Em 13 de junho de 2019, o Plenário do Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento histórico que equiparou as condutas homofóbicas e transfóbicas àquelas tipificadas na lei de racismo: um marco inédito na luta contra o preconceito no Brasil. Há quatro anos, o STF reconhecia a omissão legislativa quanto ao tema e dava uma solução jurisprudencial ao impasse – pelo menos, nos termos do acórdão, “até que o Congresso Nacional edite lei sobre a matéria”.
A resposta pela via legislativa, entretanto, parece ao mesmo tempo tão iminente quanto distante: se, por um lado, tramitam vários projetos de lei alavancados pelo avanço das discussões sobre LGBTfobia nos anos recentes, por outro lado, nenhum deles recebe o tratamento e a urgência necessários.
Apenas para citar três exemplos: tramita desde 2017 o Projeto da Lei Dandara dos Santos, que, a espelho da lei 13.104/15, criminaliza o homicídio “contra homossexuais e transexuais por razões da condição de homossexualidade e de transgeneridade” (projeto de lei 7.292/17). Também está em tramitação o mais abrangente PL 7.582/14, que criminaliza discursos de ódio não somente contra a população LGBT, mas também motivados por intolerância religiosa. Ainda mais antigo, o PLC 122/06, que tinha como objetivo criminalizar a homofobia nos moldes adotados pelo Supremo Tribunal Federal, foi arquivado em 2014 após tramitar oito anos no Senado, nos quais sofreu forte oposição de bancadas religiosas.
Nesse cenário, a resposta provisória do Supremo Tribunal Federal ao vácuo legislativo vai se tornando o único meio existente de proteção à população LGBTQIA+, à medida em que o poder efetivamente competente para instituir um novo crime permanece inerte.
De acordo com tradicional levantamento da ONG Grupo Gay da Bahia, baseado em notícias publicadas nos meios de comunicação, só no ano passado 256 pessoas foram vítimas de morte violenta em razão de sua orientação sexual ou identidade de gênero, tendo as autoridades policiais alcançado êxito na elucidação de somente 35,9% desses casos.1 Os números são subnotificados, já que o Estado não possui monitoramento oficial da violência com fundamento na homotransfobia, mas são suficientes para revelar o cenário de vulnerabilidade da população LGBTQIA+ brasileira.
Dessa forma, ainda que não tenha ocorrido pela via legislativa, a criminalização da homotransfobia se mostra cada dia mais necessária para garantir que haja proteção institucional a essas minorias e em respeito a mandamento constitucional fundamental, segundo o qual é objetivo do Estado Brasileiro a promoção do bem de todos, “sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
É importante observar, todavia, que a ausência de um dispositivo legislativo cria um cenário de insegurança, tanto para as vítimas quanto para os operadores do direito.
A título de exemplo, vale mencionar caso recente ocorrido na cidade de Santos (SP), no qual o autor supostamente teria dito às vítimas “vem aqui que eu vou te ensinar a ser mulher, suas sapatões” e “sua sapatão, seu lixo, quer apanhar que nem homem, vem aqui que eu vou te ensinar a ser mulher”. Judicializada a questão, o juízo da 1ª Vara Criminal da Comarca considerou não caracterizada a injúria racial e rejeitou a denúncia do Ministério Público por entender – em desacordo com a equiparação entre injúria racial e homofóbica feita pelo Supremo Tribunal Federal – que a homofobia teria sido “o próprio móvel da vontade do agente”, não tendo o autor tido “como pano de fundo qualquer questão racial”. Foi somente em sede de recurso julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo2 que a decisão foi revertida, determinando-se o prosseguimento da ação penal.
A dificuldade quanto à definição dos termos da injúria fundamentada em homofobia é impossível de ser solucionada com uma simples equiparação, dadas as diferenças inconciliáveis das características da discriminação fundamentada no racismo, orientação sexual ou identidade de gênero. Esse obstáculo somente poderia ser sanado através da criação de um crime que delimitasse com precisão o que configura e o que não configura injúria homotransfóbica, em necessário respeito ao princípio da legalidade.
Em Relatório de Pesquisa sobre Discriminação e Violência contra a População LGBTQIA+ realizado pelo Conselho Nacional de Justiça, foram identificadas várias lacunas procedimentais que constituem grandes obstáculos no processamento dos casos, como a dificuldade de identificação e classificação, bem como quanto ao acesso à justiça pelas vítimas: “Essa dificuldade de acesso a dados aponta para processos de apagamento de elementos de LGBTfobia e de partes LGBTQIA+ ao longo da cadeia institucional percorrida para realizar uma denúncia e dar andamento a um processo.”3
Vale mencionar que a equiparação faz parte de uma série de julgados em que a nossa Suprema Corte, quando provocada, agiu para sanar uma lacuna no ordenamento jurídico quanto aos direitos da população LGBTQIA+, como ocorreu, por exemplo, com o julgamento da ADPI 4.277 e da ADPF 132, que garantiu o direito ao casamento homoafetivo em maio de 2011. Transcorrida mais de uma década desde o julgamento histórico, também não houve, até o presente momento, regulamentação legislativa sobre o tema.
Diante da morosidade – fruto de inadmissível descaso – do Congresso Nacional no equacionamento e criminalização dos atos causados pelo preconceito fundado em orientação sexual e identidade de gênero, não há qualquer dúvida de que a emenda jurisprudencial promovida pelo Supremo Tribunal Federal foi necessária, ainda que seja constante alvo de críticas por ter alargado hipóteses de criminalização que, a rigor, deveriam ser taxativas e determinadas em regular processo legislativo. Bem por isso, é imprescindível reconhecer que ainda existem dificuldades no campo da aplicação da regra para coibir casos de homotransfobia que somente poderão ser, de fato, solucionadas, com a ação do Poder Legislativo.
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1 Dados disponíveis em: . Acesso em 5/6/23.
2 Recurso em Sentido Estrito 0012439-40.2022.8.26.0562
3 Página 113 do Relatório. Disponível em: < https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/08/relatorio-pesquisa-discriminacao-e-violencia-contra-lgbtqia.pdf>; Acesso em 5/6/23.