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Centenário do livro “As dirimentes do Código Penal”

A obra centenária, “As dirimentes do Codigo Penal: estudo theorico pratico do art. 27 do Codigo Penal da Republica”, foi publicado em 1923 pela editora Saraiva & Comp., posteriormente apenas “Saraiva”.

23/6/2023

Neste ano observamos o centenário de um livro raro de direito penal, de autoria de Vasco Joaquim Smith de Vasconcellos.

Seu ator é o tio-avô de Marta Teresa Smith de Vasconcellos, mais conhecida como Marta Suplicy, política e psicóloga, cujo parente distante, acima mencionado, foi juiz de direito, além de descendente direto de Rodolfo Smith de Vasconcellos, o segundo barão de Vasconcellos (1846 — 1926), escritor do “Arquivo Nobiliárquico Brasileiro”, compêndio que realiza o inventário dos títulos nobiliárquicos brasileiros e dos brasões registrados no Cartório de Nobreza e Fidalguia.

A obra centenária, “As dirimentes do Codigo Penal: estudo theorico pratico do art. 27 do Codigo Penal da Republica”, foi publicado em 1923 pela editora Saraiva & Comp., posteriormente apenas “Saraiva”.

Sua apresentação, econômica, embora elegante, menciona: “outra cousa não pretendo senão facilitar o exame destas questões aos jovens promotores e advogados que labutam na tribuna judiciaria”. E complementa, dizendo que sua obra não traz nada de novo, mas permite a distinção entre o ingrediente e o tempero preparado, desde a invocada frase de Dom Frei Amador Arrais: “Confesso que as mais das iguarias com que vos convido são alheias, mas o guizamento dellas é de minha casa”.

A urdidura do prefácio ficou à cargo do jurista Esmeraldino Bandeira (1865-1928), jurisconsulto e político que fez seus estudos na Faculdade de Direito do Recife. Aluno de Clóvis Bevilacqua, posteriormente atuou  como promotor de justiça, procurador da república no governo Prudente de Morais, deputado federal, prefeito do Recife, com destacado exercício do magistério na Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro, então Distrito Federal. Foi ainda Ministro da Justiça e Negócios Interiores no governo de Nilo Peçanha, quando regulamentou o patronato dos egressos da prisão, além de ter organizado a comissão encarregada de elaborar o Código de Processo Civil e Criminal do então Distrito Federal.

O texto prefacial, propriamente dito, observa a dificuldade da tarefa: analisar os 7 parágrafos do art. 27 do Código Criminal, atribuindo o problema a questões de “atribuição”, pois versavam temáticas pertencentes menos aos domínios do Direito do que ao reino da psiquiatria e da psicopatologia forense! E isto porque, em suas palavras, seriam “sciencias em que muitos dos principios e muitas das conclusões se acham ainda em período de elaboração antes mesmo que de evolução”.

Provavelmente o mais interessante desta centenária obra, portanto, seja visitar o tema da imputabilidade penal com 100 anos de distância, mas percebendo que as dificuldades continuam as mesmas diagnosticadas, embora aumentadas, com alguma atualização e humanismo, bem entendido, no tocante a maior importância da área médica do que o plano do “deserto do real jurídico”!

A segunda questão problemática, prossegue, se relaciona ao fato de que aquele código penal analisado, em particular, “para qualquer de seus objectivos, está preso à eschola tradicional e hoje exhausta da imputabilidade ou responsabilidade moral, decorrente do muito discutido e imprestavel livre arbítrio”.

Analisando o direito comparado, o prefaciador menciona diversas experiências, como o caso argentino, peruano e italiano, atribuindo também um grave problema à doutrina jurídica através do manejo da expressão “superfectação”, agregando: “a nossa legislação penal ainda não se despiu das superfectações doutrinarias, que lhe fazem vacilante a applicação”, com isso denunciando o problema da multiplicidade de proposições interpretativas, o que deixa bastante interessante o uso da metáfora, uma vez que a superfetação ocorre quando “um feto adicional é concebido dias ou mesmo semanas após o primeiro bebê ser gerado”.

O prefácio chama atenção principalmente por três elementos.

Primeiro, o tom inicial extremamente laudatório para com o autor: “Magistrado superiormente culto e nobremente apaixonado pelas funcções de seu cargo; observador intelligente, estudioso e esforçado, ninguem melhor do que elle podia indicar e resolver as questões, que diariamente se debatem em Juizo a proposito das dirimentes enumeradas no art. 27 do nosso Cod. Penal”.

Segundo, por sua subsequente escolha por um capítulo e temática de sua predileção: “si me fosse possivel externar preferencias por um ou outro dos capitulos de que se compõe este livro, eu apontaria principalmente ao leitor o Capitulo VI, que se inscreve — privação dos sentidos e intelligencia — e que largamente examina e esclarece as mais difficeis questões de pathologia mental e outras affins”.

Terceiro, por encetar  uma subsequente abordagem crítica ao próprio autor, dentro do próprio prefácio, após elogia-lo: “resente-se, entretanto, de pequenos senões, o livro de que estou a falar”, e prossegue: “falta visivelmente unidade de doutrina. Ahi, para coordenar argumentos e fundamentar conclusões, firma-se o illustre autor em escholas diversas e em doutrinas antagonicas: firma-se em Carrara e Ferri; Rossi e Dorado Montero; Vacaro e von Liszt”.

E arremata, ainda, com outra crítica envolvendo questões de algum interesse atual para a moderna vitimologia: “Tambem não me parece acceitavel o conselho, ainda que repectido, de Orlando Marçal — que aos delinquentes se dispensem, fraterna e amorosamente, as provas de solicitude e de solidariedade a que têm direito”.

Prossegue, dizendo: “Não; quem tem direito a isso, não é o criminoso, é a victima. Tratá-lo de tal modo é expropriar de seu direito quem nelle foi offendido pelo delicto. Ao criminoso deve-se apenas um tratamento que o não flagele, nem que o corrompa ainda mais”

Em seu raciocínio preenchido por um ethos jusmoral, típico do pensamento criminal da transição do século XIX para o XX, concluiu: “À vítima, sim, é que se deve um trato fraterno e amoroso, maximè si ella for innocente e digna”,  e finaliza dizendo: “são falhas superficiaes de um trabralho, que se recommenda por seu valor intrinseco e pela probidade scientifica de seu illustre autor”. Discordamos!

De fato, a obra é composta por 9 capítulos, iniciando por uma especie de “teoria geral das dirimentes” (1), passando pela imputabilidade dos menores de 9 anos (2), seguindo com o tratamento sobre os maiores de 9 e menores de 14 anos (3), percorrendo na sequência aquilo que à época se denominava  de “imbecilidade nativa” (4), o enfraquecimento senil (5), a privação dos sentidos e da inteligência (6), a “violência física irresistível” (7), a “casualidade” (8), e, por fim, a “surdi-mudez” - congênita ou adquirira (9).

Quanto aos 4 últimos, traz destaque especial para a jurisprudência dos tribunais, sendo, neste particular, de superlativa importância para o campo do direto comparado entre o “direito de hoje” e o “direito do passado”, muito embora a linguagem precise ser humanizada e atualizada, permitindo ao leitor percorrer as páginas de uma época distante e vislumbrar como o direito era construído sobre tais temas há mais de 100 anos, e, talvez, induzindo (quem sabe), o choque por uma aparente e brutal familiaridade.

O manuseio da obra permite, também, lidar com a influência literária do campo da época, quando se verifica que a bibliografia menciona os maiores e mais famosos textos brasileiros daquele tempo, sem mulheres citadas, com muitos textos franceses, que entre os estrangeiros são os de maior número, seguidos de autores italianos e espanhóis.

Desfilam, entre vários outros, o clássico de Tobias Barreto (Menores e Loucos), textos do próprio prefaciador Esmeraldino Bandeira (Licções de Direito Criminal; Politica Criminal), além de livros de Silva Ferrão (Theoria do Direito Penal), Viveiros de Castro (Jurisprudencia Criminal), Evaristo de Moraes (Estudos de Direito Criminal; Problemas de Direito Penal e Psychologia Criminal), além do livro criticado pelo prefaciador pela sugestão  de tratamento fraterno e amoroso aos réus, de autoria Orlando Marçal (Da Imputabilidade Criminal).

Talvez a releitura deste texto centenário nos recomende mais amor e fraternidade, uma vez que, de tudo quanto criticado pelo prefaciador e desenhado pelo autor, nada supere e nem revogue o necessário tratamento digno, cujo núcleo provavelmente seja caracterizado pelas palavras “amor fraterno” que nos faz vindicar mais amor por favor!

Por isso, mas não apenas, este texto é dedicado a 2 autoras e 2 autores do tempo presente, professoras e professores e suas fabulosas obras: Carolina Costa Ferreira (“A política criminal no processo legislativo”), Soraia da Rosa Mendes (“Feminicídio de Estado”), José Carlos Porciúncula (“Lo objetivo y lo subjetivo en el tipo penal”), e, Airto Chaves Júnior (“Além das Grades: a Paralaxe da Violência nas Prisões Brasileiras”). Falam, cada um à sua maneira, de respeito e dignidade, palavras que também se vinculam ao amor mais fraterno e profundo que se deve propagar.

Lembremos: justiça sem hóstia, pena ou perdão, mas tão somente o pulsante amor no coração, lembrando as recentes palavras de Cornel West, de que “a justiça é [ou deve ser] o que o amor parece ser em público”.

Thiago Aguiar de Pádua
Doutor em direito. Professor da Faculdade de Direito da UnB. Ex-assessor de ministro do STF. Autor do livro "O Common Law Tropical: o caso Marbury"(2023). Sócio de Aguiar de Pádua & Lima Advogados.

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