Migalhas de Peso

Multiculturalismo e diversidade: Breves apontamentos

Talvez seja hora de recorrer à linguagem para nos ajudar a lidar com o “novo normal”, onde o sonho americano é agora um pesadelo real.

15/6/2023

*Traduzido por Tereza Rodrigues Vieira, PhD em Direito.

Escrevendo de uma época e de um país onde o culto do monolinguismo tomou como refém o valor da alfabetização global, paradoxalmente em um momento em que uma diversidade de idiomas floresce demograficamente dentro de nossas fronteiras, palavras como “multiculturalismo” e “diversidade cultural” foram apropriadas e manipuladas para permanecerem estagnadas; isto é, meras palavras sem ação por trás de seu zumbido.

Ainda mais desconcertante é o fato de que tais termos são frequentemente empregados para simbolizar a existência e a visibilidade de populações denominadas “minorias”. Há muito designada e discriminada categoria “minoria” está transformando realidades demográficas de países como os Estados Unidos da América (EUA) e o Brasil para se tornar a “maioria” de nossas populações. Na verdade, a categoria discriminada como “minoria” é uma imposição patriarcal. As realidades demográficas de países como os EUA e o Brasil mostram que, cada vez mais, os cidadãos deslocados e relegados ao status de “minoria” são de fato a maioria de nossas populações. As margens deixadas de lado pelas ideologias cisheteronormativas, racistas antinegras e supremacistas brancas estão explodindo enquanto migra para o centro, o coração interseccional do que significa ser um cidadão global em um mundo cada vez mais diverso. Termos como “multiculturalismo”, “política de identidade minoritária” e “diversidade” não nos servem mais, mas nos escravizam a marcadores que restringem nossas liberdades e mantêm a injustiça social e as desigualdades políticas e econômicas em sociedades capitalistas que se autodenominam “verdadeiras” democracias.

Deixando minha alma e meu coração no Brasil, um lugar que amo, embora more e trabalhe no estado da Flórida, que rapidamente se tornou um campo de batalha para “guerras culturais”, um eufemismo para medo e ódio baseado na diferença. Vivo em um estado assediado pelo autoritarismo e pelo fascismo, onde o Projeto de Lei dos “Direitos dos Pais na Educação” resulta exatamente no oposto: “Não diga gay”, “Não diga trans”, censurando efetivamente as próprias palavras que usamos para nos definir quando reconhecemos as nossas identidades. Eu moro em um estado onde está se tornando ilegal para jovens trans (e adultos também, aliás) receber cuidados de afirmação de gênero, onde os direitos reprodutivos de uma mulher desaparecem completamente na sexta semana de gravidez, independentemente de o feto ser produto de estupro ou escolha, de coerção ou consentimento. Eu moro em um estado onde massacres públicos epidêmicos e tiroteios em escolas cada vez maiores reforçam repetidamente a realidade imposta pelo estado de que o direito de portar armas é mais importante do que the arms (os braços) que usamos para abraçar uns aos outros, que a alegação falaciosa de autodefesa supera o desejo e a necessidade de defendermos não apenas uns aos outros, mas especialmente nossas populações mais vulneráveis ??– mulheres trans de cor, jovens LGBTQIA+, nossos gays da terceira idade– estamos experimentando um nível de desumanidade que ainda não começou a levar a diversidade a sério. Moro em um estado onde nossas escolas nunca foram seguras, mas agora são mais perigosas do que nunca.

Eliminando e até mesmo criminalizando os direitos dos professores e conselheiros de dar uma mão amiga ou um ouvido solidário aos nossos jovens alunos que sofrem de um defeito terminal chamado “diferença”, aos olhos de nossa legislatura estadual, os alunos LGBTQIA+ do jardim de infância ao ensino médio devem buscar refúgio no armário.

Moro em um estado e em um momento em que penso nos brasileiros que sobreviveram a Bolsonaro apenas para lutar com os remanescentes do bolsonarismo. Quer resistamos à “ideologia de gênero” imposta por Bolsonaro ou à cruel agenda transhomofóbica de De Santis para apagar nossas histórias, as histórias delas, as histórias deles, e as histórias delus o verdadeiro significado por trás de palavras como “democracia” e “diversidade” não é mais registrado em nossas listas de frequência escolar. São termos utópicos encontrados em dicionários de outra época, de um passado ficcional que nos levou a acreditar que havíamos feito o trabalho de superar os horrores da eugenia, do racismo, do machismo, da misoginia, da homolesbobitransfobia. Moro no condado de Miami-Dade, um local icônico, senão um clichê cansado do suposto “sonho americano” para (leia-se: privilegiados) brasileiros. Eu moro em um condado que retirou o Mês da História LGBT dos calendários de todas as nossas escolas públicas, um estado que caluniou jovens e adultos transgêneros, criminalizou drag queens ao restringir o acesso a suas apresentações, um estado onde DEI (diversidade, equidade, e inclusão) já não dá mais, onde iniciativas em todos os níveis do currículo estão sob ataque brutal até mesmo em nossas universidades e faculdades. Eu vivo em um estado onde a cultura “woke” (desperta) é lamentavelmente mal compreendida e intencionalmente armada para negar os horrores da escravidão, para apagar séculos de discriminação e, finalmente, para retirar o mais básico dos direitos humanos. Vivo em um estado onde os estudos de gênero, a teoria queer e a teoria crítica da raça estão prestes a se tornar obsoletos, enfrentando o apagamento deliberado de nossas salas de aula e das agendas de nossos administradores educacionais.

Talvez seja hora de recorrer à linguagem para nos ajudar a lidar com o “novo normal”, onde o sonho americano é agora um pesadelo real. Talvez nos beneficiemos recomeçando com um neologismo que, embora paradoxalmente estrangeiro mesmo na língua estrangeira que amo, pode nos ajudar a lidar com as múltiplas interseccionalidades dos estudos críticos da diversidade através da arte, especialmente se reconhecermos a brincadeira que ela acarreta no que os linguistas chamariam de formas “intercompreensivas”. Essa palavra existe, claro, em português, co-criada por dois fantásticos músicos queer brasileiros: Tom Zé, que deu origem à palavra, e Ana Carolina, que a carregou e alimentou apesar das injustiças do primeiro trimestre de um novo milênio onde os dicionários não abrem espaço para sua existência: “unimultiplicidade”.

O neologismo foi cunhado na música “Brasil Corrupção”, de 2005, presente em um álbum que conquistou a certificação Tripla Platina, tendo vendido mais de 300 mil cópias somente no Brasil.

Uni multi pli cidade

Como dar sentido a esta palavra multissilábica, polissemântica e provocadora constituída por ecos de outras palavras. De outros mundos.

O prefixo -uni pode se referir a unificação, união, universalidade ou mesmo universidade. Quando cultivaremos a coragem de parar para pensar que a paternalista instituição acadêmica colonial é atual e atualmente o antônimo de di-versidade (isto é, universidade)?

O segundo prefixo -multi alude ao multiculturalismo (mas não como uma palavra da moda mercantilizada, politizada e monetizada e certamente não como “multiculturalismo corporativo que passou a representar liberdade em um sistema que não pode produzir liberdade real para a forma de vida negra, ” como o estudioso afro-canadense Rinaldo Walcott chama em The Long Emancipation: Moving Toward Black Freedom publicado em 2022.

A terceira sílaba, -pli, invoca pluralidade, pluriversalidade. Ou está mascarada interlinguisticamente como a primeira sílaba de “please”, de por favor? O “plea” (apelo) homônimo, talvez? Se esticarmos um pouco o som, chegamos à plasticidade: plasticidade, elasticidade, maleabilidade. Talvez seja possível treinar nossos cérebros para não odiar, afinal, para refazer os caminhos que levam à discriminação de tal forma que a diferença se torne desejável em vez de desprezível.

Cidade” – uma megalópole como São Paulo, por exemplo, ou Toronto, ou mesmo Miami, referindo-se também à cidadania, cidadania múltipla ou global que transcende os mapas artificiais que são (sub)produtos de passados ??coloniais e presentes neocoloniais que desvalorizam as diferenças ao invés de devorá-las com prazer.

Chegamos finalmente à “idade” – interseccionalidade de idades, de gerações, de épocas ou eras. Ou mesmo um protesto sutil de uma cultura obcecada pela juventude que tão facilmente descarta ou abandona insensivelmente os mais velhos, velhas, e velhes.

Com o desejo de “flexibilizar” esta palavra inventada, como as línguas românicas têm o privilégio e, portanto, a responsabilidade de realizar a transição do adjetivo “flexível” para um verbo em movimento, em fluxo, gostaria de complicar um pouco mais esta noção e estender sua licença poética a um universo maior.

Unimultiplicidivercidade

(Diverdiversion) Mergulhador – desvio; diversidade; diversas formas de ver a cidade ou olhares da cidade, da cidade (não necessariamente no sentido geográfico, demográfico ou mesmo cartográfico, mas, metaforicamente): de ver a cidade, celebrando intercompreensivamente, o mergulho de um “mergulhador” mergulhando no desconhecido, no inconsciente ou no inconsciente coletivo...

Para resumir, então, o que esse termo neológico (palavra nova, nova lógica, novo logos, nova logística) implica e a quem ele se aplica?

União na multiplicidade da diversidade!

Algo ao longo das indefiníveis linhas interseccionais da união co-criadora nasce dentro e através da junção de multiplicidades de diversas identidades. Talvez esse neologismo nos permita contrair para combinar, ou integrar a unidade dentro da multiplicidade, ou em uma conceitualização alternativa, trabalhando juntes e através de múltiplos locais interseccionais ou (re)fontes para atingir objetivos semelhantes, senão singulares – mergulhar e prosperar na diversidade. Com o tropo da unidade na multiplicidade para finalmente transcender a “alteridade” unificando na diferença, a visão provocativa de Tom Zé e Ana Carolina tem o poder de levar o Brasil (e para o Brasil liderar o mundo) a transformar um sonho eufemístico e ufanista em concreto e realidades mensuráveis, combatendo muito mais do que a corrupção política que a letra da música pretendia protestar.

Steven F. Butterman
Ph.D. Professor, Michele Bowman Underwood Department of Modern Languages and Literatures Director, Portuguese Program University of Miami.

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