A necessidade da reforma agrária é, antes de tudo, a manifestação de um problema social. Durante o curso da história, reformas agrárias foram feitas para amenizar conflitos oriundos da concentração de terras nas mãos de poucos. Não é uma invenção “comunista”; ao contrário, são tão antigas quanto as organizações sociais.
Aproximadamente duzentos anos antes da Era Cristã, os irmãos Graco, em Roma, já realizavam uma reforma agrária drástica, expropriando e limitando o tamanho das propriedades que cada um poderia possuir, sendo o excedente distribuído, objetivando a redução do número de pessoas nas cidades que fugiam da crise do setor agrícola. Com a queda de Roma e o advento do feudalismo que substituiu o Império, a decadência das cidades e o retorno ao mundo rural fortaleceram durante séculos a concentração de terras nas mãos de muito poucos.
A Revolução Francesa e seus ideais liberais e capitalistas iniciam o processo da distribuição das terras pertencentes à nobreza. O mundo feudal e agrário concentrava nas mãos de poucos a riqueza oriunda das terras produtivas e não produtivas, mantendo em dependência econômica e social os pequenos produtores e, mais ainda, aqueles que não tinham nenhum acesso a terra. Em um mundo onde quase 80% da população do país viviam no campo, pode-se imaginar o resultado funesto da brutal concentração da propriedade da terra.
O ímpeto revolucionário francês na construção do liberalismo foi sintetizado na famosa Declaração dos Direitos do Homem e Cidadão de 1789, que estabelecia logo em seu artigo 2º, os direitos naturais e imprescritíveis: “a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”. Os revolucionários franceses entendiam que a liberdade a ser construída com o fim da opressão feudal e do absolutismo monárquico deveria contemplar o direito de cada cidadão poder ser proprietário. Sem propriedade a liberdade perderia em alguma medida o seu sentido.
Para os revolucionários franceses, a liberdade não poderia representar apenas o rompimento com os laços feudais, ou a mera liberdade para que vínculos laborais fossem estabelecidos ou, ainda, o simples direito de ir e vir sem constrangimentos ou controles. Não se tratava de transformar homens que, no passado, dependiam dos senhores feudais em atuais dependentes de grandes proprietários burgueses. Sem propriedade não se teria a liberdade de evitar a servidão, ainda que de outra natureza.
Ao contemplarem a propriedade como um direito natural, os revolucionários franceses compreendiam que no início da caminhada da humanidade ninguém era dono de nenhum território. A aquisição das terras através da história somente foi possível por meio de guerras de conquistas e de usurpações. E, para os revolucionários franceses, sendo um direito natural, a dimensão da propriedade deveria ser compatível com a possibilidade de todos serem dela proprietários.
Apesar de constar no artigo 2º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a noção da propriedade como um direito natural de todos sofreu interpretações distintas. A nobreza entendia que o direito natural era dela, e não de todos, e, nesse momento, a burguesia capitalista já proprietária concorda com a ideia de que o direito de propriedade não é algo que deva ser estendido a todos. A concentração da riqueza interessava não apenas aos nobres, mas também ao capitalismo nascente.
A grande mudança veio quando os jacobinos conquistam o poder e passam a defender a necessidade da restrição do tamanho das propriedades, que deveriam ter alguma função, de vez que não admitiam a possibilidade de terras não cultivadas ou improdutivas.
No curso do processo revolucionário, a própria liderança burguesa capitalista entendeu que a propriedade não era propriamente um direito natural, mas, sim, uma decorrência da lei. Em outras palavras, o direito determina quem é o proprietário da terra.
Desde a Revolução Francesa, portanto, ficou pacífico que a lei pode determinar a distribuição das terras, tanto quanto a dimensão que cada um pode possuir. Foram os revolucionários franceses, no nascimento do capitalismo, os responsáveis pela construção da ideia de que terras improdutivas devem ser distribuídas. Não foi o comunismo, não foi a Revolução Russa de 1917. Foi a Revolução Francesa de 1789.
A reforma agrária era o caminho para a criação de um país com dezenas de pequenos produtores que alimentariam as suas famílias, acumulariam riquezas e renda e se transformariam em consumidores, não só de produtos agrícolas, mas do comércio em geral, particularmente nas cidades. O objetivo aqui era viabilizar a existência de pequenos proprietários rurais, inclusive para evitar o excesso da concentração urbana, e as cidades com grandes contingentes de miseráveis.
Não há, portanto, como separar a reforma agrária da economia capitalista. É dela que provém o aumento dos consumidores que terão condições financeiras para adquirir novos produtos agrícolas, mas também aquilo que se produz nas indústrias das cidades. Os filhos dos novos agricultores vão frequentar as escolas e o mundo urbano se desenvolverá ao redor dos cinturões advindos da reforma agrária. Ao mesmo tempo, não é só o novo consumidor que alimenta a economia local o único benefício social advindo da reforma agrária. Não se pode esquecer do impacto econômico representado pelo aumento da produção agrícola interna para o país como um todo.
No Brasil – e em qualquer outro país – se o agronegócio é fundamental para o equilíbrio da balança de pagamentos, em face da entrada de divisas provenientes das exportações não menos fundamental é o aumento do número de pequenos produtores criado pela reforma agrária, o que possibilita, inclusive, um melhor controle da inflação dos produtos agrícolas, considerando que mais de 70% da produção dos pequenos e médios produtores abastecem os supermercados do Brasil. Não é a colheita do agronegócio que alimenta as famílias brasileiras.
Nosso país tem uma das maiores concentrações de terras do mundo. Aproximadamente 1% da população brasileira detém 46% das terras produtivas, segundo o índice GINI, adotado pela ONU para detectar o problema. Tal número é relativamente muito maior que a concentração de terras na França às vésperas do processo revolucionário, 234 anos atrás. Aquele país, depois de quase mil anos de feudalismo, e na véspera da Revolução Francesa, tinha mais possuidores de terras do que o Brasil nos dias de hoje. Na maioria das regiões francesas, antes da Revolução, quase 30% dos camponeses já detinham a posse de terras e, mesmo assim, ao longo do processo revolucionário, uma enorme quantidade de áreas improdutivas foi distribuída, possibilitando o crescimento econômico do país ao longo do século XIX.
A necessidade da reforma agrária em terras improdutivas é, antes de tudo, um sintoma social do enorme desequilíbrio entre os proprietários e não proprietários que desejam ter alguma terra para trabalhar. Mas, para além da questão humanitária, a reforma agrária é uma ferramenta para assegurar o crescimento da economia do país. Não há lugar que tenha crescido de forma organizada e consistente sem reforma agrária. Seus benefícios estão registrados na literatura econômica e politica e na vida cotidiana dos países que a enfrentaram.