O primeiro registro histórico de uso da Cannabis para fins terapêuticos ocorreu em meados de 2.700 a.C. e é atribuído ao imperador chinês ShenNeng, que a prescrevia em forma de chás para o tratamento de dores articulares, gota, reumatismo e, até mesmo, problemas de memória. O uso da planta se espalhou pelos cinco continentes, tendo sido trazida ao Brasil ainda no período colonial. Devido aos efeitos psicoativos presentes na molécula de THC (tetrahidrocanabinol) e, sobretudo, por ter sido associada às camadas mais marginalizadas da sociedade, a Cannabis foi oficialmente criminalizada no século XIX e, até hoje, é objeto de grandes polêmicas no país.
Apesar de todo o tabu que permeia o tema, estudos clínicos ao redor do mundo têm comprovado uma série de benefícios do canabidiol (molécula presente na Cannabis que não causa efeitos psicoativos, tampouco dependência) em tratamentos medicinais diversos, trazendo incontáveis benefícios para a saúde humana. No viés econômico, as estimativas são também bastante promissoras: de acordo com um relatório lançado pela The Green Hub (primeira plataforma de tecnologia e inovação com foco em negócios da cannabis no Brasil), o mercado global de Cannabis legal deve movimentar o valor de US$ 55,3 bilhões em 2024.
A disseminação desses dados faz com que as percepções sobre a substância sejam ressignificadas pela sociedade. Por conseguinte, sua regulamentação é um processo que também se encontra em desenvolvimento contínuo, variando de acordo com cada país.
No Brasil, entrou em vigor, em março de 2020, a Resolução da Diretoria Colegiada RDC 327/19 da Anvisa, que regulamenta a fabricação, comercialização e importação de produtos derivados de Cannabis para fins medicinais. Cabe ressaltar que, desde 2016, já era permitido importar o produto mediante o cumprimento de uma série de exigências.
A entrada dos produtos à base de canabidiol no mercado brasileiro impacta o Direito em diversas de suas esferas, incluindo a Propriedade Intelectual, especialmente no que tange à registrabilidade de marcas e patentes no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Assim, com a regulamentação dos procedimentos para importação de produtos à base de canabidiol para fins medicinais, a interpretação do INPI com relação à vedação dos artigos 128, §1º, e 124, III, da LPI precisou ser atualizada. Afinal, com a entrada em vigor da mencionada RDC nº 327/2019, tais substâncias perderam o caráter de ilicitude integral e, por conseguinte, também deixaram de ser consideradas absolutamente imorais ou ofensivas aos bons costumes.
A partir de 2020, o INPI passou a deferir pedidos de registro para marcas dessa natureza. No entanto, há limitações: a análise de registrabilidade de tais pedidos é realizada de maneira criteriosa, uma vez que a liberação da Anvisa trata, apenas, de produtos medicamentosos à base de canabidiol e não da Cannabis isoladamente (ou outras substâncias dela derivadas).
Logo, o que tem se verificado na prática é que, caso os produtos não estejam explicitamente enquadrados na categoria regularizada, o INPI tem proferido exigências para que o titular esclareça a sua licitude e reapresente a especificação do pedido, em conformidade com a lei.
Foi o que ocorreu, por exemplo, com o pedido de registro para a marca “GOODFIELDS”, em nome da Aphria, empresa canadense produtora e distribuidora internacional de Cannabis. O pedido foi depositado no Brasil na classe internacional 05, que abrange, entre outros, produtos para fins medicinais. No entanto, somos levados a crer que, no entendimento da autarquia, tais produtos foram descritos de forma genérica, não sendo possível identificar, de forma clara, a sua aplicabilidade. Nessa esteira, o examinador do INPI formulou exigência para que a “licitude” dos produtos reivindicados fosse esclarecida. Em resposta, o titular reapresentou a especificação, deixando clara a finalidade de uso estritamente farmacêutico/medicinal e o pedido foi deferido pelo INPI.
O exemplo do ocorrido com a marca da empresa canadense nos leva a atentar para o fato de que, com a aprovação da Anvisa, é inegável que a interpretação do INPI foi alterada, levando à aprovação de pedidos de registro que, em geral, eram denegados de ofício.
À medida que a aceitação de produtos de Cannabis cresce mundialmente, ocupando cada vez mais espaço em um mercado que já movimenta valores expressivos, é essencial que as empresas do ramo procedam com o registro de suas marcas, que consistem em ativo intangível valiosíssimo para o negócio.
No entanto, é importante ressaltar que, apesar da mudança de posicionamento do INPI em sentido favorável, o assunto precisa ser tratado com diligência pelos titulares, para que indiquem nas especificações dos pedidos, de maneira clara, que os referidos produtos estão voltados para o uso medicinal, em conformidade com a RDC 327/19 da Anvisa. Caso contrário, na hipótese de omissão ou obscuridade com relação à finalidade dos referidos produtos, o INPI proferirá exigência solicitando esclarecimentos quanto à sua licitude ou, ainda, que eles sejam removidos ou substituídos por itens não ilícitos compatíveis com a classe reivindicada, atrasando o possível deferimento do pedido, o que pode, como visto, ser evitado.