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Mais poderes: a estadualização da lei penal pode servir a outros interesses

Após nova onda de inacreditáveis barbáries, por coincidência, sempre nas principais Unidades Federativas, surgem propostas mirabolantes dos representantes eleitos pelo povo. Aliás, ressalte-se que, sempre em tempos de grave crise na área da segurança pública, criar ou desarquivar “propostas” é a principal atividade dessa classe política.

9/5/2007


Mais poderes: a estadualização da lei penal pode servir a outros interesses

Edson Pereira Belo da Silva*

Após nova onda de inacreditáveis barbáries (passageiros queimados dentro de ônibus coletivo e de viagem, criança arrastada pelas ruas do Rio de Janeiro até a morte, milícias “ocupando” ou “suprindo” os espaços ou ausência do Estado, perda do controle da população carcerária, ataques as autoridades constituídas, crescimento da corrupção política, etc.), por coincidência, sempre nas principais Unidades Federativas, surgem propostas mirabolantes dos representantes eleitos pelo povo. Aliás, ressalte-se que, sempre em tempos de grave crise na área da segurança pública, criar ou desarquivar “propostas” é a principal atividade dessa classe política. Na verdade, tais “propostas”, em regra, é apenas a multiplicação dos problemas já existentes.

Se não bastasse a ânsia desenfreada de se criar novas leis para tentar coibir a criminalidade e reduzir a menoridade penal, no intuito exclusivo de se dar uma resposta apressada a grita da população, notadamente aos eleitores, os aludidos representantes popular lançaram, já há algum tempo, a idéia de que “é preciso alterar à Constituição Federal (clique aqui) para dotar os Estados de competência para legislar em material penal ou em segurança pública”, sob o engenhoso argumento de que cada uma das 26 Unidades Federativas, mais o Distrito Federal, possui realidades bem diferentes”.

Com trágico episódio criminoso ocorrido em 7 de fevereiro de 2007, do qual foi acometido fatalmente o menino João Hélio Fernandes,1 reacendeu-se a proposta <_st13a_personname w:st="on" productid="em referência. Agora">em referência. Agora, tendo na “comissão de frente” ou como “destaque”, o governador fluminense Sérgio Cabral,2 que deixa transparecer desprezar a função precípua dos parlamentares eleitos no seu Estado para atuar no Congresso Nacional.

É sabido que à União compete, privativamente, legislar sobre direito penal, civil, comercial, trabalho, eleitoral, processual, agrário, marítimo, aeronáutico e espacial, segundo dispõe o artigo 22, inciso, da Carta da República; de modo que, para se alcançar essa hipócrita e utópica idéia, faz-se necessário alterar o texto constitucional mediante a provação da respectiva Emenda. Para tanto, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) precisa ser discutida – intensamente – e votada em cada uma das duas Casas do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada caso obtenha, em ambas, três quintos dos votos de seus respectivos membros (artigo 60, “caput”, e § 2.º, da CF).

Vale ressaltar, contudo, que a promulgação da Emenda aprovada é feita pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, observando-se o respectivo número de ordem (artigo 60, § 3.º, da CF). Neste processo legislativo apenas cabe ao Presidente da República apresentar a PEC (artigo 60, “caput”, inciso II, da CF), além é claro de, naturalmente, exercer as influências políticas do cargo que ocupa, tanto em prol como contra a PEC, caso não tenha sido ele que a apresentou, bem assim mobilizar sua bases de apoio no Congresso Nacional conforme seu objetivo.

Portanto, o primeiro passo para tornar real a pretensão do atual governador do Rio é apresentar uma PEC ao Congresso; daí em diante é só fazer política no intuito de tentar aprová-la. Qualquer intenção de determinado ente federativo de legislar em matéria que foge de sua competência configura grave ofensa à Magna Carta, cuja qual deve ser reparada por ação direita inconstitucionalidade, com pedido de liminar, ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal (artigo 102, inciso I, alínea “a”, da CF, e Lei n.º 9.868/99 - clique aqui).

Importante observar, todavia, que a Lei Complementar federal poderá autorizar os Estados-membros a legislar em matéria penal e processual penal (artigo 22, parágrafo único, da CF) relacionada a questões específicas, que tenham tão-somente interesse local, sem que, com isso, venham a modificar matérias fundamentais dos Códigos Penal e de Processo Penal.

Trata-se, na realidade, da conhecida competência legislativa suplementar, que pode ou não ser delegada através da citada norma. Em outras palavras, a competência é privativa da União, como visto, porém ela pode ser delegada mediante lei. Destarte, desde que promulgada a Constituição vigente, o Congresso Nacional ainda não editou Lei Complementar delegando competência legislativa em matéria de sua competência privativa, especialmente a penal; de sorte que continuaram os Estados e Distrito Federal padecendo de legalidade e legitimidade para legislar até a edição de tal norma.

Caso a União delegue a mencionada competência legislativa a um determinado ente federativo, por força do princípio da igualdade federativa, é obrigada a estender também aos demais entes federativos a mesma competência legislativa.3 Se o Rio, por exemplo, obter a “graça” desejada, os outros Estados, certamente, irão reivindicá-la. Não custa enfatizar que as Unidades Federativas, num passado distante, já possuíram competência para legislar em várias outras matérias (ver artigo 63,4 da Constituição Federal de 1891).

Mas, a nosso pensar, a sobredita mudança do texto constitucional pretendida pelo governador fluminense ou a edição da aludida Lei Complementar federal, além de ser uma tarefa quase impossível, do ponto de vista de reunir e convencer os parlamentares em torno de tal proposta, não deve mesmo prosperar.

Com a devida vênia, o atual Chefe do Poder Executivo do Estado do Rio de Janeiro ainda não se deu conta de que o Brasil não é os Estados Unidos da América, e vice-versa, por inúmeros fatores, apesar deste último ser considerado uma Federação.5 O sistema federativo em sua simplicidade, segundo o ensinamento do preclaro Dalmo de Abreu Dallari, consiste numa aliança ou união de Estados, baseada <_st13a_personname w:st="on" productid="em uma Constituição">em uma Constituição, sendo que os Estados que ingressam na Federação perdem sua soberania no momento de ingresso, porém preservam uma autonomia política limitada.6 Aliás, a soberania dos Estados é uma característica própria da Confederação.7

Importar o sistema norte-americano ou tê-lo como um referencial em nosso território é lamentável. Só faltou pensar em consultar os legisladores americanos. O simples fato de cada um dos 50 Estados norte-americano legislar em múltiplas matérias não os tornaram justos, não impediram as aberrações jurídicas e atentados aos direitos civis, etc., cujos quais ainda estão frescos na mente da comunidade jurídica internacional. Note-se, por exemplo, o tratamento desigual dado aos afro-descendentes. A luta racial ainda não terminou naquele país, sendo que <_st13a_personname w:st="on" productid="em cada Estado">em cada Estado a situação é mais ou menos gravosa.

Vejamos um caso concreto: nos anos 60, alguns Estados vedavam o casamento ou a união interracial, a ponto de ser uma infração penal. Estas leis estaduais duraram por muitos anos, até que a Suprema Corte Americana, após analisar por quase 8 anos medida judicial que impugnavam àquelas legislações discriminatórias, revogou todas elas. O filme “Quebrando as Regras”, de 1998, baseado em fatos reais, retrata com fidelidade esses fatos.

Quando nos posicionamos contrários à estadualização na norma penal – ou até mesmo outra matéria de competência privativa da União –, voltamos os nossos olhares para a falta de recursos e estrutura dos entes federados e sobremaneira, para a “moralidade política” da grande maioria dos nossos representantes políticos, no Congresso Nacional, nas Assembléias Legislativas e nas Câmaras Distrital e de Vereadores.

Essa ausência de moralidade é reconhecida “interna coporis”. Só para lembrarmos, em debate realizado pela TV Câmara, no dia 29 de janeiro último, com os três candidatos à Presidência da Câmara dos deputados, um deles disse com veemência: “Temos que sair das páginas policiais” (“ipsis litteris”).8 Se o próprio parlamentar está preocupado com a questão negativa que ele destacou, então o quê deve preocupar o povo brasileiro?

Os parlamentos dos entes federativos (Estados, Distrito Federal e Municípios), na sua quase totalidade, estão desacreditados pela população e por muitos dos seus próprios membros. O parlamentar, atualmente, é visto com muita desconfiança, em especial por deixar transparecer ter perdido sua principal função: representar o interesse da sociedade. E a crise no Poder Legislativo parece não ter fim.

Diante desse quadro político-legislativo desolador, de que forma dar ou delegar competência para determinado ente federado?

Não obstante, se em Brasília as coisas vão de mal a pior, em vários sentidos, mesmo com a intensa e eficaz cobertura da mídia, como será então que andam as coisas nos entes federativos de baixa expressão política ou escassa notoriedade no cenário nacional?

Em quase todos os Parlamentos dos membros federativos, governadores e prefeitos “fazem à festa”, ou seja, conseguem aprovar o que bem entender, quando e como. “Verbi gratia”: há alguns anos, faleceu na capital federal, de morte natural, um importante deputado baiano (ex-presidente da Câmara), cujo pai dominava politicamente o seu Estado de “fio a pavio”. Para homenagear a memória do filho falecido o citado genitor consegui: (i) alterar o nome de Aeroporto Internacional Dois de Julho (data de independência da Bahia) para o nome do “de cujus”; (ii) criou um Município com o nome do filho, através da Lei estadual n.º 7.619/2000, a qual é objeto da Ação Direita de Inconstitucionalidade n.º 2440, ajuizada perante o STF;9 (iii) também criou uma Fundação e uma Rodovia com o mesmo nome: (iv) modificou os nomes das principais Avenidas, Ruas, além das escolas, hospitais, etc. Tudo isso para endeusar e eternizar o nome de um pobre mortal, com a total complacência das Assembléia Legislativa do Estado e de inúmeras Câmaras de Vereadores (ambos entes federados), que se encarregaram somente de aprovar todas essas “leis relevantes para a sociedade”. Esses são apenas alguns dos desmandos que, não é de agora, já ocorrem igualmente pelo Brasil afora.

Por outro lado, há que se destacar o estado de miserabilidade da grande maioria dos entes federados, os quais vivem peregrinando por Brasília atrás – de um tostão – de uma verba suplementar ou adicional. O Estado de Alagoas, por exemplo, parece só existir nos mapas brasileiros e na sua Constituição, pois, há muito, está completamente falido, sem sequer poder as necessidades básicas de sua população. O Congresso Nacional já tinha conhecimento disso, tanto que um dos poucos senadores considerados, Jefferson Peres, fez a seguinte observação em seu um dos seus pronunciamentos no Senado: ”O Estado de Alagoas faliu, está literalmente <_st13a_personname w:st="on" productid="em bancarrota. A">em bancarrota. A receita não é suficiente para pagar a folha de pessoal e o déficit mensal é de R$ 20 milhões”.10 A corrupção também está infiltrada nas instituições do Estado.

Oportuno ainda ressaltar que, além da notória ausência de recursos financeiros, que impedem a materialização dos direitos sociais (artigo 6.º, da Constituição Federal) de seu povo, quase a totalidade dos membros da Federação padecem com uma política retrograda, ineficiente, nepotista, autoritária, injusta, com serias dificuldades de cumprir e fazer cumprir a lei. É comum ouvir em muitos dos Estados e Municípios a seguinte expressão: “Aqui quem manda é fulano de tal ou a família de cicrano”.

Vale dizer, que a maioria desses entes federados possui uma espécie de “mandatário”, como vimos no exemplo citado no Estado da Bahia, o que indubitavelmente comprometeria – e já compromete – a independência das Assembléias Legislativas, que, assim como no Congresso Nacional, não conseguem punir nem mesmo seus próprios membros.

Com a considerável influência política que sofre os legislativos estaduais, qualquer questão polêmica poderia ser facilmente aprovada, como, “verbi gratia”, o aborto, a descriminalização do porte de substancias ilícitas entorpecentes para consumo próprio, redução da menoridade penal, ampliação da impunidade nos crimes políticos, etc. De maneira que, em cada membro federativo, teríamos uma legislação penal própria e de acordo com as suas realidades ou tradicionalismo regionais.

A “briga de galo” e o “jogo do bicho”, assinale, seriam liberados <_st13a_personname w:st="on" productid="em muitos Estados">em muitos Estados, isso por causa do tradicionalismo, no primeiro caso, e da possibilidade de se aumentar à arrecadação, na segunda situação, ao passo que outros entes manteriam a restrição.

Gostemos ou não, a verdade é que a grande parte dos entes federativos é frágil nos aspectos político, econômico, educacional, enfim, carecem de amplo desenvolvimento.

E sob essas reais condições como seriam a sua legislação penal ou processual penal, já que convivem com inúmeras diferenças sociais? Como seria, por exemplo, a legislação penal aprovada nos Estados de Roraima e Amapá, antigos territórios (artigo 14, do ADCT, da CF), em comparação com as Unidades Federativas das Regiões Sul e Sudeste?

Para nós, a uniformidade das legislações básicas (penal, civil, processual, etc.) para todos os entes, como ocorre, possui é claro algumas distorções, as quais, paulatinamente, podem ser corrigidas por que inexiste sistema normativo perfeito; do contrário, liberar a produção legislativa para cada membro da Federação é estabelecer o caos jurídico no país.

É preciso também despertar para o fato de os Municípios – entes federados, artigo 1.º, “caput”, da CF – também almejarem legislar nas matérias em que os Estados, eventualmente, venham adquirir competência, posto prevalecer, consoante frisamos acima, o princípio da igualdade federativa, onde um ente não pode ser preterido pelo outro no julgo do Estado Federal. Bom, se em relação aos Estados a questão é praticamente impensável, então o que dizer com respeito aos Municípios?

O Poder Judiciário dos Estados, por sua vez, a quem caberia aplicar eventual lei penal, ou outras, aprovada pelos entes federativos, “enlouqueceria” com o efetivo controle das mais inusitadas normas jurídicas, haja vista a perda significativa da qualidade dos textos legislativos, por vezes intencional. E essa preocupação não é pra menos, dado que os textos das Leis aprovadas no Congresso (que reúne representantes de todos os membros federativos) apresentam substanciais deficiências, inclusive gramatical.

Sob essas singelas observações, temos que a vontade do governador do Rio de atrair para os Estados mais poderes ou competência, sobretudo para legislar em matéria penal, é tão-somente ideológica e no momento de manifesta comoção social, quando os políticos tentam, sem sucesso e a todo custo, mostrar serviço. Além do que, tendo em conta a elevação do índice da corrupção e das várias outras espécies de crimes, a ampliação ou delegação suplementar de competência para os entes federados poderá servir a outros interesses que não aqueles da população, conforme tem mostrado bravamente a mídia, principalmente.

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1 Noticia publicada no “site” oglobo.globo.com.br, em 07 de fevereiro de 2007.

2 Ver www.oglobo.globo.com/rio/ancelmo, em 20 de fevereiro de 2007.

3 “Vide” ALEXANDRE DE MORAES, “Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional”. São Paulo: Atlas, 2002. p. 680-681.

4 “Cada Estado reger-se-á pela Constituição e pelas leis que adotar respeitados os princípios constitucionais da União”. Texto disponível no “site” www.presidencia.gov.br/legislação.

5 Ver Professor ROBERTO ROMANO, em artigo denominado “Passado, presente e futuro da universidade brasileira”, publicado no “Jornal da Unicamp”, Edição 339, <_st13a_metricconverter w:st="on" productid="2 a">2 a 8 de outubro de 2006, p. 6-7: “Os Estados Unidos são uma federação verdadeira. Há uma grande centralização do poder em Washington, mas há também uma efetiva autonomia dos municípios e dos estados para todas as políticas públicas. O que eles conseguem fazer, positiva ou negativamente, pode servir como modelo, mas tem de ser pensado sempre no critério de que não pode existir apenas uma cópia, como aconteceu com a reforma universitária da ditadura”.

6 “Elementos de teoria geral do estado”. 11.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1985. p. 227.

7 THEMOSTOCLES BRANDÃO CAVALCANTI. “Manual da constituição”. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977. p. 62.

8 Notícia veiculada no “site” www.congressoemfoco.ig.com.br, em 20/01/2007.

9 Informação veiculada no www.conjur.com.br, em 07/07/2000.

10 Pronunciamento completo. Senado Federal. 12/08/1996.

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*Advogado em São Paulo e pós-graduado em Direito





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