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Delegado pode presidir inquérito no qual é vítima?

A solução que se nos parece mais óbvia é que a Secretaria de Segurança Pública de cada Estado e o Ministério da Justiça normatize estas hipóteses e determine a nomeação de outro delegado (não impedido) para presidir as investigações e, assim, se preserve a higidez ética da investigação preliminar.

27/5/2023

A previsão legal do juiz das garantias (CPP, art. 3º-A e seguintes), incluída pelo chamado pacote anticrime, trouxe à luz novamente o debate sobre separação de funções dos que atuam no processo penal, debate esse que já era realizado para abolir a dúvida de se a Constituição Federal de 88 previu um modelo acusatório, inquisitório ou misto1.

Esta inovação legislativa acabou por inclinar a disputa a favor dos que defendem o modelo acusatório2 – apesar da vigência impoluta do art. 156 do CPP - porque o juiz de garantia atuaria exclusivamente na fase pré-processual, sendo substituído por outro magistrado na fase instrutória, o que evitaria a contaminação do julgador, atuante na instrução, pela prova coletada na fase do inquérito, a qual não havia sido submetida ao contraditório e ampla defesa.

Separadas estariam, portanto, as funções de investigar, acusar e julgar.

Tomada esta mesma regra para outras ocasiões do processo penal, contida aí a investigação, teríamos que exigir a sua aplicação nesta fase, sob pena de sustentarmos um princípio para uma situação e desprezarmo-lo para outra, de igual relevância e característica, a constituir a pretensão invocada mera opinião casuística sem base dogmática.

Portanto, imaginando a hipótese de o delegado de polícia ser a autoridade que presida as investigações a respeito de crime no qual figura como vítima, constatar-se-ia aí plena incompatibilidade de atuação, pois a imparcialidade exigida a qualquer responsável pela imputação penal estaria flagrantemente violada.

A insuperável proposição é esta: se eu me considero vítima de um crime e eu mesmo sou designado a apurar as circunstâncias do delito, minha conclusão não será outra que não o indiciamento do flagranteado, no caso de inquérito iniciado por flagrante, ou estará turvada pelo interesse de responsabilizar alguém pelo mal praticado, no caso de inquérito iniciado por portaria, onde não há fortes indícios de autoria.

Como se trata de situação objetiva em que não é necessária a busca por elementos que provem o animus desvirtuado da autoridade, mas apenas sua posição e funções dentro da investigação, entende-se que a hipótese é de impedimento, não de suspeição.

O Código de Processo Penal nada diz expressamente sobre o impedimento da autoridade policial, tão somente versando sobre os casos de impedimento dos juízes (e promotores), conforme se vê do art. 252.

No entanto, a doutrina explica e diferencia cada instituto, como faz Nucci, afirmando que o impedimento se dá nos casos do referido artigo e que tais, por equiparação, podem e devem ser utilizados para verificação dos atos da autoridade policial. A exceção de impedimento não é mencionada expressamente no CPP com essa desinência3, mas da norma verifica-se que ela representa um vínculo, direto ou indireto, com o processo em julgamento4. As hipóteses de suspeição estão elencadas no art. 254, enquanto as de impedimentos estão nos arts. 252 e 253.

A aparente contradição em se proibir o terceiro interessado de opor impedimento, mas recomendar ao delegado, sujeito impedido, que ele mesmo a declare, é explicada pela doutrina:

“Ora, se a parte interessada não pode reclamar da presidência do inquérito policial ser feita por autoridade suspeita, por que haveria a lei de recomendar que está assim o declare? Pensamos que, sendo o inquérito peça de investigação, mas onde se produzem importantíssimas provas – como as periciais, não renovadas ao longo da instrução em juízo – deveria ser admitida a exceção de suspeição ou de impedimento”.5

Embora o inquérito seja peça meramente informativa, o promotor, na maioria das vezes, leva em consideração o aqui ali se produzirá pela vítima - que na hipótese estudada é também investigador - para oferecer a denúncia, bem como pelo fato de que são poucas as vezes em que diverge da conclusão do inquérito.

E o magistrado, pelo princípio da livre convicção e da confiabilidade que possui nas declarações dos órgãos oficiais de persecução, desde o recebimento da denúncia tende a acreditar muito mais na versão oferecida pela vítima - que é o sujeito relator do inquérito, na condição de delegado – a qual será ouvida como testemunha durante a fase judicial.

O jurista paulista arremata ainda, sobre a possível nódoa na investigação decorrente de atuação nula por impedimento (ou suspeição), os efeitos deletérios:

“uma autoridade suspeita pode fraquejar na investigação, para que nada seja descoberto contra determinado indiciado ou pode buscar provas exclusivamente contra certo indiciado, abandonando outros suspeitos, cujos nomes lhe chegam ao conhecimento, somente para prejudicar o desafeto. Enfim, não vemos sentido para uma autoridade policial suspeita não poder ser afastada pelo juiz, fiscal da investigação, quando alguém se sentir prejudicado.”6

O dever de declarar-se impedido ou suspeito não é desconhecido da autoridade policial, eis que consta da carta deontológica dos policiais civis do Estado do Tocantins (estatuto dos servidores da polícia civil), a saber, a lei estadual n. 3.461/19, em seu art. 98, II, o, que pune com suspensão de seis a quinze dias quem “esquivar-se de providência a respeito de ocorrências no âmbito de suas atribuições, salvo no caso de suspeição ou impedimento; (...)”.

Mutatis mutandis, deve o servidor declarar-se suspeito ou impedido nos casos análogos ao de juízes e promotores, em que venha exercer juízo de valor sobre conteúdo probatório para fins de imputação penal, pois caso contrário irá de praticar ato, no âmbito de suas atribuições, eivado de nódoa subjetiva.

A título de exemplo, as atribuições do delegado de polícia do Estado do Tocantins são regidas pela lei 2.314/10, que em seu anexo I diz claramente:

Ao Delegado de Polícia Civil, cujas funções são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado, nos termos da lei Federal 12.830, de 20 de junho de 2013, cabe privativamente na qualidade de autoridade policial:

  1. conduzir a investigação criminal, por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei que tenha como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais, atuando de acordo com seu livre convencimento técnico-jurídico, com independência funcional, isenção e imparcialidade; (...)”

Ainda como exemplo, cite-se que é vedado ao policial civil, no estado do Maranhão, ser processado administrativamente por alguém que tenha interesse específico, direto ou indireto, no objeto da apuração disciplinar, conforme aduz a lei estadual 8.508/06. Veja-se: “art. 85 – Deve abster-se de atuar no processo, arguindo impedimento, qualquer integrante de comissão ou o secretário, quando: I - tenha interesse direto ou indireto no objeto do processo disciplinar; (...)”.

Concernente ao processo, a estrutura acusatória impede que a vítima assuma as funções de investigar e por isso Lopes Jr. adverte sobre os perigos do interesse público misturar-se aos interesses pessoais viciados da parte acusadora ou julgadora envolvidas:

“(..) não se pode ignorar a relação da vítima com o caso penal, do qual faz parte, o que gera interesses (diretos) na persecução criminal, os quais podem se manifestar em diferentes sentidos, tanto para beneficiar o imputado (ex.: por medo) como também para prejudicar um inocente (ex.: vingança pelos mais diversos motivos). Além desse comprometimento material, existe, ainda, a disciplina processual, que desobriga o ofendido de prestar compromisso de dizer a verdade, abrindo-se a porta para eventuais mentiras impunes.”7

As expectativas do comportamento daqueles que estão envolvidos no dilema do fato delituoso, observadas por qualquer pessoa atenta ao devido processo legal, devem apontar numa direção que reclame o impedimento de se atuar como delegado e vítima ao mesmo tempo e num mesmo procedimento.

A solução que se nos parece mais óbvia é que a Secretaria de Segurança Pública de cada Estado e o Ministério da Justiça normatize estas hipóteses e determine a nomeação de outro delegado (não impedido) para presidir as investigações e, assim, se preserve a higidez ética da investigação preliminar.

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1 “Na doutrina, além de não haver conformidade quanto ao conteúdo do acusatório, inquisitivo e adversarial, também há distinções entre as nominações modelo, princípio, método, estilo e sistema.” Giacomolli, Nereu José. O devido processo penal. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 91.

2 “Este novo artigo 3º-A do CPP positiva, de maneira indiscutível, a opção pelo sistema acusatório. Trata-se do coração da reforma processual penal operada e é fundamental à sua compreensão”. Dezem, Guilherme Madeira; De Sousa, Luciano Anderson. Comentários ao pacote anticrime. 1 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 78.

Nucci, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 15 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 201, livro digital.

4 Tenha por si ou parente seu atuado no feito, embora em outra função, tenha servido como testemunha, tenha funcionado como juiz em outra instância, tenha por si ou por parente interesse no deslinde da causa.

Nucci, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 15 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 202, livro digital.

6 Idem, ibidem.

Lopes Júnior, Aury. Direito Processual Penal. 09 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 649.

Jimmy Deyglisson
Especialista em ciências penais, presidente da ABRACRIM-MA, membro associado do IBDPE (Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico) e L.L.M em direito penal econômico pelo IDP.

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