Migalhas de Peso

Reforma tributária em poucas palavras

O sistema tributário nacional é um microssistema jurídico inserido no sistema jurídico global que é a Constituição.

4/7/2023

Introdução

O ilustre deputado Aguinaldo Ribeiro, Relator do Grupo de Trabalho da Câmara Federal, elaborou um substitutivo a partir da fusão da PEC 110/19, de autoria do Deputado Luiz Carlos Hauly, que reúne 10 tributos incidentes sobre o consumo em torno do IBS: PIS, PASEP, Cofins, CSLL, CIDE, Salário Educação, IPI, IOF, ICMS e ISS, de um lado, e da PEC 45/19, de autoria do Deputado Baleia Rossi, já aprovada na Comissão Especial da Câmara, que reúne em torno do IBS 5 tributos: PIS, Cofins, IPI, ICM e ISS, de outro lado.

Ambas preveem alíquota linear de 25% e vedam os incentivos fiscais de qualquer espécie e incidem na proibição de deliberar emendas tendentes a abolir a forma federativa do Estado (art. 60, § 4º, I da CF).

Exame do substitutivo do Deputado Aguinaldo Ribeiro

O substitutivo sob análise propõe os seguintes tributos:

  1. Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) de competência da União;
  2. Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) de competência comum dos Estados e dos Municípios;
  3. Imposto seletivo incidente sobre bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente de competência da União com repasse do produto de sua arrecadação por meio de um Fundo de Participação dos Estados, do DF e dos Municípios.

O IBS dos Estados e Municípios, a ser tributado no destino, tem a mesma estrutura da CBS da União com o mesmo fato gerador, mesma base de cálculo e mesmos contribuintes, o que, na prática, significa que a competência impositiva do IBS será da União. Ele  é tributado por fora indo ao encontro do § 5º, do art. 150 da CF assegurando-se a não- cumulatividade plena.  É, sem dúvida, um grande avanço nesse particular. Há décadas estamos combatendo a obscura tributação por dentro. Só que a “não cumulatividade plena” para o setor de serviços será inoperante, a menos que inclua como insumos as despesas com a mão de obra, no todo ou em parte.

Outrossim, o IBS será administrado pelo Conselho Federativo a ser instituído por lei complementar, vale dizer, pela União.

Esse Conselho terá competência normativa, fiscalizatória e arrecadatória, bem como a tarefa de fazer a partilha do produto de arrecadação e de dirimir os conflitos que surgirem.

Formalmente cabe aos Estados e Municípios fixar alíquotas relativamente a bens e serviços destinados a seus respectivos territórios, mas sem parâmetros para a dosagem dessas alíquotas. Na prática, é tarefa inviável que acabará em uma grande confusão. Diz o texto, que na ausência de alíquotas estaduais e municipais, como que antevendo a sua inexequibilidade, será aplicada a alíquota padrão. Faltou o essencial que é a competência privativa dos Estados e dos Municípios de criar o imposto, fiscalizar e arrecadar como única forma de preservar a Federação como tal estruturada na Constituição. Dentro do modelo proposto, com um pouco de imaginação, é perfeitamente possível deferir o IBS tanto ao Estado, como ao Município permitindo que o contribuinte aproveite o crédito de um e de outro ente político, como acontece atualmente com  o ICMS nas operações interestaduais. Com mais um pouco de ousadia poder-se-ia permitir o crédito também da CBS que é um IBS disfarçado. Basta ler o art. 4º do CTN, segundo o qual a natureza jurídica específica do tributo é dada pelo fato gerador da respectiva obrigação.  Isso sim  que seria simplificar o sistema tributário! De qualquer forma, o modelo proposto pelo substitutivo sob exame já contempla a bitributação jurídica entre o IBS dos Estados e Municípios, de um lado, e o IBS da União, de outro lado, ainda que com o nome de CBS.

Para superar as críticas contra a alíquota linear de 25% o substitutivo prevê, além da alíquota padrão, alíquotas diferenciadas para determinados bens e serviços a ser definido em lei complementar.  Prevê a instituição de cashback como forma de mitigar os efeitos da tributação para as famílias de baixa renda, cabendo à lei complementar definir seus beneficiários.

O substitutivo mantém o regime especial de tributação pelo SIMPLES, bem como a imunidade da Zona Franca de Manaus. Cria o Fundo de Desenvolvimento Nacional em substituição aos incentivos fiscais voltada para a redução de desigualdades socioeconômicas entre as várias regiões do País. Mantém, também, os benefícios fiscais do ICMS convalidados pela lei complementar 160/17.

Preconiza ainda:

  1. tributação progressiva do ITCMD (propomos a revogação do inciso III, do § 1º, do art. 155 da CF que vem impedindo de os Estados tributar em razão da jurisprudência do STF);
  2. confere correta interpretação ao art. 155, III da CF incluindo no fato gerador do IPVA o veículo automotor marítimo e aéreo, porque o STF restringiu a incidência do imposto ao veículo automotor terrestre, louvando-se na definição dada pelo Código de Trânsito Brasileiro  que se limita a regular o trânsito em vias terrestres em todo o território nacional;
  3. permite o aumento da base de cálculo do IPTU por decreto do Executivo, vulnerando o princípio da legalidade tributária

O centralismo fiscal da União salta aos olhos, não só pelo aumento na partilha de impostos, como também pela expansão de sua competência legislativa tributária alcançando as esferas estaduais e municipais. O Conselho Federativo, na prática, para ser exequível, deverá funcionar como se fosse um órgão da União até mesmo para harmonizar as administrações dos dois tributos, a CBS da União e o IBS dos Estados/Municípios que têm a mesma estrutura.

A noção de competência tributária é una e indivisível, implicando o poder de criar o tributo, fiscalizar e arrecadar. Somente a fiscalização e arrecadação podem ser delegadas, nunca o poder de instituir o tributo.

Logo, o substitutivo apresentado fere o princípio federativo. A Federação Brasileira é impar no mundo, caracterizada pela coexistência de três entidades políticas juridicamente parificadas, pelo que nenhum modelo importado, notadamente, dos países europeus, serve para o Brasil. Na redação do substitutivo faltou a mão do jurista.

Uma reforma estrutural como a pretendida, em que pese o meritório esforço dos nobres Deputados, somente poderá vir no bojo de uma Assembleia Nacional Constituinte exclusiva que dará a forma de Estado e o sistema de governo.

Alternativas

O momento não é de partir para um novo sistema tributário. Se o conceito de ICMS levou 23 anos para pacificar, o de IBS levará, no mínimo, tempo igual ou mais, por ser um conceito em aberto. Jogar fora um sistema que a jurisprudência dos tribunais levou 35 anos para decantar e começar tudo de novo não é o caminho.

A alternativa que resta é a de fazer reformas pontuais no sistema tributário vigente, que é o único compatível com a ímpar, heterogênea, complexa e centrífuga Federação Brasileira. Ao tempo do Brasil Império havia um único dispositivo versando sobre tributos, prescrevendo o princípio da legalidade dos impostos (art. 36, 1º da Constituição de 1824). Nada mais.

Essas reformas pontuais consistem em:

I - Vedar: a tributação por dentro; b) a tributação antecipada por fato gerador presumido; c) a inclusão do valor de um tributo na base de cálculo de outro tributo; d) a tributação não cumulativa do tipo PIS/COFINS vigente; e) a  edição de medida provisória em matéria tributária;

II – Limitar a  edição de atos normativos referidos no art. 100 do CTN para uma vez por ano, relativamente a um mesmo tributo;

III - Exigir a definição do fato gerador da contribuição social por lei complementar.

 Tudo isso pode ser feito em menos de setenta  palavras. Mais, não é preciso!

Feitas essas simplíssimas reformas pontuais, cerca de 90% das demandas judiciais em curso desaparecerão, com toda certeza. Não é preciso destruir os alicerces do sistema tributário vigente para simplificar e reduzir o nível de imposição sobre o consumo.

É um equívoco muito grande supor que a diversidade de impostos cause complexidade. Basta apenas um tributo do tipo PIS/Cofins não cumulativo para tornar complexa e confusa a legislação. A diversidade de impostos existe para distribuir o peso da carga tributária para os diferentes segmentos da sociedade.  Não faz sentido, por exemplo, um advogado, um juiz, um policial ter que pagar o IPI e ICMS. O único imposto universal é o incidente sobre  rendas e proventos de qualquer natureza. A alegada complexidade com 27 legislações do ICMS e de mais de 5.570 legislações do ISS, também, não se sustenta. Existem a lei de regência nacional do ICMS (lei complementar 87/96) e do ISS (lei complementar 116/03) que traçam normas gerais aplicáveis nacionalmente.

Outrossim, a alegação de que o atual sistema concentra a imposição tributária sobre o consumo onerando a classe pobre não é motivo para remexer na estrutura do sistema tributário vigente. Basta providência infraconstitucional para dosar o aspecto quantitativo dos impostos e contribuições sociais incidentes sobre o consumo. Aliás, as contribuições do PIS/Cofins, que de contribuição só ostenta o nome, poderiam ser eliminadas mediante a supressão da letra b, do inciso I, do art. 195 da CF, ou mediante a simples revogação das respectivas leis instituidoras. A CSLL, também, poderá ser suprimida incorporando a previsão de sua arrecadação no IRPJ. A destinação do produto de sua arrecadação é matéria que se insere no âmbito do Direito Financeiro.

O sistema tributário nacional é um microssistema jurídico inserido no sistema jurídico global que é a Constituição. Por isso, suas normas devem harmonizar-se com os preceitos constitucionais. Importar modelos de outros países, notadamente, dos da comunidade europeia, jamais dará certo.

Kiyoshi Harada
Sócio do escritório Harada Advogados Associados. Especialista em Direito Tributário pela USP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário - IBEDAFT.

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