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Reflexões sobre a atividade de factoring de títulos simulados à luz da teoria da cegueira deliberada

Embora a importação da teoria da cegueira deliberada envolva complicações conceituais quando confrontada com a imputação subjetiva brasileira sob o âmbito penal, deve ser legitimamente aproveitada para fins de responsabilização civil no tocante à operações de fomento mercantil envolvidas por negociação de títulos e direitos creditórios emitidos por fraude.

6/6/2023

Custos e despesas, passivo tributário, trabalhista e judicial: Vários são os desafios para manter a boa saúde financeira de uma empresa a fim de que tenha disponibilidade para honrar mensalmente suas obrigações.  

Quando o assunto é necessidade de disponibilidade imediata em caixa, os recebíveis “a prazo” no livro contábil de uma empresa se constituem pelo famoso brocardo “ganhar mas não levar”, já que, ao se ver frente a uma virada de exercício financeiro no limite do fechamento negativo, de pouca valia lhe servirão os direitos creditórios futuros, ainda que, formalmente, integrem o patrimônio líquido (e circulante, a depender do prazo).

Porém, ainda que se trate de títulos “a prazo”, possuem intrinsecamente, valor negocial para liquidez imediata. Neste contexto, é que a atividade de factoring (fomento mercantil) se apresenta como um poderoso instrumento à disposição da atividade empresarial.

Em breve conceito, se trata de atividade para aquisição (compra) de direitos creditórios em troca de um valor “à vista”, justamente das contas a receber “a prazo”. A natureza jurídica do negócio se dá pela “cessão onerosa de crédito”. Com isso, a empresa titular dos recebíveis (faturizada) vende a terceiros (faturizadores) a titularidade dos títulos em troca de liquidez imediata e antecipada, a preço menor, para fins de compor disponibilidade imediata de dinheiro em espécie no fluxo de caixa.

Embora prática vantajosa quando bem aplicada, não se pode deixar de notar os perigos e riscos a que se sujeitam os faturizadores quando da aquisição de direitos creditórios desprovidos do devido procedimento investigativo prévio para averiguação da qualididade dos créditos adquiridos, não necessariamente pela solvência dos devedores, mas pela prática fraudulenta a que estão sujeitos por faturizados emitentes de títulos de créditos desprovidos de lastro negocial que lhe dê suporte, à medida em que, além de fato típico criminal, apresenta potencialidade lesiva a toda cadeia econômica que age e se lastreiam embasadas aos títulos comercializados.

Sintôma da prática irradia pelo grande acervo juripsrudencial sobre o tema, que vem balizando e aprimorando os limites, direitos e responsabilidades afetas ao sacador de títulos sem causa subjacente, assim como de quem as adquire em cessão e daqueles que a levam efetivamente a protesto.

Diga-se isso, pois, a prática envolve aos faturizadores vantagens econômicas relevantes e, como tal, o risco da atividade lhes exigirá o ônus de responsabilidade sobre qualquer ato lesivo ao patrimônio e a imagem da vítima/sacado do título emitido sem o lastro subjacente.

Da prática em questão, não se pode desvincular seu alto potencial de lucro da responsabilidade social a que atrai para si, ao assumir o posto de credor para fins de efetivar publicamente atos de cobrança em face do sacado.

Por tais premissas, é que a jurisprudência vem decidindo pela atribuição, à faturizadora, do ônus de comprovar que, ao adquirir títulos fraudulentos por cessão de crédito, tomou as cautelas devidas e necessárias prévias para averiguação da higidez do título, como forma de se eximir da responsabilização solidária pelos danos causados ao sacado, vítima do ato ilícito.

Para ilustramos a afirmação, colhe-se exemplificadamente, precedentes do Tribunal de Justiça Paulista e Gaucho:

“Ausência de comprovação de existência de negócio jurídico a fundamentar a exigência da duplicata – Factoring que não demonstra nos autos que foram tomadas todas as providências necessárias no sentido de verificar a veracidade da cártula junto à apelada - Responsabilidade da empresa de factoring configurada - Protesto indevido de duplicata - Falha da apelante evidenciada – Indenização moral arbitrada em R$ 7.880,00 de forma adequada, observando os critérios da razoabilidade e da proporcionalidade – Sentença mantida - Recurso não provido.

(TJ-SP - APL: 00015592320138260491 SP 0001559-23.2013.8.26.0491, Relator: Achile Alesina, Data de Julgamento: 14/09/16, 38ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 16/09/16)”

“A responsabilidade da primeira apelante pelos danos causados à parte apelada decorre da emissão dos títulos sem qualquer lastro e pelo protesto indevido destes. A responsabilidade da segunda ré, empresa de factoring, reside no fato de que, tendo recebido os créditos por meio de cessão de crédito civil, cabia a ela certificar-se acerca da legitimidade destes, bem como da validade do negócio jurídico subjacente e, em assim não procedendo, assume os riscos inerentes à sua conduta. Responsabilidade solidária entre a empresa emitente dos títulos (cedente) e a compradora destes (cessionária) pelos danos suportados pela apelada diante do protesto indevido.

(TJ-RS - AC: 70071180160 RS, Relator: Pedro Luiz Pozza, Data de Julgamento: 24/11/16, Décima Segunda Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 28/11/16)”

Todavia, deixa a jurisprudência de elencar em aspectos objetivos, como se dará na prática a desincumbência deste ônus, afinal, se de fato houve diligência prévia sobre a higidez do título, a lógica conduz a concluir que a cautela foi hábil a ponto de identificar a inconsistência do título e, logo, encerrar qualquer tratativa em sua negociação. Caso contrário, a diligência foi falha. Se foi falha, há responsabilização ainda que demonstradas as diligências prévias?

Neste ponto, diversos atos praticados pela faturizadora podem indicar objetivamente uma prévia diligência satisfatória de análise de qualidade do título adquirido. A título de exemplo: (1) Implantação de programas permanentes de gestão de risco; (2) Instrumentos de governança corporativa preventiva; (3) Sistemas de análise histórico financeiro, judicial, reputacional e contábil do credor cedente.

Se negligencialmente deixados à míngua, forçoso concluir que a faturizadora não tomou, de fato, as medidas preventivas necessárias a sua não responsabilização conjunta por danos causados à vítima da fraude. De mesmo modo, não se pode reputar por válido o ato da factoring que comprova a prévia diligência devida sobre o título, mas que, à prática, se mostram insuficientes para esgotar o controle de qualidade do direito creditório.

Ademais, se ao ato prévio de diligência inconsistências no título são identificadas e, apesar dos fatos, a factoring assume o risco do negócio ao dar-lhe prosseguimento regular, esta age em tomada de consciência da potencial ilicitudade da prática, ignorando elementos que apontem fato simulda, a fim de celebrar as tratativas com o sacado, devendo ser solidariamente responsabilizada. Compreensão diversa pode implicar no esvaziamento da responsabilidade civil pelo risco inerente à atividade.

Ao partir da premissa de ato voluntário do faturizador de assumir o risco do negócio, apesar de indícios investigativos da duvidosa origem do título negociado, por natural indução, possível lhe associar à prática de cegueira deliberada como meio de imputação subjetiva para a responsabilização de quem lhe pratica.

Tal teoria encontrou vasto arremate de popularização nos juízos criminais do país, sobretudo após a citação emblemática do teorético no âmbito da Ação Penal n° 470-MG (caso mensalão) junto ao Supremo Tribunal Federal e operação Lava-Jato, à 13ª Vara Federal de Curitiba.

Diga-se “popularização”, pois não encontra amparo de legalidade expressa no ordenamento brasileiro ao patamar de constructo categórico normativo. A aplicação in concreto da teoria como fonte de responsabilização jurídica se dá pela importação do direito comparado do common law e, indiretamente, do sistema continental, a partir da adaptação gerida pelo direito espanhol.

A busca por um conceito seguro sobre o tema, faz-se necessário a partir de um breve apanhado evolutivo à luz da construção de precedentes anglo-saxônicos, sendo de origem visceralmente avessa ao sistema continental europeu, desaguando até o desenvolvimento do tema ao Model Penal Code norte-americano e trabalho de aprimoração da doutrina estrangeira, conforme profundamente aponta Spencer Toth Sidow (2019), em obra desenvolvedora do tema.

Eis os preceitos: (a) O sujeito deve ter a ciência da elevada probabilidade de existência de um elemento constitutivo de crime; (b) Toma medidas, de forma conciente, a evitar comprovar a existência dos elementos que tornam a conduta ilícita; (c) Não crê, subjetivamente, que inexistem tais elementos (LUCCHESI, 2017);

Embora diversas sejam as complicações de importação dos critérios como fator de imputação subjetiva no âmbito penal, ante o choque com o desenvolvimento e conceito do tipo doloso no Código Penal brasileiro, pode e deve ser explorado para fins de responsabilização civil, precipuamente como ato omissivo ilícito gerador de dano a terceiro.

Se deve o faturizador comprovar a tomada de diligências prévias para averiguação de higidez do título adquirido, conforme aduz a jurisprduência, deve então, se balizar por critérios objetivos para se alcançar tal demonstração, a fim de que seja de fácil aferição que,1 promoveu meios e sistemas eficázes e efetivos de investigação da procedência do título e,1 Havendo indicação de inconsistências quanto à qualididade do direito creditório, buscou apurar as indicações ou encerrar as negociação. Caso contrário, elementar constatar-se que, prosseguindo na aquisição de direitos sobre os títulos, lhe fez decisão deliberada de ignorância sobre os apontamentos de ausência de causa subjacente ao título negociado, assumindo o risco inerente ao negócio para prosseguir em sua celebração, como fator de omissão por deliberada ignorância, apta a constituir-se por ato omissivo danoso ao devedor originiário do direito de crédito negociado.

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1 LUCCHESI, Guilherme Brenner. A punição da culpa a título de dolo: o problema da chamada “Teoria da Cegueira Deliberada”. 2017, tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2017.

2 SYDOW, Spencer Toth. A teoria da cegueira deliberada. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019.

Matheus Fernando Da Silva
Bacharel em Direito pela PUC/PR e pós-graduando em Direito Processual Civil. Advogado integrante do escritório Fonsatti Advogados Associados.

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