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Em julgamento, o juiz das garantias

A questão levada à douta decisão da Corte Suprema é relativamente simples, e nem deveria ser objeto de contestação judicial, por ser irretorquível, tendo em vista sua utilidade como meio de fortalecer a nossa Justiça Criminal.

15/6/2023

Iniciou-se nesta quarta-feira (14/6) o julgamento perante o Supremo Tribunal Federal das ADIs de nº 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, que pugnam pela inconstitucionalidade dos dispositivos que instituíram o Juiz das Garantias no processo penal brasileiro, ora por vício de iniciativa – como decorrência de suposta invasão de competência dos tribunais para editar regras de organização judiciária (como se fosse apenas isso, mas não é) –, ora por não se apontar a fonte dos recursos orçamentários que seriam necessários para a sua implementação (o que também não se sustenta). 

Várias entidades, especialmente representações da Advocacia, ingressaram nessas ações na condição de amicus curiae, inclusive a Federação Nacional dos Advogados por mim representada, cujo interesse pela matéria se extrai do art. 133 da Constituição Federal c.c. o art. 44, I, da lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia), com o objetivo de defender que não existe nada de inconstitucional nos dispositivos 3º-A a 3º-F do Código de Processo Penal, acrescidos pela lei 13.964/19. 

A questão levada à douta decisão da Corte Suprema é relativamente simples, e nem deveria ser objeto de contestação judicial, por ser irretorquível, tendo em vista sua utilidade como meio de fortalecer a nossa Justiça Criminal. 

Trata-se de estabelecer comando processual que implica o reconhecimento do impedimento pela prevenção, decorrente de decisão prolatada na fase investigatória de jurisdição, de tal modo que outro juiz vai conduzir o processo em Juízo e sentenciar o feito, tudo em prol de reforçar os padrões de imparcialidade das decisões judiciais em matéria penal. 

São normas gerais de processo penal e que, à evidência, estão sob a tutela legislativa do parlamento nacional. 

A forma como isso ocorrerá, isto é, o modo como os tribunais vão se mobilizar para cumprir o comando legal é que se concretizará em normas de organização judiciária. Não há hipótese de misturar a competência da União para legislar sobre matéria processual penal – porque é disso que se trata – com as regras de funcionamento dos tribunais, que estão sob sua direta responsabilidade, sem olvidar a participação dos advogados que resulta da Constituição (art. 133). 

A cuidadosa criação legal do instituto do Juiz das Garantias, refere que sua designação ficará a cargo das normas de organização judiciária (art. 3º-E, do CPP), ao tempo em que estabelece as importantes funções a serem desempenhadas por magistrado que atuar na fase da investigação, tudo a demonstrar que essa competência para decidir sobre liberdade, busca domiciliar, interceptações telefônicas e de dados, quebras de sigilo bancário e fiscal, não está, absolutamente, afeta a simples regras organizacionais, mas, induvidosamente, é matéria de competência exclusiva da União, por meio de lei federal, conforme a vontade do povo, manifestada por seus representantes. 

Ademais, é possível implantar essa salutar evolução para o processo penal sem gastar rigorosamente nada, isto sim ficando a cargo dos tribunais, que apenas devem garantir que o juiz que se manifestar no inquérito, proferindo decisão que importe julgamento de mérito sobre os envolvidos, não será o mesmo que vai sentenciar o acusado. E isto é muito simples de fazer, especialmente na era dos procedimentos digitais, já implantados na Justiça Criminal de todo o país. 

O art. 5º da Constituição Federal não estabeleceu expressamente a imparcialidade do juiz como necessidade intrínseca à função de julgar, embora vários de seus incisos tornem implícita (e real) essa exigência (XXXVII, LIII, LIV e LV). 

A par disso, o art. 144, II, do Código de Processo Civil, veda o exercício da judicatura quando o juiz conheceu do processo e proferiu decisão em outro grau de jurisdição. 

Pois bem. 

Não se há de negar que, desde sempre, a jurisdição penal de primeira instância se desenvolve em duas fases bastante distintas, repartindo-se em investigação e processo judicial. E, também, há de se reconhecer que o juiz do primeiro grau, na fase investigativa, ainda sem as plenas garantias do contraditório e da ampla defesa a que faz jus o acusado no curso do processo, acaba, em razão das circunstâncias de ter de vencer  as proteções constitucionais à intimidade e privacidade, e da necessária produção de elementos para firmar a justa causa de futura ação penal, por fazer juízos positivos quanto à possível existência de fatos típicos e seus eventuais autores, a indicar, desde logo, o seu convencimento ou juízo de valor, pouco importando se parcial ou preliminar. 

Fato é que, nesses casos, em que o juiz na fase investigativa é provocado a decidir sobre providências excepcionais, as quais exigem a quebra de barreiras constitucionais de cidadania pelo exercício da reserva de jurisdição, termina por fundamentar seu convencimento contra os interesses de futuro acusado, devendo, por força das regras de prevenção, atualmente vigentes, sentenciar o processo ao final. 

Esta é a situação que vem, desde muito tempo, preocupando a sociedade a ponto de que seus lídimos representantes, ainda que tardiamente, tenham implantado o Juiz das Garantias na nossa legislação processual penal com intangível rigidez constitucional, mesmo que isto desagrade a certos setores da política ou da própria magistratura. 

Aliás, tem se tornado uma regra – a nosso sentir, perniciosa – a prática de submeter aos tribunais e, especialmente, a Suprema Corte, todos os temas em que os partidos vejam suas aspirações políticas contrariadas pela vontade da maioria, segundo as regras democráticas das disputas travadas nas casas legislativas. Isto leva à crença de que exista ativismo nas cortes, e tal conduta, de procurar resolver pendências políticas alegando falhas inexistentes no processo legislativo, deve ser energicamente repelida, por suas muitas inconveniências, mas, sobretudo, porque neutraliza o exercício democrático da representação parlamentar e impõe aos tribunais tarefa que não é de sua competência. 

De outro lado, chega a ser incompreensível que entidades representativas da magistratura se voltem contra o aprimoramento da imparcialidade das decisões judiciais. A imparcialidade, como elemento essencial ao exercício da judicatura, é do elevado interesse de todos. E, obviamente, a separação entre o juiz que atua no inquérito daquele que vai presidir o processo e sentenciar o feito garante maior imparcialidade ou, no mínimo, evita desconfianças de que haja pré-julgamentos, antes da submissão dos fatos e da conduta ao devido processo legal, com todas as garantias processuais e constitucionais que balizam o curso da ação penal. 

Cabe ainda observar que a melhor solução, sem custos ou grandes mobilizações, é apenas fazer a distribuição cruzada, já sugerida pelo próprio CNJ, que pode ser implementada em curto espaço de tempo. Não haveria questionamentos orçamentários e nem se criaria dois tipos de juízes no primeiro grau, permitindo que todos atuem nas duas fases do procedimento, desde que não seja nos mesmos autos. 

Em razão desses elementos, que implicam o reconhecimento de que não existe inconstitucionalidade alguma nos dispositivos que inseriram o Juiz das Garantias no processo penal brasileiro, antes se constituindo em avanço e aprimoramento da nossa Justiça Criminal, aguarda-se que as ADIs sejam julgadas improcedentes, para assim reforçar a pleonástica imparcialidade dos juízes criminais.

Antonio Ruiz Filho
Advogado criminalista. É presidente da Comissão de Defesa da Democracia e de Prerrogativas da Federação Nacional dos Advogados. Sócio do escritório Ruiz Filho Advogados. Foi presidente da AASP - Associação dos Advogados de São Paulo, diretor da OAB/SP - Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo e do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo.

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