Migalhas de Peso

Coesão feminina e o dilema do retrocesso na proteção de direitos das mulheres

Segundo Maya Angelou “toda vez que uma mulher se defende, sem nem perceber que isso é possível, sem qualquer pretensão, ela defende todas as mulheres”.

30/5/2023

Em um movimento autofágico e egoísta, ignorando seus próprios direitos e de suas semelhantes, 10 (dez) mulheres, votaram contra o PL 1.085/20231 que garante igualdade salarial e remuneratória entre mulheres e homens para o exercício de mesma função.

Na mesma semana, o país testemunhou a manifestação pública da ex-primeira-dama2 pela extinção do §3º do art. 10 da lei 9.504/973, que realiza uma das maiores políticas afirmativas conquistada pelas mulheres, de garantir o mínimo de 30% (trinta por cento) das vagas de cada partido para um gênero (beneficiando candidaturas femininas, em regra, prejudicadas na representatividade eleitoral). Em sua fala inicial, foi dito que as mulheres devem ocupar cargos em razão de seu mérito4.

A simbologia desses eventos comporta aspectos sociológicos/psicológicos que terminam por interferir em situações jurídicas. Adentra na seara de apropriação da criação de um imaginário construído com base em uma ideia de igualdade que ignora a história e o fato de que, por anos – milênios, as mulheres foram destinadas a ocupar apenas espaços privados. Cada direito das mulheres foi conquistado não por concessão masculina, mas por luta de algumas mulheres que precisaram superar a normalidade para abrir caminho.

O fato de algumas mulheres trilharem caminho aparentemente fundado no desempenho pessoal egoístico faz com que, algumas vezes, não se perceba o quanto ainda precisa ser feito em relação aos direitos de todas as mulheres. Essa falta de empatia para com a posição das outras revela uma falta de vontade ou de capacidade de pensar fora de suas próprias vivências. Perceber isso demanda maturidade, esforço, coragem, mas também educação e consciência jurídicas, através de políticas públicas voltadas a esse tema específico.

Em que pese o direito de escolha individual e a legitimidade das ocupantes desses mandatos (muitas vezes outorgado por mulheres que se sentem representadas nessas decisões), faz-se necessário trazer à luz os danos oriundos desses atos, por tratar-se de questão complexa que atravessa vários saberes, extravasando os entremuros da legalidade, além de ter também repercussão jurídica. Os direitos para os quais pleiteiam a extinção transcendem a individualidade, abarcando as conquistas realizadas por mulheres que as antecederam e, principalmente, das que podem vir a ocupar esses cargos, através de cotas de gênero, cuja existência está atrelada a uma realidade ainda injusta de divisão do trabalho e de exposição pública.

Importa evocar proteção jurídica a essas tentativas de abolição ao direito de igualdade material e vedação ao retrocesso, uma vez que esses meios procuram concretizar o ápice democrático, pois “nas democracias mais antigas e nas mais recentes, naquelas consideradas mais sólidas e naquelas avaliadas também por sua fragilidade, a agenda de gênero encontrou oportunidade para transformar-se em leis e em políticas públicas”5.

Cada mulher que pode ser beneficiada pelas cotas de gênero, ou pela igualdade salarial, possui direito fundamental subjetivo, protegido por cláusula pétrea, não podendo sofrer violação ou usurpação por terceiros. Ainda que exista essa permissão de disposição desses direitos, deve ser destacado seu aspecto objetivo enquanto valor constitucionalmente protegido. Se, enquanto “direitos da primeira geração ou direitos da liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade”6, por outro, não podem ser abandonados em sua valoração objetiva, até porque reverberam em direitos de outras dimensões, como por exemplo, a própria democracia.

A realização da democracia, representa um direito de quarta geração, constituindo condição de “concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência”7, por isso, fora da atuação arbitrária de grupos privilegiados.

Ainda que determinadas mulheres acreditem que tenham chegado ao lugar da política aonde chegaram sem precisar da luta de outras, é insensível e míope ignorar a história e a realidade das outras mulheres, no acúmulo de suas funções domésticas e públicas, na busca árdua por ocupar espaços públicos mesmo quando expressamente rechaçadas, como comprovam continuamente as fraudes a cotas de gênero. Trata-se de um verdadeiro “puxar de tapete” para quem ainda pode chegar ao poder, por parte daquelas que já estão lá.

No estágio em que se encontra o exercício real de direitos por homens e mulheres é, portanto, contra o Direito, contra a História e contra a empatia não defender a igualdade salarial entre homens e mulheres e atacar as cotas.

A noção de empoderamento das mulheres indica uma constante atividade de mobilização política em todas as direções - Estado, sociedade e relações interpessoais para mudar políticas, leis, comportamento e valores discriminatórios e construir uma sociedade verdadeiramente plural e democrática.8

A obra não está acabada, os espaços ocupados estão longe de ter composição igualitária entre os gêneros, e tentar anular os existentes, além de ser uma atitude covarde e antidemocrática, demonstra uma falta de compromisso e preocupação com a evolução da humanidade, pois não se pode esquecer que até 1990 ainda se aceitava matar mulheres por adultério e só recentemente o Superior Tribunal de Justiça (STJ) declarou a ilegalidade da chamada “tese da legítima defesa da honra”9. Como pontua Rothenburg “a igualdade não é dada, ela é construída” e lamentavelmente “não é encontrada espontaneamente na sociedade10”, por isso a necessidade de discriminação positiva, mormente em um país desigual como o nosso.

Segundo Maya Angelou “toda vez que uma mulher se defende, sem nem perceber que isso é possível, sem qualquer pretensão, ela defende todas as mulheres”. E o inverso segue a mesma lógica, pois toda vez que uma mulher contraria os direitos de uma mulher, ela contraria o direito de todas.

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1 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 1.085/2023. Dispõe sobre a igualdade salarial e remuneratória entre mulheres e homens para o exercício de mesma função e altera a Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2351179

Acesso em 07 de maio de 2023

2 Ex primeira-dama, matéria jornalística disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2023/05/michelle-bolsonaro-defende-fim-da-cota-de-genero-em-evento-do-pl-mulher.ghtml. Acesso em 09 de maio de 2023.

3 BRASIL. Lei 9.504/97Estabelece normas para as eleições. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9504.htm. Acesso em 07 de maio de 2023.

4 Como se apenas o mérito fosse o parâmetro da política masculina

5 BIROLI, Flávia, Maria das Dores Campos Machado, Juan Marco Vaggione. Gênero, neoconservadorismo e democracia [recurso eletrônico]: disputas e retrocessos na América Latina. - 1. ed. - São Paulo : Boitempo, 2020, p. BIROLI, pag.161

6 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 32. ed., atual. – São Paulo : Malheiros, 2017, p. 281.

7 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 32. ed., atual. – São Paulo : Malheiros, 2017, p. 587

8 SARDENBERG, Cecilia M. B.; TAVARES, Márcia S. Violência de gênero contra mulheres: suas diferentes faces e estratégias de enfrentamento e monitoramento. Salvador: ed. EDUFBA, 2016. (Coleção bahianas; v. 19). Disponível em: <https://books.scielo.org/id/q7h4k>. Acesso em 14 de maio de 2023, p. 32

9 SARDENBERG, Cecilia M. B.; TAVARES, Márcia S. Violência de gênero contra mulheres: suas diferentes faces e estratégias de enfrentamento e monitoramento. Salvador: ed. EDUFBA, 2016. (Coleção bahianas; v. 19). Disponível em: <https://books.scielo.org/id/q7h4k>. Acesso em 14 de maio de 2023, p. 32

 

10 ROTHENBURG, Walter Claudius. Igualdade material e discriminação positiva: o princípio da isonomia. Revista Novos Estudos Jurídicos. N. 13-2, Julho, 2008, p. 78-92. Disponível em: < https://vlex.com.br/vid/igualdade-material-positiva-isonomia-64929417> Acesso em: 10 Mai 2023, p. 78.

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BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 1.085/2023. Dispõe sobre a igualdade salarial e remuneratória entre mulheres e homens para o exercício de mesma função e altera a Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Disponível: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2351179. Acesso em 07 de maio de 2023.

BRASIL. Lei 9.504/97. Estabelece normas para as eleições. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9504.htm. Acesso em 07 de maio de 2023.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 32. ed., atual. – São Paulo : Malheiros, 2017.

BIROLI, Flávia, Maria das Dores Campos Machado, Juan Marco Vaggione. Gênero, neoconservadorismo e democracia [recurso eletrônico]: disputas e retrocessos na América Latina. - 1. ed. - São Paulo : Boitempo, 2020.

SARDENBERG, Cecilia M. B.; TAVARES, Márcia S. Violência de gênero contra mulheres: suas diferentes faces e estratégias de enfrentamento e monitoramento. Salvador: ed. EDUFBA, 2016. (Coleção bahianas; v. 19). Disponível em: <https://books.scielo.org/id/q7h4k>. Acesso em 14 de maio de 2023.

ROTHENBURG, Walter Claudius. Igualdade material e discriminação positiva: o princípio da isonomia. Revista Novos Estudos Jurídicos. N. 13-2, Julho, 2008, p. 78-92. Disponível em: < https://vlex.com.br/vid/igualdade-material-positiva-isonomia-64929417> Acesso em: 10 Mai 2023.

Débora do Carmo Vicente
Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Pós-graduada em Direito Civil, Processo Civil e Direito Público. Graduada em Direito PUCRS. Servidora efetiva do quadro do TRE-RS. Chefe da Seção de Programas institucionais da Escola Judiciária Eleitoral do Rio Grande do Sul - EJERS. Coordenadora da Comissão de Participação Feminina Institucional do TRE-RS. Participou de Programa Acadêmico na Missão Permanente do Brasil junto a ONU em Nova York - NY- Estados Unidos, em 2016, durante a 60a. Sessão da CSW - Commission on The Status of Women - Comissão sobre a Condição Jurídica e Social da Mulher na ONU. Formadora da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados ENFAM-CNJ. Membra ABRADEP e IGADE.

Lígia Vieira de Sá e Lopes
Analista judiciária do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará desde 2006. Especialista em Direito Eleitoral, Processos Educacionais e Direito Processual. Membra da ABRADEP e do grupo Ágora.

Raquel Cavalcanti Ramos Machado
Mestre pela UFC, doutora pela Universidade de São Paulo. Professora de Direito Eleitoral e Teoria da Democracia. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP, do ICEDE, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e da Transparência Eleitoral Brasil. Integra o Observatório de Violência Política contra a Mulher.

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