Dando continuidade à série de artigos inaugurada na última semana1, desta vez debateremos o início das investigações, com especial enfoque na atuação do então presidente do Vila Nova/GO (o Policial Militar Hugo Jorge Bravo) que, conforme já relatado no artigo anterior, levou ao conhecimento das autoridades a situação de um jogador do clube (Romário). O atleta, por sua vez, teria aceita-do uma oferta de R$150.000,00 para cometer um pênalti em partida contra o Sport/PE, em partida válida pela última rodada da Série B do Campeonato Brasileiro de 20222.
Cientes de que foram esses indícios os responsáveis pelo pontapé inicial da Operação Penalidade Máxima, e que foram angariados pela atuação de um particular e não da autoridade policial ou do MPGO, é inegável a relevância que o tema tem. Com isso, a avaliação da legalidade desses atos iniciais é de suma importância, na medida em que o reconhecimento de eventual nulidade pode contaminar todas as provas que daí derivaram.
Apesar de pública a Ação Penal relativa à segunda fase da Operação, não houve a divulgação ampla dos procedimentos investigativos (que ainda estão com diligências em curso). Assim, o presente artigo se valerá do que foi divulgado pela mídia, em especial as entrevistas concedidas pelo presidente do Vila Nova/GO, onde foi relatado como se desenrolou a sua atuação naquele momento pré-processual.
Nesse sentido, a questão foi bem resumida em entrevista concedida ao programa Sports Center, da ESPN, onde Hugo relatou que “a gente descobriu isso porque nós tínhamos um grupo de atletas muito sérios. E a partir do momento em que esses atletas não cederam à tentativa de um atleta, que não era relaci-onado e tentou cooptar um outro atleta que estava jogando para cometer um pênalti no primeiro tempo da última partida do Campeonato Brasileiro da Série B, partida entre o Vila Nova e o Sport. Como não aconteceu esta prática, caiu por terra todo um combinado. À medida em que caiu por terra esse combinado, alguém foi prejudicado, houve prejuízo para o pessoal que apostou. E a partir daí eles começaram a ameaçar este atleta. Então, dois ou três dias depois do jogo, eu tive a informação que esse atleta estava sendo ameaçado pelos criminosos. Busquei informações sobre de onde vinham essas ameaças e quem estava praticando, e daí a gente começou a estabelecer uma conversa com essa pessoa, e dessa conversa fomos retirando provas que posteriormente foram entregues ao Ministério Público de Goiás"3.
Este trecho da entrevista já ressalta a primeira questão que deve ser analisada: é possível que um particular, no caso o presidente de um clube de futebol, pro-mova diligências investigativas por conta própria?
E a resposta é positiva. Nesse sentido cumpre citar o que consta no art. 39, § 5º do CPP, que prevê que “o órgão do Ministério Público dispensará o inquérito, se com a representação forem oferecidos elementos que o habilitem a promover a ação penal”. Ou seja, o inquérito policial é uma peça dispensável, caso a repre-sentação criminal venha acompanhada de indícios que demonstrem de forma satisfatória (e legalmente aceita) a materialidade e a autoria.
Ademais, nos termos do que compreendeu o STJ quando do julgamento do HC 264.620/BA4, “a ação penal pode basear-se em elementos probatórios oriun-dos ou não do inquérito policial, que não é seu suporte exclusivo de justa causa. Assim, admitindo-se, em tese, a persecução criminal por qualquer fonte con-fiável de prova, estatal ou mesmo particular, nada impede seja essa fonte de prova provinda do órgão Ministerial” (destaque nosso).
Portanto, temos que a atuação de Hugo no sentido de angariar provas no intuito de provocar as autoridades competentes é lícita, encontrando respaldo na juris-prudência da Corte Superior. No entanto, mesmo que presente a legitimidade para esse tipo de atuação por particular, isso não significa que ela não deva obedecer a parâmetros legais, mormente porque o tema da investigação priva-da é bastante sensível em temas de direito e processo penal.
O zelo com o tema advém daquilo já abordado no primeiro artigo: os princípios e direitos fundamentais garantidos ao acusado e/ou àquele sob investigação criminal. Não se pode flexibilizar, por conseguinte, àquele que promove investi-gação privada, os limites estabelecidos para a investigação por parte da Autori-dade Policial ou, atualmente, pelo Ministério Público, através dos PICs5.
Entender de modo diverso, por exemplo, poderia levar a uma privatização da atividade investigativa, na qual os entes estatais poderiam se utilizar desta flexibilização para obtenção de elementos de informação que, seguidos os dita-mes legais, não poderiam ser obtidos sem decisão judicial prévia ou sequer poderiam ser obtidos.
Esta preocupação é algo rotineiro em casos de investigação corporativa, especialmente quando há indícios do cometimento de crimes dentro de estruturas empresariais por parte de funcionários, tendo a pessoa jurídica empregadora como vítima.
Nesses casos, que muito se assemelham com o presente, visto que há um funcionário cujas atitudes possivelmente prejudicam seu empregador, há um claro conflito entre o Direito do Trabalho e o Direito Processual Penal. Verifica-se um embate entre os deveres que o empregado têm perante o empregador6 e seus direitos constitucional e legalmente garantidos, como o direito à não autoincri-minação, entre outros.
Justamente por isso é que se recomenda que, em situações similares, o particular procure a orientação de um Advogado, que pode auxiliar nas investigações com respaldo no Provimento 188/2018 do Conselho Federal da OAB7.
Referido provimento regulamenta “o exercício da prerrogativa profissional do advogado de realização de diligências investigatórias para instrução em proce-dimentos administrativos e judiciais” e prevê que a atuação do advogado nesse sentido pode ser voltada à produção de prova para “rejeição ou recebimento de denúncia ou queixa” (art. 3º, II) e que “poderá o advogado, na condução da in-vestigação defensiva, promover diretamente todas as diligências investigatórias necessárias ao esclarecimento do fato, em especial a colheita de depoimentos, pesquisa e obtenção de dados e informações disponíveis em órgãos públicos ou privados, determinar a elaboração de laudos e exames periciais, e realizar reconstituições, ressalvadas as hipóteses de reserva de jurisdição” (art. 4º, caput).
E é aqui que reside uma preocupação, ainda que embrionária - eis que lastrea-da apenas em entrevistas concedidas por Hugo, e não da análise do que consta nos autos: é possível que a prova que iniciou a operação – apesar da atua-ção do presidente do Vila Nova/GO ter sido pautada pela melhor das intenções – seja declarada nula? Em nosso entender, a resposta é positiva.
Isso porque, em entrevista concedida ao jornal O Globo, Hugo, ao ser questio-nado se após receber as informações sobre o apostador que supostamente ameaçava um de seus atletas, tomou a iniciativa de procurá-lo, respondeu que “Sim, aí entrou na minha área, sou policial. A minha condição me obriga a agir, não podia me omitir. (...) Primeiro, identifiquei o apostador e consegui seu número do telefone. Então, fiz contato pelo WhatsApp. Escrevi que estava à dis-posição para entender o que estava acontecendo. Eu disse: ‘Estou aqui para te ajudar’. Inicialmente, ele me ligou e conversei com ele por chamada de voz. Aí ele foi abrindo: disse que tinha um acerto para que três jogos da última rodada da Série B tivessem pênalti no primeiro tempo. (...) Como eu sabia que precisava produzir provas mais concretas, fui ganhando a confiança e induzi ele a escrever no aplicativo, para deixar tudo registrado. De posse das mensagens, procurei o Ministério Público”8.
E mais, em entrevista concedida ao canal “Cartoloucos”9, relatou que “comecei a fazer aquela... a puxar a cadeia ali e chegamos na pessoa que supostamente estaria ameaçando ele. Chegamos no Instagram da pessoa, com base no ins-tagram a gente identificou ele, conseguiu contato telefônico e aí, meu amigo, teoria do salvador, já ouviu falar dela? (...) teoria do salvador meu amigo, o en-cantador de serpentes, teoria do salvador: ‘Amigão, voce tá com um problema’, aí você se coloca como sendo a pessoa pra resolver esse problema, fala assim ‘ó meu filho, só eu posso te ajudar’, e dai entender como que tinha sido a aposta, daí a gente conseguiu obter o comprovante de depósito”.
Além do quanto já discorrido sobre a sensibilidade do tema da Investigação Privada, há, em olhar superficial e indiciário, uma confusão entre a função pú-blica exercida por Hugo (policial militar) e a privada (presidente de clube de fu-tebol). E é justamente nesse contexto que as informações são obtidas para, posteriormente, fundamentarem a deflagração da Operação Penalidade Máxima.
Ressalta com a situação em comento a similaridade com outros meios de ob-tenção de prova, previstos na lei 12.850/13, como a Ação Controlada e a Infiltração de Agentes. O próprio presidente admite que induziu o suspeito da prática delitiva a produzir provas contra si mesmo, em possível violação ao princípio do nemo tenetur se detegere (direito à não autoincriminação), enquanto ciente das disposições legais e constitucionais quanto ao tema, já que também destaca ser esse tipo de atitude vinculada à área policial.
O que pretendemos demonstrar aqui, portanto, é a necessidade de um olhar atento para a situação. Parece existir uma confusão entre atribuições públicas e privadas quando um servidor público, cuja atribuição muitas das vezes tem vin-culação com investigações criminais, utiliza-se de outra estrutura, de função privada, para realizar diligências e angariar elementos de informação. Elementos esses que fundamentaram a instauração de procedimentos investigativos e ensejaram a decretação de medidas como a prisão preventiva dos investigados.
Há, em nossa visão, uma utilização indevida da investigação criminal privada no presente caso, em desrespeito aos ditames legais, já que conduzida de forma a violar o direito à não autoincriminação, insculpido na Constituição da República e também garantido pelo Código de Processo Penal.
Não se está dizendo que a atuação do presidente do Vila Nova/GO deva ser rechaçada por completo, apenas que houve possível excesso quando ela não se limitou à angariação dos elementos de prova já existentes e que chegaram ao seu conhecimento, mas entrou no campo da realização de diligências ativas, especificamente quando o presidente provocou contato com um dos supostos autores dos delitos e o “induziu” a produzir prova contra si mesmo. A situação é no mínimo preocupante e a futura declaração de nulidade dessa prova – basilar à operação como um todo – pode ter efeito devastador.
Essa constatação nos parece bastante clara quando comparada a presente si-tuação às investigações formais conduzidas pela Autoridade Policial ou pelo Ministério Público, nas quais é dever legal o esclarecimento àquele sob suspei-ta de prática delitiva da possibilidade de manter-se em silêncio e de que este não será considerado em seu prejuízo.
Assim sendo, há que se analisar a situação mais detalhadamente, a fim de con-firmar – ou rechaçar – a hipótese aqui aventada, que não conta com todos os elementos inseridos no processo, já que o reconhecimento de eventual nulida-de no início das investigações poderia desencadear na contaminação de todo o material amealhado a partir das informações apresentadas pelo presidente do Vila Nova/GO.
Em suma, o que pretendemos esclarecer com o presente é que, assim como no futebol e em todos os esportes, no processo penal existem regras e, para que os resultados sejam válidos, as regras de um jogo – em uma analogia simplista – que trata da liberdade do indivíduo precisam ser seguidas à risca, afinal “o processo penal é um caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena. Daí por que somente se admite sua existência quando ao longo desse caminho forem rigorosamente observadas as regras e garantias constitucional-mente asseguradas (as regras do devido processo legal)”.10
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1 https://www.migalhas.com.br/depeso/386840/operacao-penalidade-maxima-olhar-sob-vies-do-direito-e-processo-penal
2 Informação veiculada pelo portal G1, na coluna esportiva, em 9/5/23. Disponível em: https://ge.globo.com/go/futebol/noticia/2023/05/09/justica-acata-denuncia-e-torna-reus-os-16-investigados-na-operacao-penalidade-maxima-ii.ghtml. Acesso em: 16 mai. 2023.
3 Disponível em: ”https://www.espn.com.br/futebol/brasileirao/artigo/_/id/12037185/presidente-vila-nova-detalha-como-descobriu-esquema-apostas-levou-operacao-penalidade-maxima”. Acesso em 20/5/23.
4 STJ - HC nº 284.620/BA, 6ª Turma, Rel. Min. Nefi Cordeiro. J. 9/8/16.
5 Procedimento Investigatório Criminal, regido pela Resolução nº 181/2017 do CNMP (atua-lizada pela Res. 183/2018 e Res. 201/2019). Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Resolucoes/Resoluo-181-1.pdf. Acesso em 23 mai. 2023.
6 Vide: LIRA, Silvia Fidalgo. Aspectos trabalhistas envolvidos em investigações inter-nas. Levy & Salomão Advogados, 2019. Disponível em: https://www.levysalomao.com.br/publicacoes/Boletim/aspectostrabalhistas-envolvidos-em-investigacoes-internas. Acesso em 24 mai. 2023.
7 Disponível em: https://www.oab.org.br/leisnormas/legislacao/provimentos/188-2018. Acesso em 24 mai. 2023.
8 Disponível em: https://oglobo.globo.com/esportes/noticia/2023/05/senti-que-eu-precisava-levar-tudo-pronto-com-provas-concretas-diz-presidente-do-vila-nova.ghtml. Acesso em 20 mai. 2023.
10 Lopes Júnior, Aury. Direito Processual Penal. 17ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 39.