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Boa técnica contratual e o contencioso

O contrato faz lei entre as partes, entretanto, essa não pode ser tão genérica a fim de gerar insegurança quando da sua aplicação, e tão específica a ponto de engessar de sobremaneira uma das partes ou mesmo a sua consecução.

5/7/2023

Costumo dizer aos meus clientes que você somente saberá se o seu contrato foi bem-feito quando ele for levado ao Poder Judiciário. Em um primeiro momento, entende-se que o cerne do vínculo entre as partes deve ter três “P”, Partes, Preço e Pagamento. Entretanto, existem diversas outras previsões que devem constar sob pena dessa lacuna prejudicar a sua consecução.

Destaque-se que a primeira delas é ser assinado por duas testemunhas. Digo isso em razão de essa ser a diferença de um título executivo ou não. E aí, por conta desse “pequeno detalhe”, a parte prejudicada terá que suportar todo o ônus temporal de uma ação ordinária para se obter a análise do mérito e, quando transitado em julgado, executá-lo.

Mas as patologias contratuais não param por aí. Trazendo um caso que vivenciamos na prática, nos foi apresentado para análise um reconhecimento de dívida lavrado no exterior, no qual o único vínculo com o Brasil é o fato de a parte devedora possuir sede no Brasil. No mais, o valor da dívida está, inclusive, em dólares americanos. Ocorre que a boa prática contratual prevê que em instrumentos desse porte deveriam constar cláusulas que direcionariam eventual situação de estresse, p.ex. cláusula de eleição de foro e qual legislação a ser aplicada.

Importante dizer que no caso acima, a jurisdição pode ser a brasileira, afinal, nos termos do art. 21, I, do Código de Processo Civil, isso é permitido quando o réu estiver domiciliado aqui. Porém, uma vez que fixada a jurisdição brasileira para se discutir o instrumento, é fato que há sérias dúvidas sobre a legislação a ser aplicada. Isso porque o contrato foi assinado no exterior, a obrigação deveria ter sido cumprida no exterior e em moeda que sequer é o Real e a parte prejudicada (credora) é do mesmo país no qual a obrigação deveria ter sido cumprida.

Assim, o que se vislumbra é um cenário onde o processo estaria sob a égide da legislação brasileira, porém, o direito material seria estrangeiro, ou seja, do país onde a obrigação deveria ter sido cumprida. Aqui, é de se questionar se um juiz brasileiro pode julgar o mérito de uma causa com base em uma legislação que não é a pátria, e a resposta é sim. O artigo 9º da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro determina que para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem.

Ora, no caso de se aplicar legislação de direito material estrangeira no Brasil, será bem provável que o juiz exija a prova de seu texto e vigência. Em outras palavras, a fim de não ser induzido em erro, o magistrado intimará a parte a comprovar que referida lei está vigente. E por óbvio existirão questionamentos sobre eventual conflito entre a legislação estrangeira e a pátria, o que somente retardará o andamento da lide, ou seja, a tão desejada efetividade ficará prejudicada.

Em outras palavras, se em contratos onde não há questionamentos sobre a jurisdição e a lei material a ser aplicada já há margem para questionamentos em razão da ausência de cláusulas (p.ex. cláusula de constituição em mora, cláusula de aceleração dentre outras), quando se adiciona obrigações cumpridas no exterior e ausência de cláusula de foro e legislação, o que se verifica é um leque de consequências indesejadas. Um singelo exemplo, quando um estrangeiro precisa se socorrer do judiciário brasileiro em uma ação comum, ele terá que depositar em juízo montante suficiente para garantir o pagamento das custas e honorários, o que significa, no limite, algo em 20% do valor em discussão.

Então, em casos de contratos internacionais se mostra imperativo que conste qual a jurisdição e qual a lei aplicável justamente a fim de possibilitar uma maior celeridade em caso de estresse. Por fim, ainda que em contratos a serem cumpridos aqui no Brasil, recomendo fortemente que esse seja pensando sob um prisma contencioso. E não é demérito algum aos contratualistas, entretanto, em certas hipóteses a exequibilidade da avença é extremamente dificultosa, o que somente prejudica a parte prejudicada. Com efeito, não se sugestiona aqui que os contratos sejam pensados de uma forma litigiosa, mas apenas que quando da sua minuta haja uma reflexão se determinadas proposições fazem ou não sentido, o famoso “para inglês ver”.

Em suma, o contrato faz lei entre as partes, entretanto, essa não pode ser tão genérica a fim de gerar insegurança quando da sua aplicação, e tão específica a ponto de engessar de sobremaneira uma das partes ou mesmo a sua consecução.

Théo Boscoli
Advogado do Gaia Silva Gaede Advogados, em São Paulo.

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