Nos últimos tempos, operou-se grande polêmica social em relação ao Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS: se possuiria caráter taxativo ou se seria exemplificativo. O assunto ganhou notoriedade em todo o país e implicou ao ponto de que o legislativo, em resposta, editasse o PL 2.033/22; pretendia-se, declaradamente, acabar com o caráter taxativo do Rol da ANS. Referido projeto de lei foi editado em tempo recorde e sancionado pelo Presidente da República, sem vetos, no dia 21 de novembro de 2022.
Já há 6 meses vigente, a lei 14.454/22 expõe que os tratamentos médicos que não constarem da lista da ANS deverão ser concedidos pela operadora de planos de saúde desde que se verifique algum dos requisitos abaixo: a) a comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em e plano terapêutico; ou b) recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec);ou c) recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais.
Desde então, muitas discussões foram verificadas judicialmente, dentre as quais o debate sobre a prevalência dos critérios da lei 14.454/22 em relação ao posicionamento do STJ (anterior à lei), que trazia consigo requisitos semelhantes para superação do Rol, no entanto, ao pressuposto de que este seria taxativo e não exemplificativo – como pretendeu a Lei.
Além disso, ganhou destaque o debate sobre o marco de incidência da lei 14.454/22. É que, apesar de a lei indicar expressamente que teria vigência a partir de sua publicação (no que se depreenderia a aplicação apenas para casos futuros, em observância à lei vigente na data dos fatos), há decisões judiciais esparsas do STJ, nas quais foi determinada a aplicação da lei para casos em andamento, que diziam respeito a tratamentos continuados. No entanto, em relação ao ônus probatório e ao direito constitutivo do autor, pouco se verifica em termos jurisprudenciais. Isto chama atenção, porque estes pontos vêm a ser repercussões nevrálgicas da lei 14.454/22. Isso porque – conforme se explicará - o ônus de provar, nos termos do que foi estabelecido pela Lei e do que foi decidido pelo Superior Tribunal de Justiça em seu paradigma, ficou ao encargo do consumidor, contrariando usuais decisões que invertiam o ônus da prova em favor do beneficiário, sem maiores delimitações.
Na verdade, pelos termos do art. 6º do CDC, a inversão do ônus da prova deve ocorrer quando for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências. Como se percebe, a inversão do ônus da prova dá-se mediante o preenchimento dos requisitos específicos mencionados pela lei e, mesmo com isso, o consumidor não fica desonerado de trazer aos autos o mínimo do seu direito constitutivo. E o que acontece por intermédio do novo projeto de lei sancionado é que o direito do autor passa a ter critérios objetivos: não somente a prescrição médica, mas também (i) evidências científicas e (ii) plano terapêutico, por exemplo.
Então, o direito constitutivo do autor (na inteligência do art. 373, inc. I do CPC) vai acrescido de elementos que até então não eram requisitos legais expressos de constituição desse direito. Nessa situação, deve-se observar que a prerrogativa de evidências científicas e plano terapêutico, notadamente, advém do médico assistente do consumidor, tratando-se de prova positiva ao autor da ação. Sobre isso, aliás, em julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça fez-se constar que a simples juntada de prescrição médica pelo paciente seria insuficiente à concessão de coberturas pelo plano de saúde:
Diante desse cenário, buscando uma posição equilibrada e ponderada, em recente decisão monocrática, ao julgar o REsp 1.943.146/SP, o eminente Ministro Marco Buzzi, à luz do entendimento atual da 4ª turma, esclareceu o posicionamento daquele colegiado, assentando que: a) a partir do entendimento de que o Rol da ANS não é exemplificativo, a demanda de cobertura de procedimentos ou medicamentos nele não previstos deve ser observada caso a caso, podendo ser admitida, de forma excepcional, quando demonstrada a efetiva necessidade, por meio de prova técnica; b) não basta, portanto, apenas a prescrição do médico que acompanha o paciente, devendo ser observados, prioritariamente, os procedimentos e os medicamentos constantes no Rol de cobertura mínima, podendo ser autorizada a cobertura em hipótese não prevista somente em circunstâncias/situações excepcionais, com demonstração técnica da efetiva necessidade.
Nesse sentido, os elementos científicos ou recomendações de órgãos de avaliação de tecnologia devem ser utilizados inclusive para embasar a decisão de prescrição do tratamento ao paciente. Ao cabo, e se a atuação do médico assistente não proporcionar os elementos de evidência requisitados pela Lei 14.454/22, deverá se ter em conta o princípio da colaboração das partes e do juiz, observando-se que é admitido que o próprio juiz requisite as provas necessárias ao deslinde do feito e que estas - as provas - decorre hoje de requisito legal-técnico expresso. A repercussão se torna ainda maior quando analisado o princípio do contraditório, já que eventual contraprova poderá ser realizada ou por câmara técnica ou por expert indicado pelo juízo, mas não diretamente pela operadora de planos de saúde, que só poderá atuar na carência de qualificação científica das evidências. Explica-se: pelo disposto nos artigos 37 e 52 do Código de Ética Médica, é vedado aos profissionais especialistas da operadora de plano de saúde realizar análise que ataque a segurança ou eficácia da prescrição médica realizada, não sendo permitido nem mesmo o apontamento de alternativos terapêuticos previstos no Rol. Vejamos:
Relação com pacientes e familiares. É vedado ao médico: [...] Art. 37. Prescrever tratamento ou outros procedimentos sem exame direto do paciente, salvo em casos de urgência ou emergência e impossibilidade comprovada de realizá-lo, devendo, nessas circunstâncias, fazê-lo imediatamente após cessar o impedimento. [...] Relação entre médicos. É vedado ao médico: Art. 52. Desrespeitar a prescrição ou o tratamento de paciente, determinados por outro médico, mesmo quando em função de chefia ou de auditoria, salvo em situação de indiscutível benefício para o paciente, devendo comunicar imediatamente o fato ao médico responsável.
Isso ocorre porque a atuação da operadora de planos de saúde, evidentemente, não inclui exame direto ao paciente - e nem poderia incluir, na medida em que não é a isso que se presta um plano de saúde. Compete, então, analisar quais as solicitações médicas encontram amparo contratual e legal, motivo pelo qual o ônus probatório de evidências científicas não pode ficar ao encargo da operadora de planos de saúde. Decorrência disso, não se pode cobrar que a operadora incorra em situação que pode proporcionar aos seus especialistas uma infração ética junto ao conselho regulador da atividade médica, pois isso seria imputar-lhe uma prova diabólica.
Aliás, a mínima tentativa de ingerência da operadora de planos de saúde no tratamento médico designado pelo assistente seria frontalmente rechaçada pelo Poder Judiciário, no intuito de preservar os limites de atuação do plano de saúde. E se isto é verdade, não se poderá - em contradição lógica - simplesmente atribuir a inversão do ônus da prova à operadora, sem a mínima a análise de qual a prova a ser entregue ao juízo, ou mesmo sobre quais consequências (neste caso, de infração ética) repercutidas em virtude de uma inversão de ônus da prova sem (ou des)medida.
É por isto que se denota tão importante a análise do ônus da prova e de sua eventual inversão pelo Poder Judiciário.
O que não há de se admitir é que, à revelia dos próprios requisitos legais estipulados para superação do Rol da ANS e da vedação legal e ética à interferência no tratamento médico pela operadora de planos de saúde, se inverta deliberadamente o ônus da prova em favor do consumidor, a pretexto de uma hipossuficiência que não lhe pertencerá, pois este deverá ser amparado por seu médico assistente.