Para os economistas, é já há muito conhecido o problema da racionalidade limitada1. Ele pode ser sintetizado na proposição simples de que ninguém sabe de tudo e, ainda que alguém soubesse, se fosse humano, estaria sujeito a vieses, comportamentos passionais e outros problemas de cognição que nos afetam a conduta no dia a dia. Mesmo sendo tão óbvia e tão antiga essa noção, ignorá-la continua causando problemas até para os economistas mais prestigiados, do que há inúmeros exemplos.
Para os advogados, a quem essa questão é um tanto menos familiar, a situação é ainda um tanto mais grave. Mesmo que todo colega, quando diretamente perguntado, em abstrato, se existem limitações ao seu conhecimento e às suas faculdades da razão, responda que sim, nem todos se comportam de forma condizente com essa compreensão.
Essa contradição prática, de não agir no mundo real com a humildade que se tem em discurso, pode ter consequências particularmente sensíveis, e em nenhuma área poderiam ser tanto como na do Direito Penal Tributário.
A tributação, no Brasil, é extraordinariamente complexa, considerando que o País se mantém no 1º lugar no ranking de horas necessárias para apurar tributos, com larga margem sobre o 2º colocado2. Dificilmente, alguém que não é profissional da área – e um dos bons – conseguirá compreender de forma pelo menos suficiente todos os conceitos, as espécies de obrigação acessória, os procedimentos administrativos, dentre muitos outros assuntos. Ainda assim, muitos colegas insistem em atuar de forma desassociada para lidar com problemas complexos de tributação, persecução criminal e atividade empresária.
Com efeito, raramente, há uma construção colaborativa entre penalistas e tributaristas da tese defensiva, o que encurta a compreensão da hipótese acusatória e torna o agir na defesa dos interesses do investigado um tanto menos eficaz. À limitação do combate defensivo, soma-se o fenômeno da automaticidade das instituições investigativas3 na potencialização do problema.
Nos inquéritos que tratam de crimes contra a ordem tributária (lei Federal 8.137/90, dentre outros), há um certo caminho administrativo esperado, marcado por uma atuação das agências penais de chancela automática das conclusões do Fisco que, por várias vezes, interpretam institutos penais equivocadamente. Nesse cenário, o enfrentamento à atuação autômata demanda algo particularmente complexo da defesa: compreensão holística da controvérsia.
A aplicação do Direito Penal no campo tributário é subsidiária, o que implica dizer que, se a disputa chegou à fase do inquérito policial, necessariamente existiu uma etapa anterior desenvolvida na seara fiscal (administrativo e/ou judicial). Uma tese defensiva que não compreenda os fatos documentados nos procedimentos fiscais e as suas respectivas repercussões criminais, será severamente deficiente desde já.
Um caso concreto ajuda a ilustrar o ponto.
Os dirigentes de uma sociedade empresária tomam conhecimento da existência de inquérito que apura a prática de sonegação fiscal (art. 1°, incisos I, II e IV, da lei Federal 8.137/90). Consultados pelos investigados, a equipe tributarista decide pela recomendação da adição de criminalistas à defesa. Com esse ingresso, passou-se a notar um aspecto importante: o enquanto o Parquet fazia menção a dois créditos tributários supostamente sonegados na requisição de abertura do inquérito (um relativo a um tributo e outro referente a uma multa), a representação fiscal falava apenas de um, o da sanção administrativa. A origem dos fatos na esfera fiscal elucida as razões da diferença de tratamento.
Tudo teve início com o reconhecimento pela contribuinte de um débito. Ato contínuo, ela ofereceu declarações de compensação que, em tese, extinguiriam o ônus. Algum tempo depois, a sociedade empresária notou que não tinha os créditos correspondentes para compensar. Antes de qualquer intervenção do fisco, promoveu a retificação, submetendo o débito ao regime de parcelamento.
Algum tempo depois, o Fisco aplica a multa pelo lançamento da compensação que nunca se efetivou. Tudo isso com o parcelamento incólume e regularmente adimplido. O contribuinte discordou da sanção e a questão resultou em uma ação de execução proposta pelo Fisco na qual foi oferecido um imóvel como garantia pelo exequido. Aceita a segurança pelo exequente, o feito aguardava laudo sobre o valor do bem. Era este o rumo da controvérsia até a instauração do inquérito.
O cenário colocado pelos documentos do inquérito era da existência de dois créditos indicados pelo Ministério Público Federal (MPF) e um apontado pela Administração Tributária. Diante disso, o que decidiu a defesa? Impetrar um habeas corpus diante do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5), pugnando pelo trancamento da investigação.
O raciocínio jurídico de fundo é simples. O primeiro crédito é um tributo sob regime de parcelamento, o que é hipótese de suspensão da pretensão punitiva estatal (art. 83, §2º da lei Federal nº 9.430/96), enquanto o segundo não pode ser objeto do crime de sonegação fiscal, pois multa não é tributo (literalidade dos arts. 1º e 2º da lei Federal 8.137/90). Mais, como não houve qualquer emprego de fraude que resultasse na redução ou supressão do valor devido à Fazenda Pública a título de multa, poderia haver, no máximo, simples inadimplemento dela4.
Diante desses argumentos, a Corte Regional concedeu a ordem de habeas corpus. O precedente resultante é ainda mais digno de nota por acolher orientação do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) de que, mesmo no caso de suspensão da pretensão punitiva, a providência correta é o arquivamento do inquérito, e não o mero sobrestamento.
O resultado positivo no âmbito criminal jamais poderia ter sido alcançado sem a contribuição de um especialista em tributos para proporcionar o entendimento de temas como os efeitos da compensação tributária, o momento de lançamento definitivo do tributo e da multa5, ou os efeitos da prestação de garantia na execução fiscal6, dentre outros. A escolha da tese defensiva depende diretamente da correta compreensão de todos esses fenômenos.
Por outro lado, advogados tributaristas que compreendem tudo isso costumam incorrer em outros erros ao atuar em inquéritos de crimes contra a ordem tributária. Não apenas o procedimento da fase inquisitorial e de uma eventual impetração de habeas corpus para trancamento do inquérito são temas de muito melhor domínio do advogado criminalista, mas diversos elementos próprios dessa prática, muitas vezes, não são conhecidos do tributarista. É frequente, por exemplo, que o advogado tributarista insista em teses típicas de quando postula uma suspensão de exigibilidade do crédito tributário, argumentos estes que costumam ser afastados pelo Ministério Público sob a justificativa de independência das esferas penal e tributária. O tributarista, normalmente, não domina também as causas de nulidade do inquérito, muito menos a jurisprudência sobre elas.
Enfim, em ambos os sentidos, há muito o que se falar em favor da atuação conjunta entre especialistas nas hipóteses de persecução criminal por supostos delitos tributários. A noção dos próprios limites é a principal premissa para compreensão dessas vantagens. Como humanos, a racionalidade de todos os que colaboram em qualquer projeto será limitada, mas essas fronteiras podem se tornar um pouco mais extensas quando conjugadas. Ganha, com isso, o cliente, pelo resultado positivo; ambos os profissionais, pelo êxito da atuação; e a própria ordem jurídica, tanto a penal quanto a tributária, ao ter nos advogados o seu melhor desempenho na administração da justiça.
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1 Verbete disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Limita%C3%A7%C3%A3o_da_racionalidade. Acesso em: 21/6/23.
2 Fonte disponível em: https://abrasel.com.br/revista/mercado/brasil-e-1-no-ranking-em-que-empresas-gastam-mais-tempo-para-calcular-e-pagar-impostos/. Acesso em: 21/6/23.
3 No tema, a reflexão de Rogerio Taffarelo é muito pertinente: TAFFARELO, Rogério Fernando. Insegurança jurídica nos crimes tributários e previdenciários e o papel dos tribunais. Disponível em: . Acesso em: 21/6/23.
4 Segundo a jurisprudência consolidada dos tribunais superiores, o simples inadimplemento dos tributos não tem relevância penal, dado que ela só surge quando o contribuinte se utiliza de algum expediente fraudulento para sonegar o valor devido ao Fisco. Não se desconhece ter havido certa flexibilização pela Corte Constitucional para os casos de não recolhimento do ICMS declarado (RHC 163.334/SC, Rel Min. Roberto Barroso, julgado em 18/12/19). Porém, trata-se, até o momento, de uma exceção bastante pontual. Até porque, a punição do crime tributário, para não se confundir com o instituto da prisão civil por dívida – vedado no ordenamento brasileiro –, não pode ser oriundo de um mero inadimplemento perante a Fazenda Pública. A existência de fraude implica responsabilização penal. O mero inadimplemento, lado outro, não.
5 O que interfere, naturalmente, em eventual invocação da Súmula Vinculante 24. Esse enunciado sumular vige nos seguintes termos: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da lei 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo.”.
6 Tais efeitos são os da Súmula 112/STJ, editada com o seguinte texto: “O depósito somente suspende a exigibilidade do crédito tributário se for integral e em dinheiro.”.