. 106). Trata-se de um problema voltado à criação de significado jurídico, de atribuição de sentido, levando-se em conta os diversos aspectos que cercam a situação concreta.

A criação de um significado jurídico exige um compromisso de compreensão do direito por meio da identificação dos nomos apresentados no caso concreto, por meio da identificação de todos os mundos possíveis. Exige-se uma narração. O alcance do significado jurídico se define “[...] tanto por um texto legal que objetiva a demanda, como por uma multiplicidade de compromissos implícitos e explícitos que a acompanham” (COVER, 2002, p. 75)3.

Diante disso,

Levando-se em consideração que sociedade brasileira (e mundial), em razão da rápida e crescente evolução tecnológica, vem passando por grandes modificações, cujos reflexos pode ser observados direta e indiretamente nas relações jurídicas, sociais e culturais, e que não há a proporcional transformação e evolução do ordenamento jurídico, gerando, assim, conflitos e questionamentos no âmbito da atividade jurídica acerca de como o direito deve ser interpretado e aplicado às relações jurídicas modificadas e criadas, torna-se ainda mais imperiosa busca por novas maneiras de interpretar o direito, de modo a se reestabelecer o equilíbrio nas relações jurídicas [...]4.

Nesse sentido, no momento de interpretar e aplicar as normas legais em demandas fundadas somente na “palavra do consumidor”, deve o operador do direito (advogado/advogada da instituição financeira e o juízo) utilizar da hermenêutica jurídica para que a narrativa apresentada seja analisada, e a legislação vigente interpretada e aplicada, de acordo com as circunstancias de mundo (sociais, econômicas, etc.) do momento em que os fatos ocorreram, de modo que a solução do caso não destoe da realidade nele observa, e não se mostre ancorada a circunstâncias passadas não aplicáveis ao caso (tal como exigir instrumento físico assinado de próprio punho pelo correntista em contratação de empréstimo realizada por meio do aplicativo de internet banking).

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1 Disponível em: https://www.indexlaw.org/index.php/revistadgrc/article/view/5392/pdf. Acesso em: 04 mar. 2023.

2 Febraban Tech: 80% das transações bancárias já são digitais no Brasil. Disponível: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/febraban-tech-80-das-transacoes-bancarias-ja-sao-digitais-no-brasil/. Acesso em: 29 de junho de 2023.

3 Disponível em: https://www.indexlaw.org/index.php/revistadgrc/article/view/5392/pdf. Acesso em: 04 mar. 2023.

4 Ibidem

João Felipe Oliveira Brito
Sócio no OBMA Advogados | Professor Universitário | Especialista em Direito Civil e Processo Civil e Mestre em Direito pela FMU.

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