As universidades brasileiras, sobretudo as instituições públicas de ensino superior, são alvos de constantes ataques à sua reputação. Como contraponto ao prestígio de cada uma delas, confirmado por cada atualização nos rankings nacionais e internacionais que verificam a qualidade de ensino, diversas lideranças políticas fomentam um espantalho a partir da construção de um imaginário no qual os campi universitários seriam espaços regrados a álcool, drogas ilícitas e sexo. Práticas essas que seriam realizadas por estudantes supostamente sem compromisso com o ensino, a pesquisa e a extensão universitária.
Exemplo concreto desse discurso é a tramitação, na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, do projeto de lei 546/2023, que, nos termos da sua ementa, veda a compra e o consumo de bebidas alcoólicas nas universidades públicas e privadas de São Paulo, bem como as festas "open bar". A proposição é originalmente de autoria da então deputada estadual Janaína Paschoal, professora da USP, mas recentemente foi protocolada novamente pela deputada Marta Costa, do PSD, em razão do arquivamento da proposição original.
Diante da ideia de proibir o que já é proibido, haja vista a existência de normativos nas universidades estaduais de São Paulo -- USP, Unicamp e Unesp -- que restringem o consumo de álcool nas universidades, como por exemplo a resolução nº 7088, de 26 de agosto de 2015, é preciso levantar uma questão elementar: projetos de lei como o proposto têm um interesse público na proteção dos alunos frente aos possíveis riscos decorrentes do abuso de álcool ou apenas mascaram um real interesse em caricaturar as universidades como espaços de balbúrdia, visando assim deslegitimar as reivindicações estudantis?
Para responder essa questão é preciso afastar determinados discursos utilizando, para isso, dados da realidade. Em 2019, o então ministro da educação, Abraham Weintraub, declarou que as universidades teriam mais a ver com "politicagem, ideologização e balbúrdia" e que em seus respectivos campus existiriam cracolândias.
A partir dessa constatação, Weintraub promoveria cortes de verbas nas instituições de ensino. No entanto, as universidades então acusadas por Weintraub de serem centro de desordem, isto é, a UnB, a UFF e a UFBA, haviam melhorado a sua posição no principal ranking universitário internacional, o Times Higher Education (THE), demolindo a partir de dados concretos as afirmações do ex-ministro.
No que se refere à existência de álcool e a sua possível proibição, em específico nas universidades alvo do projeto de lei aqui debatido, cabe ser analisada a proporcionalidade e a razoabilidade da medida pretendida. O consumo de álcool dentro e fora dos campi é uma realidade que ninguém tem a pretensão de esconder. Alunos bebem em seus momentos de confraternização e professores em seus coquetéis de lançamento de livros.
Apenas criando uma falsa hipótese na qual o consumo de álcool ocorresse dentro de salas de aula, durante atividades acadêmicas ou em espaços fora do contexto adequado de uso, se pode imaginar razoável legislar no sentido do ampliamento das atuais proibições.
Se não há nenhum caso notório relacionado ao consumo de álcool nessas situações, por que é que seria proporcional restringir a autonomia dos estudantes decidirem, por conta própria e de maneira responsável, se irão realizar ou não o consumo de drogas lícitas ou ilícitas nos seus momentos de convívio social? Após terem cumprido todas as suas obrigações acadêmicas e sociais?
Pode-se argumentar favoravelmente a uma medida restritiva a partir do elencamento de casos nos quais alunos tiveram os seus direitos violados em festas universitárias nas quais havia o consumo de álcool. Todavia, as graves situações de saúde decorrentes do abuso do álcool e a exposição a eventuais riscos decorrentes do seu consumo não acontecem apenas nos espaços universitários, sendo visíveis cotidianamente em toda a sociedade.
No Brasil, a pesquisa "Álcool e a Saúde dos Brasileiros – Panorama 2022", publicada pelo Centro de Informações Sobre Saúde e Álcool, constatou que as mortes parcial e totalmente atribuíveis ao álcool atingiram o patamar de 66.593 vítimas.
Se uma estatística tão grave como a citada não levou as autoras da referida proposta legislativa a legislarem no sentido da proibição do álcool em todas as esferas da sociedade, surge uma evidente contradição em propor a restrição apenas aos espaços universitários.
E se já vigoram resoluções proibindo o uso de álcool nas universidades e as festas promovidas dentro dos campi já são cotidianamente dificultadas, o protocolo de um novo projeto de lei com um conteúdo evidentemente proibicionista aparenta ser apenas um fato político cujo o objetivo não é promover a saúde dos estudantes e o bom desempenho acadêmico, que existe independente do consumo de álcool, mas sim contribuir com o estereótipo reacionário e preconceituoso das universidades públicas como locais de balbúrdia.
Para combater o potencial abuso de substâncias psicoativas no contexto universitário é preciso uma política de redução de danos e não de moralismo e abstinência. Nesse sentido, iniciativas como as ações de redução de dano e conscientização sobre o uso responsável de drogas, como as promovidas pelo Observatório Antiproibicionista da Faculdade de Direito da USP, devem ser priorizadas frente ao negacionismo científico e ao conservadorismo moral. Tal como incentivo e apoio das universidades às Comissões Antiopressão organizadas pelos estudantes em suas festas universitárias.
Infelizmente, iniciativas como essas têm sido criminalizadas, como demonstra o inquérito policial aberto para investigar o Observatório Antiproibicionista em razão da publicação de recomendações sobre medidas de redução de danos no uso de drogas, com a intervenção da então deputada Janaína Paschoal.
De acordo com a iniciativa "Drogas: Quanto Custa Proibir", São Paulo gastou, em um ano, R$ 4,2 bilhões com o combate às drogas. Esse valor, gasto sem qualquer controle em relação a sua efetividade, poderia incluir 43.000 novos alunos caso fosse integralmente investido na USP.
Supor que é preciso militar pela tolerância zero às drogas, seja dentro ou fora das universidades, é promover os principais fundamentos da fracassada guerra às drogas. As universidades estaduais de São Paulo e as demais universidades brasileiras não precisam de mais proibicionismo.