Curioso constatar como a sociedade brasileira atual deveras não sabe o que é a liberdade de expressão, desconhece sua dimensão jurídica enquanto direito humano fundamental e suas limitações. Talvez esse contemporâneo fruto podre do desconhecimento tenha ganho maior corpo no jardim bolsonarista, cultivado por seu jardineiro principal nos últimos 4 anos, a partir de seu robusto acervo de heresias e incoerências, como uma vez disse o Ministro Celso de Melo.
A legião de apedeutas foi – e vem – aumentando cada vez mais, acreditando que qualquer ideia ou posicionamento surgido na mente do ser humano é válido ser difundido e usado, não cabendo ao Estado qualquer imposição à limitação desse exercício.
O noticiário das últimas semanas nos brinda com exemplos bastante ilustrativos sobre o tema: “humorista” revoltado por não poder fazer “piada” com anões, pessoas LGBTQIA+, pessoas com deficiência e meninas estupradas; feminista, ré em ação penal por racismo contra pessoas transexuais, tem conta do Twitter suspensa; os xenófobos e racistas espanhóis que se acham no direito de atacar o jogador Vinícius Júnior; tudo isso sem falar no desespero das big techs, cujas plataformas são o principal palco do despejo de atrocidades, contra a aprovação de um marco legal de sua atividade.
Ora, fácil seria tudo tolerar. Atacar a população quilombola? Legal. E os indígenas? Também! As pessoas LGBTQIA+? Até tenho amigos que são, mas acho uma aberração. Estado Democrático de Direito? Só se for comandado pelo meu paraquedista e fechando o STF. Ah, não podemos deixar de fora os pretos, pobres e presos: escória da sociedade, que passem fome, frio e morram.
Tais colocações são estapafúrdias, eu sei. Você, cara leitora, caro leitor, também deve saber. Contudo, alguns outros diriam que isso não é bem assim, veja lá, afinal cada cidadão pode ter uma opinião polêmica, diferentona, não é verdade?!
Não, não pode.
Aliás, corrijo-me: ter a opinião diferentona até pode, mas tão logo ela saia da mente humana, seja pela boca ou pelos dedos que as digitam ou escrevem, é possível que estejam a violar direitos, configurando-se graves crimes e, então, seu perpetrador estar sujeito a sofrer as punições devidas, além de medidas coercitivas que inibam tais condutas.
Essa análise muito básica parecia bem sedimentada na nossa jovem democracia, nascida em 1988: tens o direito constitucional de dizerdes o que queres, desde que te responsabilizes pelo que dizes. Ocorre que a internet, principalmente as redes sociais a partir dos anos 2000, deram voz aos imbecis e eles também são sujeitos de tal direito: a muito em voga liberdade de expressão. Oportuno relembrar, inclusive, que a Constituição Federal veda o anonimato ao garantir a liberdade de expressão. Por quê? Ora, justamente para que o imbecil seja responsabilizado por suas asneiras. Como disse, interpretação elementar.
Eis que o básico se transforma no atual mistério da nossa fé constitucional: como podem punir o humorista só por ter feito “piada” com anões e cadeirantes?! Pior: estão a calar o artista, a cultura está ferida de morte! Gente, mas é humor, apenas uma caricatura reflexiva da sociedade. Humor tolera tudo!
Tolera? Acho que faltei na aula de Direito Penal que incluía o humor como excludente de ilicitude na legislação brasileira.
Compreendo e concordo que a tarefa de fazer distinção entre a difusão de uma ideia lícita e uma ilícita não seja fácil. Contudo, convenhamos: discriminação recreativa, incentivo à prática de delitos contra populações historicamente minorizadas, ou mesmo a chacota com elas, não são mero exercício da liberdade de expressão. São crimes. Se você não concorda, volte 4 parágrafos, releia e volte aqui. Se continuar discordando, repita.
Quem parece concordar com este autor é a Juíza de Direito Gina Fonseca Corrêa, do Foro Central Criminal de São Paulo, que decretou medidas cautelares contra o “humorista” conhecido por Léo Lins, em primorosa decisão nos autos de medida cautelar proposta pelo Ministério Público paulista, para coibir que o tal “humorista” continuasse propagando atrocidades em seus “shows de humor”, gravados e divulgados no YouTube.
O próprio Léo parecia ciente de que estava esticando a corda – ou a língua: o abjeto vídeo alvo da medida cautelar era intitulado “Pertubador (show pode ser excluído em breve)”. Pode ser excluído por qual motivo, Léo? Por ser verdadeira destilação de discriminação, ódio e desrespeito a seres humanos?
Sim, exatamente por isso.
Como bem registrado pela eminente magistrada, a sociedade brasileira escolheu incluir como objetivo da República a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, tudo disposto no art. 3º, da Constituição Federal. Isso significa que, a despeito de todos termos o direito de expressar nossas opiniões, ideias e pensamentos, eles não podem conflitar com esses objetivos precípuos do Estado brasileiro.
É dizer: nem toda opinião é respeitável. Atentar contra a dignidade de seres humanos, humilhá-los, praticar o racismo, a LGBTfobia ou qualquer forma de discriminação e monetizar a partir de “piadas” e “opiniões” virulentas de um indivíduo em detrimento do outro, não é aceitável em um Estado Democrático de Direito deveras inclusivo e que preza pelo respeito a todos.
Invocar o direito à liberdade de expressão para proteger tais “ideias” (ou “piadas”) é, não somente um trambique interpretativo descabido do texto constitucional, mas verdadeiro divórcio dos ideais republicanos que norteiam a sociedade brasileira – e toda sociedade minimamente decente e democrática.
Nos anos 90, a televisão brasileira tinha como programa dominical familiar apresentações de quadros em que adultos, em trajes de banho diminutos, caçavam um sabonete dentro de uma banheira d’água. Era o entretenimento tolerável por uma sociedade recém traumatizada pela censura dos anos de ditadura militar. E sim, ditadura, não “movimento” ou “revolução”.
Evoluiu-se o debate público e jurídico em torno do assunto, até compreender-se que impor limites a esse tipo de programação não era de todo desarrazoado, porém saudável e, inclusive, constitucional. Deve-se ter cautela no que se exibe a jovens e crianças, a quem o Estado deve proteger. Não se tratava, portanto, de censurar ou limitar o que poderia ser exibido em rede nacional, porém regulamentar exibições.
De igual maneira, advogar em prol de um limite à liberdade de expressão tampouco é censura ou controle estatal descabido. Não se trata de impor um limite ético ao pensamento, mas sim um limite constitucional como marco civilizatório e basilar para garantir a efetiva existência da pluralidade de vidas, ideias e pessoas. A possibilidade de (sobre)vivência da diversidade humana está intrinsecamente ladeada à proteção ao diferente, a todos aqueles que não se enquadram na retrógrada premissa do “menino veste azul e menina veste rosa”.
Banheira com sabonete na televisão pode ser vulgar, mas não instigava mortes ou a abolição violenta do estado democrático de direito.
Revestir o crime com a roupagem de “humor” ou “mera opinião” não torna o criminoso humorista. Tampouco feminista, ativista, político ou defensor de algum ideal que seja respeitável. O discriminador será sempre discriminador, intolerante e, como pensado por Karl Popper, a eles devemos aplicar o paradoxo da intolerância: não tolerar o intolerante.