É inegável que as fraudes contra operadoras de planos de saúde têm crescido nos últimos tempos. O ilegal e infelizmente corriqueiro fracionamento de recibos vem se somando a práticas cada vez mais aprimoradas e articuladas, com o exclusivo intuito de obter vantagem indevida em desfavor das operadoras e, consequentemente, prejudicando a sustentabilidade do setor, como:
(i) Reembolso sem desembolso: Conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), “o direito ao reembolso depende, por pressuposto lógico, que o beneficiário do plano de saúde tenha, efetivamente, desembolsado previamente os valores com a assistência à saúde, sendo imprescindível, ainda, o preenchimento dos demais requisitos legais previstos na Lei dos Planos de Saúde. Só a partir daí é que haverá a aquisição do direito pelo segurado ao reembolso das despesas médicas realizadas”1. Cada vez mais segurados utilizam-se dessa prática. De posse de notas fiscais e/ou recibos, em regra emitidos por prestadores de serviços depois do atendimento, sem que tenham desembolsado qualquer valor, exigem da operadora o pagamento da despesas para posterior repasse ao terceiro.
(ii) Reembolso assistido: É oferecido ao segurado em troca da cessão de seus dados pessoais como o login e senha de acesso ao portal do cliente na operadora de plano de saúde. A prática em questão foi perfeitamente delineada pela FenaSaúde na campanha Saúde Sem Fraude2: “O beneficiário recebe como promessa a facilitação do processo de pedido de reembolso. Entretanto, com posse desses dados, terceiros podem ter acesso a informações pessoais e utilizá-las de forma inadequada, além de alterar os valores de pedidos de reembolso e até solicitar o reembolso de exames e procedimentos não realizados. Muitas vezes os beneficiários assinam instrumento particular com o prestador de serviços para repassar o valor recebido pelo plano de saúde sem que tenha havido qualquer desembolso prévio”. Sobre este ponto, o STJ se manifestou no sentido de que “se o usuário do plano não despendeu nenhum valor a título de despesas, médicas, mostra-se incabível a transferência do direito ao reembolso, visto que, na realidade, esse direito sequer existia”.
(iii) Falsos procedimentos: A solicitação de reembolso é apresentada com documentos que não guardam relação com os procedimentos que foram realizados, com o evidente intuito de mascarar e induzir a operadora a erro para o processamento e ressarcimento das despesas que não possuem cobertura prevista no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e contrato, ou com o incremento de procedimentos, exames e consultas que não foram realizados.
Diariamente as operadoras de planos de saúde recebem milhares de pedidos de reembolso em que há a inequívoca comprovação de que o segurado, hospitais, clínicas e laboratórios praticam alguma das condutas fraudulentas acima mencionadas.
É imprescindível esclarecer que as reservas destinadas ao sustento do mercado de saúde suplementar se pautam no princípio do mutualismo. Por conseguinte, em razão da mutualidade, a operadora figura como verdadeira gestora de recursos alheios, o que torna imprescindível que o prêmio seja fixado – e quando necessário, reajustado – em valor suficiente a garantir que as empresas atuantes no setor tenham capacidade econômico-financeira para arcar com as prestações indenizatórias devidas aos seus clientes. De forma simples, isso quer dizer que as fraudes praticadas impactarão diretamente no reajuste dos prêmios dos segurados, em observância ao equilíbrio contratual. Logo, tanto aquele segurado que utiliza corretamente o seu plano de saúde quanto aquele que pratica a fraude ou é cúmplice desta, ao final, pagarão a conta.
Esse cenário pode desencadear uma série de problemas a curto e médio prazo como: (i) a exclusão de milhares ou milhões de brasileiros usuários do mercado de saúde suplementar (que hoje conta com mais de 50 milhões em planos médico-hospitalares) e a inviabilização de acesso de novos usuários, o que certamente criará uma maior demanda por serviços e procedimentos de saúde no sistema público de saúde, que embora essencial, já apresenta inúmeros problemas, dentre eles, as filas nos hospitais e postos de saúde, além da demora entre o agendamento e a realização de exames e consultas; (ii) o encolhimento do mercado de planos de saúde, seja por falência de operadoras, seja pela possível queda na qualidade e na oferta dos serviços prestados, que afetaria toda a extensa cadeia produtiva do setor; e (iii) possível seleção adversa, em que apenas segurados de alto risco e com elevador poder aquisitivo conseguirão arcar com as mensalidades exigidas.
Em virtude disso, é possível afirmar que o crescimento da fraude têm ligação direta com o gigantesco prejuízo operacional acumulado pelo mercado de saúde suplementar que, segundo dados da ANS, foi de R$11,5 bilhões em 12 meses.
Com o objetivo de garantir a sustentabilidade do setor e cessar as práticas ilegais de segurados, clínicas, hospitais e laboratórios, as operadoras de planos de saúde vêm adotando inúmeras medidas extrajudiciais (notícias-crime) e judiciais. A necessária e dura ofensiva no combate à fraude têm obtido o reiterado respaldo judicial.
Em brilhante decisão, após asseverar que “há fortes indícios de que fazem parte do mesmo grupo econômico agem em conluio, praticando diversos ilícitos, inclusive criminais (conforme inquérito policial em andamento), a começar pela captação de clientela, com propaganda abusiva e enganosa, utilizando-se indevidamente e sem autorização dos nomes de empresas de saúde, fazendo venda casada, etc., induzindo em erro o consumidor, ao lhe prometer tratamento sem custo e ao lhe dar recibos falsos, onde não houve o efetivo desembolso, para depois se voltar contra o plano de saúde autor que, ao recusar o pagamento, tem contra si protocolizadas pelas rés, de forma artificiosa e fraudulenta, em nome dos "consumidores lesados", reclamações na Agência Nacional de Saúde, gerando Notificações de Intermediação Preliminar NIP, o que poderá ensejar consequências catastróficas para a autora, tais como uma intervenção fiscalizatória pela ANS, e, no futuro Monitoramento Assistencial a ser divulgado, a suspensão de comercialização de seus seguros, sem contar o prejuízo irreversível para sua imagem perante o mercado consumidor”, o juízo da 26ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo/SP proferiu decisão no seguinte sentido: “DEFIRO a tutela antecipada inibitória (obrigação de não fazer), tal qual pleiteada, para, sob pena de multa cominatória diária de R$ 100.000,00: (i) determinar que os réus se abstenham de solicitar o login e senha dos pacientes das autoras e realizar o pedido de reembolso em nome destes; (ii) autorizar as autoras a promover a negativa de reembolso quando constatada qualquer das irregularidades noticiadas; (iii) determinar a suspensão de pontuação em sede de NIP relacionada aos reembolsos já apresentados e outros que venham a ser apresentados por procedimentos e/ou eventos realizados em tais circunstâncias, com a exclusão do Monitoramento da Garantia de Atendimento...”.3
No mesmo sentido, depois de analisar os fatos narrados pelas autoras da ação e identificar que a probabilidade do direito está evidenciadas pelos documentos eu instruíram os autos, a magistrada da 37ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo/SP também deferiu a tutela para o fim de: “1) determinar que as rés Premium Body – Performance And Health Clinic Ltda. e Centro de Diagnósticos Alto de Santana Ltda. abstenham-se de solicitar o login e senha dos pacientes da autora, bem como de realizar o pedido de reembolso em nome daqueles, sob pena de pagamento de multa no valor de R$ 2.000,00 (dois mil reais) por ato de descumprimento; 2) autorizar que a autora negue os reembolsos cujos pedidos vieram desacompanhados do comprovante de pagamento das despesas pelos beneficiários, e 3) determinar que a pontuação em sede de Notificação de Intermediação Preliminar (NIP) seja suspensa em relação aos reembolsos negados com base na ausência de comprovante de pagamento das despesas pelos beneficiários às clínicas Premium Body – Performance And Health Clinic Ltda. e Centro de Diagnósticos Alto de Santana Ltda, com a exclusão do Monitoramento da Garantia de Atendimento”.4
A magistrada da 4ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo/SP, ao analisar os autos do processo 1054494-80.2023.8.26.01005, após entender que os réus praticam ilícitos por meio de “solicitação de exames sem qualquer relação com o quadro clínico, o que se revela abusivo e contrário à ética médica; apropriação de login e senha dos beneficiários das autoras para que, em nome destes, os réus solicitem os reembolsos pelo preço máximo da tabela contratual; deixam de exigir o prévio pagamento, com a promessa de que os beneficiários/consumidores não terão qualquer custo com o tratamento”, também deferiu a tutela de urgência para ”(i) determinar que os réus abstenham-se de solicitar o login e senha dos pacientes das autoras ou realizem o pedido de reembolso em nome destes, sob pena de multa de R$ 50.000,00 por cada descumprimento; (ii) autorizar as autoras a promoverem, a partir da presente data, a negativa de reembolso de despesas apresentadas desde que constatada qualquer das irregularidades noticiadas, fundamentando a decisão de negativa de forma específica; (iii) determinar a suspensão de pontuação em sede de NIP relacionada aos reembolsos já apresentados e outros que venham a ser apresentados por procedimentos e/ou eventos realizados relacionados aos fatos narrados, com a exclusão do Monitoramento da Garantia de Atendimento”.
Igualmente importante, em ação ajuizada contra a sócia-proprietária de dois laboratórios que foram baixados depois de comprovada a fraude milionária pela operadora, consubstanciada na emissão de relatórios e laudos médicos não confirmados pelos emitentes, objeto de boletins de ocorrência pelos profissionais, que instruiam os pedidos de reembolso de segurados, o magistrado da 1ª Vara Cível de Itapetininga/SP deferiu a tutela de urgência cautelar para proceder ao arresto de valores em contas correntes da ré até o limite de R$2.582.739,66.6
Por fim, sob o fundamento de que os documentos apresentados pelas operadoras de planos de saúde indicam que os réus vêm solicitando reembolso em nome dos pacientes, em desvio de finalidade, após acolher embargos declaratórios da operadora apresentados contra decisão que postergava a apreciação do pedido de tutela para depois do contraditório, ao verificar a gravidade da situação, a magistrada da 3ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo/SP deferiu, em parte, a tutela antecipada para “determinar que os réus se abstenham de solicitar o login e senha dos pacientes das autoras e realizar o pedido de reembolso em nome destes, sob pena de multa que fixo em R$ 50.000,00 por evento devidamente comprovado, bem como autorizar as autoras a promover a negativa de reembolso quando constatadas as irregularidades noticiadas, especialmente pedido de reembolso sem comprovação de pagamento, bem como de exames e procedimentos sem indicação médica7”. Após, em sede de novos embargos declaratórios, determinou a "suspensão da pontuação em sede de NIP relacionada aos reembolsos já apresentados e outros que venham a ser apresentados por procedimentos e/ou eventos realizados nas condições indicadas na inicial, em relação a tratamentos realizados perante os réus".8
Os casos concretos apreciados pelo Judiciário Paulista comprovam não apenas a ilegalidade no reembolso sem desembolso, ancorada do entendimento do STJ, mas a indevida solicitação de login e senha de segurados para realizar o pedido de reembolso em nome destes; a apresentação de comprovantes de pagamentos falsos ou adulterados; a propaganda abusiva e enganosa, com o fulcro de induzir o consumidor a erro, com promessa de tratamento sem custo; utilização de recibos falsos; mascaramento estético; o “adiantamento” de despesas ao segurado por supostas instituições financeiras parceiras dos prestadores de serviços não referenciados – que não possuem registro no Banco Central; e a abertura de Notificação de Intermediação Preliminar (NIP) na ANS para coagir que as operadoras realizem o pagamento dos reembolsos fraudulentos, sob pena de sofrerem as indevidas penalidades do órgão regulador. A propósito, no que diz respeito às NIPs, o entendimento é uníssono de que todas as reclamações abertas contra as operadoras foram ilegais e, por isso, devem ser suspensas pela ANS e retiradas do Monitoramento de Garantia, que é o acompanhamento do acesso dos beneficiários às coberturas contratadas, realizado com base nas reclamações recebidas pelo órgão regulador e na quantidade de beneficiários de planos de saúde.
Portanto, quando há fraude, todo o sistema de saúde é impactado, especialmente os segurados. A manutenção do equilíbrio da saúde suplementar e o controle dos reajustes demanda especialmente uma postura consciente do usuário, que deve prezar pelos seus diretos, o que não exime os prestadores de serviços, mas também conhecer os seus deveres perante a operadora e a mutualidade, estar atento e desconfiar de falsas promessas de tratamentos sem custos e proteger os seus dados de acesso aos sistemas e App da operadora, que são pessoais e intransferíveis. As operadoras de planos de saúde seguem atentas e vigilantes às práticas deletérias, que seguirão sendo coibidas e combatidas incessantemente, seja perante órgãos de classe, pela via criminal ou judicial.
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1 STJ, Terceira Turma, REsp. 1.959.929 – SP, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 22/11/22.
2 https://saudesemfraude.com.br/wp-content/uploads/2023/03/FENA_CARTILHA_REEMBOLSO_14-03.pdf
3 Processo 1040914-80.2023.8.26.0100 (segredo de justiça). Sul América Companhia de Seguro Saúde e outras x B.C.S.M e outros. 26ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo/SP. Decisão em 4/4/23.
4 Processo 1050449-33.2023.8.26.0100. Sul América Companhia de Seguro Saúde e outras x Premium Body – Performance And Health Clinic Ltda e outros. 37ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo. Decisão em 3/5/23.
5 Processo 1054494-80.2023.8.26.0100. Sul América Companhia de Seguro Saúde e outras x Núcleo de Reabilitação Neurológico e Fisiátrico e outros. 4ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo/SP. Decisão em 8/5/23.
6 Processo 1003034-32.2023.8.26.0269. Sul América Companhia de Seguro Saúde x Jeniffer de Oliveira Drawanz. 1ª Vara Cível de Itapetininga/SP. Decisão em 5/4/23.
7 Processo 1011743-78.2023.8.26.0003 (segredo de justiça). Sul América Companhia de Seguro Saúde e outras x H.E.S e outro. 3ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo/SP. Decisão em 18/5/23.
8 Idem. Decisão em 24/5/23.