1.Introdução
A lei 14.155/21 introduziu o parágrafo 4º ao artigo 70 do Código de Processo Penal, alterando as regras de competência para processo e julgamento de algumas hipóteses do crime de estelionato em vista de conferir maior eficiência à persecução penal.
Apesar do avanço, é preciso se questionar se a alteração do §4º do artigo 70 do Diploma Processual acabou por cumprir a sua missão por completo ou se haveria necessidade de um maior aprimoramento de sua redação.
Um recente conflito de competência apreciado pelo STJ pode nos ajudar a compreender os limites do alcance do regramento de competência para processo e julgamento das já mencionadas hipóteses do estelionato. Trata-se do conflito de competência 182.977-PR envolvendo os juízos de Curitiba/PR e Urupês/SP.
2. O conflito de competência 182.977 – PR
Para ilustrar o contexto fático que deu ensejo ao conflito, serão usados nomes fictícios. O caso foi o seguinte. Leonardo buscou sacar, em uma agência bancária situada na comarca de Curitiba-PR, o valor constante em um cheque assinado por Lindalva, cuja agência se situa no município de Urupês-SP. O cheque era falso e Leonardo apenas não conseguiu sacar o numerário por ausência de provisão de fundos na conta de Lindalva. Devidamente informada pelo seu banco, Lindalva representou junto às autoridades por entender ter sido vítima de uma tentativa de estelionato: ela não havia assinado cheque algum e, caso houvesse provisão de fundos em sua conta, o crime teria se consumado.
O juízo da comarca de Urupês/SP declinou de sua competência, pois entendeu que competente seria juízo situado na comarca de Curitiba/PR, local em que Leonardo buscou sacar o numerário. Uma vez de posse dos autos, o juízo de Curitiba-PR suscitou conflito negativo de competência perante a Corte Cidadã, pois entendia que o juízo competente para julgar o caso seria o de Urupês.
O STJ, ao apreciar o caso, recebeu o conflito, nos termos do artigo 105, I, “d” da Constituição Federal, e entendeu que caso deveria ser processado e julgado perante o juízo suscitado (Urupês).
Vamos entender os motivos.
O juízo suscitado originalmente declinou da competência, pois entendeu que a consumação do crime de estelionato se dá com a obtenção da vantagem, o que, no caso, seria em Curitiba. Já o juízo suscitante, entendeu que a competência seria da Vara única de Urupês, pois o estelionato se consumaria no momento da saída do dinheiro da esfera de poder da vítima, ou seja, quando o numerário fosse retirado da conta bancária de origem, o que se daria na agência da vítima, em Urupês.
O artigo 70 do Código de Processo Penal, como regra geral, fixa a competência com base no lugar da consumação do crime:
Art. 70. A competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução.
O STJ, na apreciação do conflito em questão, ponderou, com base no parecer ministerial que a hipótese em questão não se enquadra nas hipóteses trazidas pelo §4º do artigo 70, pois não se trata de estelionato por meio de emissão de cheque sem fundo, mas, sim, por meio de cártula falsa. Vejamos o que diz o mencionado dispositivo:
§ 4º Nos crimes previstos no art. 171 do decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), quando praticados mediante depósito, mediante emissão de cheques sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado ou com o pagamento frustrado ou mediante transferência de valores, a competência será definida pelo local do domicílio da vítima, e, em caso de pluralidade de vítimas, a competência firmar-se-á pela prevenção.
Para conferir maior legitimidade, segue abaixo o posicionamento exarado no voto da ministra Laurita Vaz, seguido à unanimidade pela 3ª Seção da Corte Superior:
Contudo, a hipótese dos autos, como bem ressaltou o parecer ministerial, não foi expressamente prevista na nova legislação, visto que não se trata de cheque emitido sem provisão de fundos ou com pagamento frustrado, mas de tentativa de saque de cártula falsa, em prejuízo de correntista.
A inovação trazida pela lei 14.155/21 não abarcou a hipótese de estelionato por meio de cártula falsa. Por conseguinte, entendeu a Corte Cidadã por aplicar entendimento já firmado em sua jurisprudência de que a consumação dessa espécie de crime ocorre no local do eventual prejuízo, o que, no caso, seria em Urupês.
Portanto, a competência restou firmada no juízo suscitado, o que deu à vítima maior possibilidade de representar contra o autor. O precedente se firmou no sentido de que o estelionato se consuma no local da saída do dinheiro da esfera de domínio da vítima. Não obstante, salta aos olhos uma outra questão não apreciada de forma expressa pela Corte Cidadã e que poderia mudar a conclusão do caso. Vamos a ela.
3. A competência no caso de tentativa.
Como bem destacado pelo voto condutor, a redação do §4º do artigo 70 do Código de Processo Penal não contemplou a hipótese de crime de estelionato por cártula falsa. Desse modo, no caso apreciado, a competência só foi firmada no domicílio da vítima por força de um entendimento jurisprudencial.
Ocorre que a ratio decidendi aplicada versa sobre estelionato na modalidade consumada. Nessa moldura fática, firmou o STJ entendimento que a consumação se dá no local de efetivo prejuízo.
No entanto, o caso não versa sobre crime na modalidade consumada, mas, sim, tentada. Eis o grande ponto do conflito em análise.
A ausência de provisão de fundos ganha, no contexto em apreço, a roupagem jurídica de circunstância alheia à vontade do agente. O prejuízo apenas não ocorreu por essa curiosa coincidência. Ao contrário do caso de estelionato perpetrado por meio da emissão de cheque sem provisão de fundos no qual a “ausência de provisão de fundos” possui natureza de elementar do tipo, no caso em questão a insuficiência de saldo na conta corrente da vítima se fez circunstância alheia à vontade do agente que acabou por impedi-lo de consumar o crime.
Vejamos a definição de crime tentado trazida pelo artigo 14 do Código Penal:
Art. 14 - Diz-se o crime:
II - tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.
O agente iniciou os atos executórios com a apresentação da cártula falsa para sacar o numerário de forma indevida e, por uma circunstância alheia à sua vontade (ausência de provisão de fundos na conta da vítima), o crime não se consumou.
A competência nos casos de crime tentado determina a sua fixação com base no lugar da prática do último ato de execução, conforme parte final do caput do artigo 70 do Código de Processo Penal, acima reproduzido.
Com base nesse cenário, por se tratar de crime praticado na modalidade tentada, o mais adequado ao regramento atual seria a fixação da competência do juízo de Curitiba-PR, pois foi este o local do último ato de execução.
Embora não o tenha dito de forma expressa, o STJ aplicou a regra de competência dos crimes consumados à hipótese de estelionato por meio de cártula falsa na modalidade tentada.
4. Conclusão
O conflito de competência 182.977 – PR nos traz algumas lições. A primeira delas é que a redação do §4º do artigo 70 do Código de Processo Penal mereceria um ajuste legislativo para contemplar os crimes de estelionato praticados por meio de cártula falsa. Essa modalidade de estelionato é muito similar àquelas contempladas pelo dispositivo em comento, de modo que não há razões para receber tratamento diverso.
É certo que o intérprete, em tese, poderia optar por conferir interpretação extensiva ao §4º do artigo 70 do Diploma Processual, por autorização do artigo 3º da mesma lei, de modo a abarcar a espécie de estelionato em questão. No entanto, competência é matéria que, em regra, não comporta essa técnica interpretativa, sob pena de gerar grande insegurança jurídica.
Apesar de não trazer tal discussão hermenêutica à baila, o STJ decidiu por não aplica a interpretação extensiva, de modo a chegar à mesma conclusão por caminho diverso, aplicando a regra geral do caput do artigo 70 à luz de sua própria jurisprudência segundo a qual o crime se consumaria no local da agência da vítima (onde ocorreu eventual prejuízo). Isso acabou por garantir que o crime seja processado no domicílio da vítima, supondo que a sua agência bancária tenha sede na mesma comarca onde a vítima é domiciliada.
Nesse sentido, o referido ajuste legislativo, incluindo o estelionato por cártula falsa no regramento do §4º do artigo 70 do Código de Processo Penal, teria o condão de conferir maior segurança jurídico a casos análogos.
Uma segunda lição seria a inclusão, também pela via legislativa, das hipóteses de estelionato tentado a serem processados no domicílio da vítima, pois até mesmo a investigação desses casos depende de representação, o que torna difícil a persecução penal em caso de estelionatos cometidos em locais distantes do domicilio da vítima.
Tal alteração legal apenas traria para lei aquilo que o STJ firmou em sede de precedente. Em vista de garantir a persecução penal do caso, a Corte Superior teve de aplicar a regra de competência dos crimes consumados para um crime praticado na modalidade tentada. Uma alteração legislativa certamente traria maior segurança aos futuros casos de igual cenário fático.