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Cidade e criminalidade: as potencialidades da política urbana para a minimização do medo do crime

Com base na Escola de Chicago e em uma análise empírica, o artigo busca apresentar as potencialidades que a utilização adequada dos instrumentos da política urbana e a realização de intervenções nas cidades podem causar na redução da criminalidade e a diminuição do medo do crime.

1/6/2023

O homem é produto do meio, já dizia Jean-Jacques Rousseau. Defendendo que o “homem nasce bom, mas a civilização o corrompe”1, a par das discussões filosóficas e sociológicas que essa afirmação pode gerar, sob o ponto de vista da antropologia social Rousseau estava certo.

Ao assinalar que a civilização corrompe o homem, que em seu estado de natureza é essencialmente bom, consideramos que Rousseau quis exprimir a relação entre indivíduo e sociedade, demarcando a influência que a sociedade, enquanto coletividade e meio social, exerce sobre o homem em si considerado.

Obviada de um viés determinista, que pretende compreender o comportamento do homem à luz dos critérios puramente biológicos ou geográficos, dando realce ao meio social, a perspectiva de Rousseau abre caminho para estudar as implicações que a cultura promove no indivíduo.

Definida por Edward Burnett Tylor2 como “um conjunto completo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito, os costumes e as outras capacidades ou hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade”, aproximando a cultura da ideia de civilização, ante sua dimensão coletiva e abrangente do todo social, foi por essa razão que escolhemos citar Rousseau para introduzir a temática que será abordada neste artigo.

Centrado na Escola de Chicago, este artigo apresenta, ainda que sob a forma de ensaio, que vivendo em grande parte na Cidade (pois ainda subsiste a vida campesina), o homem é influenciado pelo ambiente urbano.

Impactando, a ordenação da Cidade, na criminalidade3, se o homem é produto do meio e se a noção de Cidade converge com o conceito de civilização, caracterizando-se como um local de permanentes trocas, especialmente sob o ponto de vista cultural, o impacto desse ambiente é de grande importância para a compreensão do fenômeno criminológico.

Relevante dentro de uma perspectiva empírica, a Cidade deve ser foco de estudo do criminólogo que, apesar de carecer, no Brasil, de emancipação científica, assume importância frente a uma sociedade heterogênea e plural.

Tendo condições de influenciar a adoção de comportamentos socialmente desviantes, a importância da Cidade no panorama criminológico tem início com os estudos desenvolvidos, a partir de 1890, na Universidade de Chicago.

Gestados num período em que os Estados Unidos da América eram marcados pelo grande êxodo rural e pelo aumento do número de imigrantes advindos da Europa, deparando-se com a explosão demográfica vivenciada por diversas cidades norte-americanas, com destaque para a cidade de Chicago, ante o aumento da criminalidade e o surgimento de novas modalidades de delitos, que inexistiam no ambiente rural, os criminólogos que até então estavam afeiçoados com a Escola Clássica de Cesare Lombroso e Enrico Ferri, viram-se na contingência de desenvolver uma análise mais pragmática e empírica.

Fundando um novo movimento criminológico, denominado Escola de Chicago, e tendo como principais expoentes Clifford Shaw, Ernest Burguess, Donald Pierson e Robert Ezra Park, utilizando-se da cidade de Chicago como um grande laboratório a céu aberto, essa nova vertente, pautada em estudos sociológicos, demonstrou como o meio urbano contribui com o fenômeno criminológico e o objeto de seu estudo, a criminalidade.

Representada por diversas teorias, para efeitos deste estudo a que merece destaque é a desenvolvida por Robert Ezra Park.

Intitulada teoria ecológica, a abordagem de Park combina, na análise da Cidade, o enfoque geográfico com o enfoque ecológico e a sua relação com o fenômeno criminológico.

Apesar de não ser o primeiro autor a escrever sobre o tema, visto que a abordagem ecológica fora utilizada por pesquisadores pertencentes à Escola Cartográfica, a exemplo de Quetelet e Guerry, Park se situou à frente de seu tempo, pois, além de explicar, sob a perspectiva da Cidade, os problemas sociais originados da mentalidade citadina, implementou ações concretas, v.g. o Chicago Area Project4, que a despeito de ter sido instituído em 1934 está em funcionamento até hoje.

Compreendendo, segundo Davi de Paiva Costa Tangerino5, que o comportamento humano é modelado pelas “condições sociais presentes nos meios físico e social e que essas condições limitam o poder de escolha do indivíduo, impondo-lhe certo conformismo, fazendo com que ele aja de acordo com as normas e valores do grupo”, os estudos de Robert Ezra Park revelam que a Cidade não é apenas um fenômeno geográfico, mas também integrante da ecologia humana, onde se estabelece uma interrelação simbiótica. 

Propondo uma nova forma de analisar e compreender a Cidade, que abarca não somente uma organização moral e física, como também cultural, que interagem e se implicam mutuamente para modificar umas as outras, com enfoque na desorganização social gerada pelo crescimento desestruturado, das cidades, Park6 explica que:

O planejamento da cidade estabelece, por exemplo, metas e limites, fixa, de modo geral, a localização e o caráter das construções e impõe, em sua área, um arranjo ordenado dos prédios que são erguidos tanto pela iniciativa privada quanto pelas autoridades públicas. Dentro das limitações prescritas, os processos inevitáveis da natureza humana continuam, no entanto, a dar a essas regiões e a essas construções um caráter mais difícil de ser controlado. (PARK, 2018, p. 40-41).

Enfatizada a importância do planejamento da Cidade como mecanismo de controle formal para a diminuição da criminalidade, exigindo uma atuação mais proativa do Poder Público, a teoria ecológica de Park fez adeptos, isso porque, não são poucos os exemplos existentes entorno do mundo e que demonstram a ordenação da Cidade como instrumento de combate à criminalidade.

Surgindo, inclusive, uma denominação específica para isso, qual seja, Design Against Crime, se para Marcos Antonio Amaro7, a arquitetura contra o crime compreende um “conjunto de ações e medidas com o objetivo de diminuir a probabilidade de ocorrência e delitos e aumentar a sensação de segurança através de intervenções no desenho urbano”, bem se vê a importância da utilização adequada dos instrumentos da política urbana para a redução da criminalidade e do medo do crime, gerador do senso de insegurança social.

Repercutindo mundo à fora, no ensejo de combater a criminalidade, a insegurança e o comportamento antissocial no ambiente urbano, na década de 1970 é formulada, nos Estados Unidos da América, a Prevenção da Criminalidade através da Concepção Ambiental (CPTED8).

Objetivando eliminar o crime do ambiente urbano e estabelecendo princípios e práticas para a obtenção da segurança nas cidades, a contar da teoria ecológica a cidade passa a ser o foco da prevenção do crime.

Aplicando técnicas de vigilância natural, controle do acesso, dentre outros, com base na formulação CPTED diversos países do continente europeu obtiveram resultados positivos ao implementarem medidas de Design Against Crime.

De acordo com Caroline L. Davey e Andrew B. Wootton, em 1989, a Association of Chief Police Officers (ACPO) do Reino Unido criou um sistema de acreditação para a prevenção da criminalidade denominado Secured by Design. Promovendo os princípios CPTED e a utilização de produtos de construção que cumprem as normas de segurança, segundo tais autores, as propriedades construídas de acordo com a norma Secured by Design registraram níveis mais baixos de criminalidade e os seus residentes registraram níveis mais baixos de medo do crime9.

Citando também outros exemplos exitosos de arquitetura contra o crime, como o sistema de acreditação, nos Países Baixos, denominado Politiekeurmerk Veilig Wonen, a Parceria de Segurança no Desenvolvimento Urbano na Baixa Saxónia e o projeto de renovação de áreas residenciais em Szczecin (Polônia), Caroline L. Davey e Andrew B. Wootton demonstram como o Design Against Crime tem melhorado a segurança e a proteção dos citadinos no ambiente urbano.

Focando não no objetivo final, mas na função transformadora do design para resolver a questão da criminalidade nas cidades, possibilitando transformações efetivas nos problemas identificados em certos bairros, ainda que de forma mais tímida, é possível inferir a previsão de mecanismos de Design Against Crime no ordenamento jurídico pátrio, mediante a utilização dos instrumentos disponibilizados pelo direito positivo.

Ao dispor que aos Municípios compete promover, no que couber, o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (art. 30, VIII), incumbindo-lhes de executarem a política urbana, de que tratam os arts. 182 e 183, a Constituição da República proveu os Municípios de condições de realizarem o adequado ordenamento das cidades, especialmente depois do advento da Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, conhecida como Estatuto da Cidade.

Estabelecendo normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental, ainda que a redução da criminalidade não conste, expressamente, das diretrizes gerais da política urbana e que o principal instrumento do planejamento municipal (plano diretor), seja obrigatório apenas para Municípios com mais de 20.000 (vinte mil) habitantes10, o que deixa de fora 67,7% dos Municípios brasileiros11, seja com base na própria instituição facultativa do plano diretor, seja com base na capacidade que os Municípios detêm de editarem posturas para o exercício do direito de construir (art. 1.299 do Código Civil), de disciplinarem o parcelamento do solo urbano (Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979) e de instituírem mecanismos de gestão democrática das cidades, com base em audiências públicas de natureza participativa, os Municípios, enquanto unidades federadas representativas da Cidade, tem papel marcante na redução da criminalidade e no medo do crime, podendo implementar meios de ordenação da cidade para aumentar a vigilância, dificultar a fuga, desestimular o instinto delitivo e o que é melhor, por estar mais próximo do cidadão, adaptar esses modelos, levando em consideração as vicissitudes locais e as individualidades dos bairros enquanto conjuntos morfológicos.

Por intermédio do estabelecimento de leis que regulamentam o sistema viário, os Municípios podem estabelecer diretrizes viárias que permitam uma maior integração entre os bairros. Através de leis de zoneamento, uso e parcelamento do solo urbano, os Municípios podem não somente baixar posturas edilícias eliminando barreiras físicas e visuais, a exemplo de muros e outros fatores de exclusão que praticamente transformam o ambiente urbano em feudos, como definir o traçado urbano, permitindo que bairros sejam ovalados, aumentando a vigilância natural, dentre tantas outras medidas aqui citadas apenas a título exemplificativo.

Dispondo, os Municípios, no processo de ordenação das cidades de recursos dos mais diversificados, a importância do planejamento da Cidade na transformação do meio foi sentida recentemente quando, buscando se contrapor a algumas práticas causadoras de exclusão social, o Congresso Nacional aprovou a lei 14.489, de 21 de dezembro de 2022 que, alterando o Estatuto da Cidade, veda o emprego de materiais, estruturas, equipamentos e técnicas construtivas hostis que tenham como objetivo ou resultado o afastamento de pessoas em situação de rua, idosos, jovens e outros segmentos da população.

Revelando a compreensão do impacto da Cidade como agente transformador do homem, visto constituir o seu meio, ainda que não se tenha a positivação do Design Against Crime, visto depender de lege ferenda, de lege lata os instrumentos da política urbana introduzidos, dentre outros, pelo Estatuto da Cidade podem validamente ser utilizados para esse fim.

Pequenas intervenções nas cidades, como a implementação de alterações em posturas municipais destinadas a incorporação de conceitos e princípios oriundos da arquitetura contra o crime, produziram resultados satisfatórios na redução da criminalidade, pois modificaram eficazmente o meio em que o homem vive, permitindo que não se corrompa. Assim, espera-se que os Municípios saibam explorar todas as possibilidades que lhe são conferidas pela execução da política urbana, prestando seu contributo para a redução da criminalidade, desenvolvendo, à la carte, princípios e práticas de Design Against Crime.

_____________

1 ROUSSEAU, Jean Jacques. Os devaneios do caminhante solitário. Brasília: Editora Universidade de Brasília – Hucitec, 1986.

2 TYLOR, Edward Burnett. La civilization primitive. 2 v. Paris: Reinwald, 1871.

3 Exemplo disso é o Mapa da Criminalidade elaborado pela Secretaria de Estado da Segurança Pública de São Paulo, onde se constata que há um maior número de homicídios em bairros mais marginalizados situados na Zona Sul da cidade de São Paulo, enquanto os bairros mais nobres têm maior incidência de crimes contra o patrimônio, especialmente furto.

4 CHICAGO AREA PROJECT. Página inicial. Disponível em: https://www.chicagoareaproject.org/home. Acesso em: 21 maio 2023.

5 TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Crime e cidade: violência urbana e a escola de Chicago. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2007

6 PARK, Robert Ezra. A sociologia urbana de Robert E. Park. Organização e Introdução de Lícia do Prado Valladares. Tradução de Wanda Brant. Rio de Janeiro: Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2018, p. 40-41.

7 AMARO, Marcos Antonio. Arquitetura contra o crime: PCAAA – prevenção do crime através da arquitetura ambiental. Rio de Janeiro: Marcos Antonio Amaro, 2005, p. 1007

8 Do inglês Crime Prevention Through Environmental Design.

DAVEY, Caroline L.; WOOTON, Andrew B. Design Against Crime - A Human-Centred Approach to Designing for Safety and Security. Abingdon: Routledge, 2017, p. 104-105.

10 Conforme o art. 41, I do Estatuto da Cidade.

11 Segundo último censo realizado pelo IBGE, disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/31461-ibge-divulga-estimativa-da-populacao-dos-municipios-para-2021. Acesso em: 21 maio 2023.

César A. Carra
Advogado, titular do escritório Carra Sociedade Individual de Advocacia. Ex-Procurador Legislativo. Ex-Procurador do Município. MBA em Direito Empresarial pela FGV Direito/SP. Mestre em Sistema Constitucional de Garantias pela Instituição Toledo de Ensino, Bauru/SP. Pós-graduando em Ciências Criminais pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, USP.

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