A decisão do TSE sobre a inelegibilidade do ex-procurador Deltan Dallagnol tem sido chamada por muitos juristas de um “erro judicial”, mas que poderia ser corrigido pelo STF. Em linhas gerais, sustentam ter havido violação indevida de direito fundamental, interpretação extensiva e afronta expressa à Lei, por considerar procedimentos de natureza jurídica diversa de PAD como autorizadores da aplicação da inelegibilidade. Respeitosamente, divergimos, como passamos a demonstrar.
A propósito, numa cena digna de cinema, o ex-deputado e ex-procurador da República concedeu entrevista coletiva na Câmara dos Deputados, exaltando seus apoiadores a se levantarem contra o TSE depois da decisão que reconheceu sua inelegibilidade, ocasionando a perda de seu mandato parlamentar.
Alegou que o TSE “inventou” uma inelegibilidade para retirar seu mandato por uma suposta questão não prevista na Lei da Ficha Limpa. Bravateou, ainda, dizendo que respondia a 15 procedimentos disciplinares, para sutilmente arguir que não respondia a nenhum “PAD”, como determinaria a lei. Se disse perseguido, vítima de suposta vingança por ter sido uma espécie de herói que combateu os poderosos, afirmando que sua saída do Ministério Público Federal não teria gerado a inelegibilidade apontada.
Curioso é o fato de que a saída de Deltan do MPF é menos conturbada do que seu ingresso, que ocorreu ao arrepio da Lei Orgânica do MP, ensejando a impetração de mandado de segurança, pois não preenchia os requisitos da legislação. É que a norma exigia ao menos 2 anos de bacharel em direito (art. 187, Lei Complementar 75/93), antes da EC/45, que aumentou o prazo, mas Deltan conseguiu uma liminar que lhe deu tratamento especial, permitindo o ingresso de forma ilegal no 18º Concurso Público.
Defendido por seu genitor, um procurador de justiça aposentado, ajuizou o mandado de segurança 200270000103389, que inicialmente tramitou perante a 2ª Vara Federal de Curitiba, depois perante a 4ª Turma do TRF/4, e, posteriormente, em grau de recurso, no STJ através do Ag 658591/PR, rel. min. Nilson Naves, na 6ª Turma, e também no STF, AI 607279, rel. min. Ricardo Lewandowski, em decisão monocrática.
Assim como seu ingresso, sua saída do MPF também registou grave violação legal, reconhecida por meio do acórdão unânime do TSE, no Recurso Ordinário Eleitoral 0601407-70.2022.6.16.0000, em decisão densamente fundamentada (37 páginas) que identificou fraude à lei (fraus legis), “pela prática de conduta que, à primeira vista, consiste em regular exercício de direito amparado pelo ordenamento jurídico, mas que, na verdade, configura burla com o objetivo de atingir finalidade proibida pela norma jurídica”, ou seja, pediu exoneração do cargo para evitar a incidência da Lei da Ficha Limpa.
É exatamente neste ponto que sua cinematográfica entrevista coletiva se deteve, alegando que foi o TSE, e não ele, que fraudou a Lei da Ficha Limpa, encetando suposta vingança, numa atitude reprovável que constitui, infelizmente, mais um ataque às instituições, mesmo após os gravíssimos episódios do dia 8 de janeiro, e mesmo tendo o sistema recursal à sua disposição, preferiu incentivar uma espécie de desobediência civil contra um tribunal, agregando a isso a promoção de desinformação.
Também por este motivo, observamos que a discussão é importante e a decisão da Suprema Corte Eleitoral foi acertada, diferentemente do que disse Deltan Dallagnol, e muitos juristas. O presente texto tenta contribuir com o tema, de forma respeitosa, dividindo a manifestação em duas partes iniciais: (I) (in)elegibilidade pela (não)rejeição das contas; e, (II) (in)elegibilidade pela “fraude à lei” que considerou contextualmente apurações disciplinares como PAD, e outras complementares.
(I) (in)elegibilidade pela (não)rejeição das contas
O TSE não acolheu o pedido de inelegibilidade por causa da rejeição das contas de Deltan Dallagnol, realizada pelo Tribunal de Contas da União, por graves episódios financeiros da Lava Jato. Referida decisão foi suspensa por liminar da Justiça Federal, com argumentos jurídicos muito ruins.
Na verdade, a grande polêmica reside no caso da não inelegibilidade por causa da rejeição das contas de Deltan pelo TCU, em tomada de contas especial (TCE), suspensa por decisão que pouquíssimas pessoas questionaram. Cuida-se de decisão da 6ª Vara Federal de Curitiba, autos 5033048-90.2022.4.04.7000, que “salvou” Deltan com dois fundamentos curiosos, conforme consta da liminar, e não mencionados na entrevista:
“O periculum in mora reside nas seguintes constatações:
i) a urgência em julgar a TCE (uma urgência, aliás, mal justificada pelo relator), "irá inviabilizar o reconhecimento em tempo hábil, neste processo, dos vícios e impropriedades na citação, bem como obrigará o Autor a apresentar defesa sem elementos técnicos aptos a afastar o prejuízo imputado";
ii) “a ostensiva divulgação deste caso, com a indicação de que os Procuradores envolvidos teriam supostamente causado prejuízo ao erário, implica em grave e indevido desgaste à reputação profissional do Autor”
Sobre o argumento da urgência, o próprio Deltan menciona que a TCE foi autuada dois anos antes da liminar, em 31/07/2020, e com isso fica claro que o judiciário inaugura um curioso caso de liminar da ficha limpa com urgência aparente de posse velha da usucapião (mais de ano e dia)!
Pelo outro fundamento da liminar salvadora de Deltan, confessamos desconhecer que o judiciário já estava calibrando suas balanças tendo por critério a reputação de amigos em detrimento da Lei da Ficha Limpa (público x privado), mas nem sempre! Alguns aceitam que se prenda, ao menos por 581 dias, exatamente para manchar a imagem e a reputação! São imagens desconexas, parecidas com o “espelho da rainha má”, de que faz uso argumentativo a antropóloga Rita Segato, dialogando com Franz Fanon1.
Não vimos ninguém afirmar que a justiça federal do paraná “inventou” um fundamento de tutela de urgência para “salvar” Deltan Dallagnol da rejeição das contas e, por conseguinte, da inelegibilidade por ela causada. O respeito institucional se impõe!
(II) (in)elegibilidade pela “fraude à lei” que considerou contextualmente apurações disciplinares como PAD
Quanto a este outro fundamento, sobre os procedimentos disciplinares terem sido utilizadas pelo TSE como “fraude à lei”, e a crítica por não possuírem previsão legal, ou seja, não se adequarem ao que diz a Lei da Ficha Limpa, que menciona processo administrativo disciplinar, temos um caso de distinção que precisa ser feita.
Primeiramente, a própria decisão do TSE especifica do que se trata: “ao tempo do pedido de exoneração do cargo de procurador da República, em novembro de 2021, tramitavam contra o recorrido 15 procedimentos administrativos de natureza diversa no CNMP, sendo nove Reclamações Disciplinares, uma Sindicância, um Pedido de Providências, três Recursos Internos em Reclamações Disciplinares e, ainda, uma Revisão de Decisão Monocrática de Arquivamento em Reclamação Disciplinar”.
E não se esqueça que o direito vive de casos concretos, em que nenhum caso é igual ao outro, e se fosse qualquer outro procurador da República, sem maus antecedentes e sem elementos concretos que pudessem conduzir a interpretação simplista, até poderíamos quase concordar com a crítica, mas afastando-a, como faremos abaixo.
Estamos falando de um procurador da República que possuía expressamente maus antecedentes, com duas condenações anteriores em processos administrativos julgados, “nos quais o CNMP aplicou ao recorrido advertência e censura, por sua vez aptas a caracterizar maus antecedentes para fim de imposição de sanções mais gravosas em procedimentos posteriores (arts. 239 e 241 da LC 75/93)”, como dito pelo TSE.
Logo, não se trata de um procurador da República que estava respondendo a um simples procedimento de apuração prévia ao processo administrativo disciplinar, e que, “de repente”, pediu exoneração para se candidatar a cargo eletivo quando se viu atingido por uma inelegibilidade “surpresa”.
Antes, observamos que se trata de um então procurador da República que pediu exoneração porque existiam elementos concretos de que não apenas vários processos administrativos seriam instaurados, que muito prevalente resultariam em sanções mais graves pelo conjunto de 15 apurações, somadas aos 2 anteriores atos sancionadores disciplinares transitados em julgado (arts. 239 e 241 da LC 75/93).
Convém recordar o “paraíso dos conceitos jurídicos” de Jhering, quando ele descreve a cena em que os conceitos são vistos em sua forma “humana”, quando ele descreve o dolo, perguntando ao interlocutor se ele conseguiria identificar o conceito diante de si, obtendo a resposta: “— O rosto descarado de um deles o denuncia imediatamente: é o dolus. Pode-se ver a malícia que ele esconde em seu coração.” (Tradução livre)2.
Fora a espirituosa brincadeira de Jhering, também é importante observar sua crítica ao fetiche dos conceitos, pois deveria ser abandonada a pretensão de que os conceitos fossem uma espécie de matemática do direito, mesmo que aplicados de maneira absurda e contra a finalidade do próprio direito!
Neste sentido, o conceito de “processo administrativo disciplinar” deve se submeter à crítica de Jhering, notadamente no “contexto real” do caso concreto, inclusive quanto a questão da fuga da rigidez da lei para a não menos real rigidez dos conceitos.
A este propósito, a interpretação de Deltan Dallagnol defende que a inelegibilidade só ocorreria, in casu, se ele houvesse pedido a exoneração na pendência de processo administrativo disciplinar, conforme art. 1º, I, “q”, da Lei da Ficha Limpa, que menciona a inelegibilidade daqueles membros do MP: “que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar”, o que gera uma série de reflexões.
É de se refletir, de acordo com a LC 75/93, que a referida norma possui as figuras da sindicância (art. 246), do inquérito administrativo (art. 247) e do processo administrativo (art. 252); a primeira figura pode gerar, se necessário, um inquérito, e este poderá gerar, se necessário, um parecer conclusivo pela instauração de processo administrativo.
As penalidades previstas são de advertência, censura, suspensão, demissão e cassação de aposentadoria ou de disponibilidade, (art. 239), e as “infrações disciplinares serão apuradas em processo administrativo; quando lhes forem cominadas penas de demissão, de cassação de aposentadoria ou de disponibilidade, a imposição destas dependerá, também, de decisão judicial com trânsito em julgado” (art. 242).
Ou seja, sem menção expressa às figuras da sindicância e do inquérito no momento em que a Lei menciona possíveis sansões, presume-se que estas estão inseridas pelo legislador no próprio processo administrativo, lato sensu, pois não é possível extrair a conclusão de que as infrações serão apuradas em processo administrativo eliminando-se a anterior sindicância ou o inquérito do conceito, vale dizer, a Lei se refere a processo administrativo para também abranger sindicância e inquérito.
Não fosse assim, indagaríamos: qual é o exato momento em que será gerada a inelegibilidade? A sindicância pode recomendar diretamente a instauração do processo administrativo, sem passar pelo inquérito? Caso ocorra, no âmbito do inquérito administrativo, proposição de instauração de um processo administrativo, mas ainda não instaurado, poderá ocorrer a exoneração sem que ocorra a inelegibilidade?
Com efeito, já que a própria LC 75/93 abrange três figuras (sindicância, inquérito e processo administrativo stricto sensu) dentro de uma (processo administrativo lato sensu), e se o pedido de exoneração ocorrer neste contexto, é evidente também que a expressão “processo administrativo disciplinar”, prevista no art. 1º, I, “q”, da Lei da Ficha Limpa também se refere a processo administrativo lato sensu.
Vale dizer, no caso concreto, que um procurador da República que almeje se candidatar a cargo eletivo não poderá, de fato, pedir exoneração na pendência de “15 procedimentos administrativos de natureza diversa no CNMP, sendo nove Reclamações Disciplinares, uma Sindicância, um Pedido de Providências, três Recursos Internos em Reclamações Disciplinares e, ainda, uma Revisão de Decisão Monocrática de Arquivamento em Reclamação Disciplinar”.
É assim não apenas porque há presença de dolosa fuga da sanção disciplinar, mas principalmente porque quando o art. 1º, I, “q”, da Lei da Ficha Limpa menciona processo administrativo, o faz de maneira ampla, lato sensu.
Aliás, muitas pessoas tem feito uma comparação com o episódio da renuncia no caso Collor, durante o impeachment do ex-presidente, alegando que se a renúncia houvesse precedido o início da abertura de procedimento pela prática de crime de responsabilidade, não haveria lugar para a perda dos direitos políticos, mas inclusive isso mudou com a inclusão da alínea “k” através da LC 135/2010, que determinou a inelegibilidade daqueles que “renunciarem a seus mandatos desde o oferecimento de representação ou petição capaz de autorizar a abertura de processo”, ou seja, pela simples petição e pela mera hipótese de futuramente possibilitar uma condenação, que pode nem ocorrer, desvinculando a inelegibilidade da instauração do próprio procedimento.
Conforme observado recentemente pelo professor Lenio Streck3, há um princípio reitor para o caso: “no caso do direito administrativo disciplinar, o princípio que sustenta o sistema é: ninguém pode sair do serviço público e ficar 'devendo' questões disciplinares”, apontando o acerto do TSE na decisão sobre o caso Deltan.
De fato, há uma inescapável relação principiológica, desde Dworkin e o Direito concebido como integridade, conforme também apontado por Francisco Kliemann a Campis, lembrando o exemplo do herdeiro que matou o avô e ainda buscava receber a herança4. Exatamente como se percebe, Deltan ajudou a golpear gravemente a ordem jurídica e a democracia constitucional, e ainda buscava herdar benefícios que sua má ação causou. Tratava-se de uma candidatura “sub judice”, e o erro talvez tenha sido não esclarecer os eleitores suficientemente, como dito por Marcelo Abelha5, mas que não macula a decisão do TSE.
Recentemente o jurista Wálter Maierovitch6 também fez a observação de que muito embora Deltan Dallagnol não tenha desistido de exercer o papel de taumaturgo circense, talvez tenha chance de buscar uma “tábua de salvação” por meio de uma imaginária liminar judicial contra a decisão do TSE. Alegaria, in casu, que a decisão eleitoral teria violado a soberania popular do voto e também o princípio da legalidade, por meio de interpretação extensiva, temas também mencionados em recentes editoriais da Folha7 e do Estadão8.
Sugere-se que a decisão do TSE seria passível de questionamento por meio de uma ação judicial em que Deltan Dallagnol seria vítima, pois a Corte Eleitoral teria supostamente aviltado as consciências de Beccaria e de Feuerbach, pois violaria o princípio da legalidade esculpido na expressão “nulla poena nullum crimen sine lege”, alegando: “está expresso na nossa Constituição. Não existe crime sem lei e, também, pena sem previsão legal”. Neste cenário, o TSE supostamente teria utilizado uma proibida interpretação extensiva para prejudicar o ex-procurador (agora, também ex-deputado).
Ainda segundo Maierovitch, o TSE teria supostamente violado o devido processo legal administrativo quando assumiu o papel de julgador administrativo e, com isso, condenando Deltan Dallagnol por um PAD que ele nunca respondeu, ao considerar extensivamente as 15 reclamações disciplinares motivo suficiente para aplicar a inelegibilidade, fazendo o cadáver do “marquês de Beccaria revirar na sepultura”.
Na verdade, é preciso dizê-lo, nem o cadáver de Beccaria se revirou no túmulo, e nem é possível dizer que houve uma violação ao postulado da estrita legalidade, antes, o contrário, como temos demonstrado, agregando outros fundamentos.
Ao menos neste caso, seu cadáver permanece em repouso no Cimitero della Mojazza desde 28 de novembro de 1794. Em respeito a sua obra, observamos que se em algum momento seu cadáver tivesse estremecido teria sido nas diversas “trambicagens processuais”9 da Lava Jato de Dallagnol e Moro, como decidido pelo Supremo Tribunal Federal ao reconhecer a suspeição deste último. É até fora de propósito utilizar Cesare Beccaria para defender alguém que fez tudo ao contrário do que ele sempre representou, especialmente quando Deltan continua absolutamente impune.
Beccaria viveu uma vida plena de realizações, com inúmeras contribuições ao direito, que jamais podem ser esquecidas10. A palavra impunidade (impunità) aparece 22 vezes em sua magna obra, além de um capítulo próprio sobre o tema, que demanda reflexão sobre a impunidade e sobre a malícia de Deltan, para que se afaste qualquer alegação de ilegalidade, interpretação extensiva ou violação à soberania popular.
Em sua obra, Beccaria defendia que a prescrição fosse regulada pela gravidade dos crimes, aumentando o tempo do processo e diminuindo o tempo fixado para a prescrição, porque nos crimes mais leves “a impunidade é menos perigosa”. Sobre a intenção, que não poderia ser punida, menciona: “não é menos verdadeira que uma ação que seja o começo de um delito e que prova a vontade de cometê-lo, merece um castigo”.
Além disso, a conhecida fala sobre impunidade pela não aplicação da reprimenda, quando se deixa de punir um criminoso: “não será o caso de dizer que sacrifica a segurança pública à de um particular e que, por um ato de cega benevolência, pronuncia um decreto geral de impunidade?”. O que Deltan fez foi gravíssimo, e ele não pode gozar o benefício da própria torpeza (nemo auditur propriam turpitudinem allegans), pois existem provas da intenção de fraudar a lei.
É que ao tempo do julgamento do TSE Deltan praticou ao menos 18 atos passíveis de punição, com violação à norma, com duas condenações, 15 em andamento, e uma outra arquivada, mas com pedido de revisão, demonstrando não apenas intenção, mas a prática de vários atos passíveis de punição, que era exatamente ignorar toda a construção do iluminismo penal de Beccaria para chegar ao poder político, quando se elegeu deputado. No caminho, destruiu vidas e famílias.
Observemos que em 2020 Deltan Dallagnol foi beneficiado, após 42 (quarenta e dois) adiamentos de seu julgamento pelo CNMP, órgão que praticamente se recusou a julgar sua conduta pelo episódio do “PowerPoint — em setembro de 2016”, algo que demorou quase quatro anos para não ser julgado em virtude da prescrição da conduta mais grave de demissão, e o PAD que deixou de ser instaurado pela liminar concedida pelo STF através do ministro Luiz Fux no âmbito da medida cautelar na PET 8614, para determinar que: “o Conselho Nacional do Ministro Público se abst[ivesse] de considerar a penalidade aplicada no PAD/CNMP 1.00898/18-99 na análise das medidas a serem eventualmente impostas no PAD/CNMP 100982/2019-48 e no PAD/CNMP 1.00723/2019-53”.
Aqui é preciso deixar claro que, com essa liminar, o CNMP estava impedido de aplicar penas mais graves a Deltan Dallagnol na abertura de processo administrativo para demissão, arquivando procedimentos administrativos. E o ex-procurador sabia disso.
Contudo, também é importante registrar que em março de 2023, quase três anos depois, sob nova relatoria, a cautelar foi revogada e o Supremo Tribunal Federal julgou improcedente a referida pretensão de Deltan, para tornar “sem efeito a liminar anteriormente concedida nestes autos e declarando prejudicado o agravo interno”.
Na prática, e de maneira bem simples e direta, o CNMP demorou quase 4 anos para julgar Deltan Dallagnol por um dos vários episódios e, quando iria julgar, o ex-deputado obteve uma liminar que impedia a instauração de procedimento com aplicação da pena de demissão, fazendo com que o CNMP arquivasse o caso, e, alguns anos depois, essa liminar perdeu o efeito, comprovando que a demissão iria ocorrer. Não era mera hipótese. É muito simples, não tivesse pedido exoneração 5 meses antes da data necessária, e com esse cenário ocorrido, Deltan estaria inelegível, inclusive pela outra alínea da Lei, referente à demissão do serviço público.
Nesse meio termo, sobreveio a demissão de um dos colegas de Deltan, o ex-procurador Diogo Castor, também da Operação Lava Jato e do mesmo grupo da “República de Curitiba”, e aqui reside parte do elemento de fraude à lei, pois é nesse contexto de uma certa e inevitável demissão, e não apenas certa abertura de PAD, que sobrevém o pedido de exoneração para que pudesse fugir à aplicação da Lei, tornando absolutamente adequada a decisão do TSE de que a referida exoneração possuía péssimo cheiro de fraude (frau legis).
O direito, aliás, lida com temas relacionados à fraude com muita frequência, inclusive com a presença de institutos similares, como o abuso de direito, o abuso de forma, a simulação, a dissimulação, etc., em todas as áreas do direito, como nos casos de fraude contra credores, fraude em matéria tributária, fraude eleitoral, e nem nos consta que tais figuras signifiquem violação ao princípio da legalidade, antes o contrário.
Valendo-nos ainda de Beccaria, observamos que ele também falava sobre a fraude em um caso específico, mencionando ser necessário haver uma distinção entre a existência de dúvida ampla ou não, e que isso seria o fundamental. Se a fraude for muito duvidosa: “será melhor optar por sua inocência. Há uma máxima geralmente certa em legislação, segundo a qual a impunidade de um culpado tem graves inconvenientes; mas, a impunidade é pouco perigosa quando o delito é difícil de constatar-se.”
Por este motivo, admite-se reprimir a fraude, e isso não significa violar o princípio da legalidade, mas é preciso que não haja dúvida, se tomarmos em conta a linha argumentativa de Beccaria. Neste sentido, não é possível existir a menor dúvida quanto a presença da intenção maliciosa de Deltan Dallagnol, pois por fatos similares, e em período muito próximo, um de seus colegas foi demitido e, além disso, também pela quantidade de procedimentos administrativos e pela gravidade das condutas.
Também é visível que Deltan tem omitido em seus discursos, escondendo de seus apoiadores, que ele somente precisaria sair do MPF no dia 2/4/22, mas pediu exoneração em 3/11/21, renunciando a 5 meses de salários e prerrogativas, que se aliam a dois fatos, quais sejam, a proximidade da demissão de um colega seu, e, mais grave, apenas 5 dias antes de sua exoneração Deltan recebeu “um inquérito administrativo disciplinar, com aproximadamente 3 mil páginas, concluído e com acusação sumulada para a abertura de processo administrativo disciplinar”11.
Não fosse o bastante, citemos sua petição inicial na PET 8614, com 41 páginas, na qual o ex-procurador menciona, nas páginas 13 e 21, a prescrição também da pena de demissão, sendo um de seus argumentos para suspender judicialmente o procedimento administrativo que obteve inicialmente uma liminar, mas que posteriormente foi tornada sem efeito. Portanto, a inelegibilidade de Deltan honra toda a obra Beccaria, que ele próprio rasgou ao pavimentar seu tortuoso caminho ao poder. Diria o Conselheiro Acácio: as consequências vêm sempre depois! A expressão correta seria “nulla Lava Jatus, nullum Deltan contra legem”? Com a palavra: o Supremo Tribunal Federal! Correto o TSE!
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1 SEGATO, Rita; ÁLVAREZ, Paulina. Frente al espejo de la reina mala. Docencia, amistad y autorización como brechas de coloniales en la universidad. Versión. Estudios de Comunicación y Política, n. 37, 2016.
2 JHERING, R. Von. Scherz Und Ernst In Der Jurisprudenz. Viena: Linde, 2009.
3 Cfr. VITAL, Danilo. E o Moro? TSE não extrapolou interpretação sobre inelegibilidade ao cassar Deltan Dallagnol, 17/05/2023.
4 CAMPIS, F. K. Dworkin explica decisão que indeferiu registro da candidatura de Dallagnol, 20/05/2023.
5 ABELHA RODRIGUES, Marcelo. Caso Deltan: eleitor, liberdade de voto e candidatura sub judice, 21/05/2023.
6 Wálter Maierovitch, “Após cassação do mandato, Dallagnol sai em busca de tábua de salvação”, UOL, 18/05/2023.
7 A Folha menciona, em resumo, que um dos possíveis procedimentos disciplinares contra Deltan poderia até se transformar em processo administrativo disciplinar, mas num tipo de “metaverso”, mas no universo real não havia o “tipo de processo” exigido pela Lei (PAD), e que isso foi escolhido pelo legislador, impedindo o judiciário de ir adiante disso, sob pena de violar a separação de poderes, e termina comparando os supostos violadores da Lei, que aplaudem, como o próprio Deltan, para se arrependerem no futuro. Cfr. “TSE no metaverso”, editorial de 19/05/2023.
8 O Estadão menciona que a decisão do TSE foi controversa contra uma lei incontroversa, pois a norma supostamente exigiria a pendência de PAD quando do pedido de exoneração, mas no caso de Deltan havia “apenas” duas condenação transitadas em julgado e 15 procedimentos em andamento, mas não um “PAD”, e que assim como Deltan teria feito, junto com Moro, na Lava Jato, desvios e abusos, confundindo política com messianismo e justiça com vingança, o mesmo deveria servir de aviso para os aplausos à decisão do TSE sobre Deltan. Cfr. “Decisão esquisita em tempos estranhos”, editorial de 19/05/2023.
9 Nosso conceito de “trambicagem processual” advém da expressão “trambique”, que mescla a alegação do próprio jurista Wálter Maierovitch, ao alegar que Deltan Dallagnol seria um “taumaturgo circense”, na metáfora informal para designar que a Lava Jato de Deltan-Moro-e-Cia seriam um picadeiro que os alçou ao mundo da política, como um ilusionista que esconde um coelho na cartola, mas no caso o coelho era outro, assim como a cartola.
10 Nossas observações mencionam fragmentos contidos nos seguintes textos: Maestro, Marcello, Voltaire and Beccaria as Reformers of Criminal Law. New York, Columbia Univ. Press, 1942; Phillipson, Coleman, Three Criminal Law Reformers: Beccaria, Bentham, Romilly. London, J. M. Dent & Sons, 1923; Farrer, James A. Crimes and Punishments, including a new translation of Beccaria's "Dei Delitti e delle Pene, London, Chatto & Windus, 1880; Sipe, Richard V. Cesare Beccaria, Sipe, Richard V. Cesare Beccaria. Ind. Law J. v. 22, Iss. 1, 1946. Claro, também o texto clássico: Beccaria, Cesare. Dei Delitti e delle Pene. Edizione di referimento a cura di Renato Fabietti, Mursia, Milano, 1973.
11 Luiz Peccinin, Priscila Bartolomeu. O que Deltan esconde sobre sua cassação. UOL, 21/05/23.