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PL 2.630: O projeto que desafiou o algoritmo

O debate exige compreender que a tecnologia, a internet, a virtualidade, são parte de um processo que se integra à cultura e que devem ter por finalidade o crescimento intelectual, profissional e espiritual dos seres humanos.

25/5/2023

Dentro do gelatinoso ambiente moral das pós-verdades e das fake news, falar de um projeto tão necessário como o PL 2.630 resulta quase extravagante. Na grande empreitada de absorver a disputa comunicacional, de razões e sem-razões,, silenciando uns e promovendo outros, a tarefa hoje bem executada pelas plataformas digitais, incorporadas à lógica do grande capital, consiste em marcar as pautas aspiracionais e operacionais oferecendo um cenário de ferramentas, ampla e confortavelmente dominado pelos poderes tradicionais ou alguns recém aparecidos, em cuja base está o motor do algoritmo.

Com efeito, a sequência organizada pelas big techs não reconhece limites e está desenhada para decidir se há ou não espaço para a reflexão e, sobretudo, possui uma potente energia disruptiva, é dizer, pode subitamente modificar o controle das situações, sejam estas de ordem político, econômico, moral, religioso, ou de qualquer outra natureza.

Porém, entre as retóricas da intransigência ou da futilidade, tão próprias das crises da chamada pós-modernidade, eis que ingressou no centro do debate público algo extremamente importante para a democracia e as liberdades, isto é, a questão das medidas e propostas regulatórias às plataformas digitais. Trata-se de um tema central, ainda que, como acontece com frequência, a alegação de censura tenha sido convertida numa espécie de manto que encobre a necessidade e até o dever jurídico dessa regulamentação.

De fato, isto revela, pelo menos, uma seria fragilidade para avançar na interpretação e projeção do até hoje escamoteado Capítulo V do Título VIII da Carta de 1988, que aborda a Comunicação Social e cujo bloco normativo implica liberdade de informação vinculada à proteção dos direitos da personalidade de todos e todas. Entretanto, o que não raro se percebe é que os circuitos culturais de legitimação, exclusão, prêmio e castigo, que conformam um sistema complexo e hegemónico do qual fazem parta as plataformas, valem-se do fantasma da censura com eficácia para impedir um avanço imprescindível que pode contribuir a sedimentar direitos como o da informação verdadeira.

Nesse sentido também há quem parece não compreender – ou não quer compreender - que as plataformas com atuação global modulam os debates mais relevantes para sociedade a partir de lógicas de mercado altamente centralizadas e que os algoritmos moderam os fluxos de conteúdos de forma opaca . Vale ressaltar, desde logo, que não se discute a “mentira” como parte da linguagem, senão o que já se tornou evidente e até banal, isto é, a constatação de que já faz um tempo estamos diante da articulação proposital de campanhas de desinformação, disparadas em milésimos de segundo para milhões de usuários, com utilização de tecnologias de alto apelo emocional e capacidade de microdirecionamento a partir do tratamento maciço de dados pessoais.

Questões como estas são as que enfrenta o PL 2.630, que institui a “Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet” e que conta com uma principiologia que parte da exigência de cristalinidade na veiculação de anúncios e conteúdos pagos e na moderação daqueles postados por terceiros; na responsabilidade no uso de redes sociais e dos serviços de mensageria privada, no funcionamento de contas inautênticas ou de contas autorizadas, porém não identificadas, dentre outros temas igualmente importantes.

A aprovação, em 25 de abril, da tramitação em regime de urgência do Substitutivo ao Projeto parece explicar a reação virulenta do Google, do grupo Meta (Facebook e Instagram) e do Twitter. O primeiro inseriu em seu buscador, os títulos “Saiba como um projeto de lei pode tornar sua busca menos útil e segura” e, ainda pagou mais de R$ 670 mil para veicular anúncios no Facebook e no Instagram contrários ao PL 2.630. O Facebook, por sua vez, promoveu anúncio veiculado nos jornais brasileiros com o título “O PL das Fake News deveria combater as fakes news e não a lanchonete do seu bairro” e o Telegram Inc. enviou em massa aos seus usuários brasileiros uma postagem em que afirmava que o PL das Fake News “mataria a internet”.

A unidade de corpo objetivou tentar deslegitimar as discussões por meio do engano à boa fé de quem utiliza as plataformas digitais, o que corrobora o ambiente de concentração do poder, mas também, do lado, enfatiza as desigualdades, a privatização do conhecimento, a trivialização da cultura, a visão belicista que torna o cenário da internet militarizado, a redução da cidadania ao terreno exclusivo do consumo e à condução ausente de ética e de qualquer escrúpulo das inclinações humanas, desde as mais prosaicas às mais íntimas. E é precisamente por isso que é preciso uma alternativa legislativa que atenda às expectativas de abandonar a mediocridade e responsabilizar àqueles que deterioram a deliberação e participação democrática e reproduzem ódios e lógicas de extermínio, de discriminação e exclusão.

Resulta até pedagógica, em tal sentido, a determinação da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), do Ministério da Justiça para que o Google sinalizasse que as postagens no seu buscador eram “conteúdo publicitário”; para que informasse seus interesses na discussão do PL e que veiculasse matérias favoráveis ao PL de maneira a estabelecer um contraponto à sua postura inicial, sob pena de multa de R$ 1 milhão por hora. Como também a instauração de procedimento para apuração de possível abuso de posição dominante pelo Google e o Meta pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).

É claro que existe o direito constitucional de se opor a qualquer projeto em debate. Essa é a premissa da democracia deliberativa, especialmente dentro de uma “sociedade aberta de intérpretes”, para lembrar a J. Habermas e P. Haberle. O problema não está em se opor, senão na interferência grosseira e direta na agenda político-social, subvertendo a separação entre notícia, opinião e conteúdo publicitário, valendo-se do seu alcance.

Resulta, portanto, inocente comparar o comportamento das plataformas com o impacto de um indivíduo ou de grupos se manifestarem de forma mentirosa ou distorcida. Isso porque as plataformas, dominando o cenário informacional e de formatação de opiniões, enviaram de forma orquestrada um conteúdo que propositalmente não espelha o que está sendo discutido no PL 2.630.

A ideia capturando a audiência foi direcionar usuários de forma escalonada para conteúdos contrários. Isso não é liberdade de expressão, mas abuso inconstitucional e, ainda, não seguindo parâmetros e deformando a percepção do usuário, uma espécie de censura privada, que torna uma falácia a ideia de que os usuários podem escolher os seus conteúdos a partir de interesses ou intenções. A questão é que quando a plataforma faz esse envio em massa há uma subversão da lógica constitucional de informação verdadeira e adequada porque ela consegue atingir um espaço comum de contado dos usuários com um conteúdo que é favorável aos seus objetivos.

O debate exige compreender que a tecnologia, a internet, a virtualidade, são parte de um processo que se integra à cultura e que devem ter por finalidade o crescimento intelectual, profissional e espiritual dos seres humanos, especialmente num país balizado constitucionalmente pela dignidade humana e por legítimas aspirações democráticas. O Direito, como ordenador normativo de uma realidade tão complexa deve ser, no mínimo, levado a sério pelas plataformas, especialmente quando a Constituição expõe, com clareza, que a cidadania e a dignidade são fundamentos essenciais do Estado brasileiro.

Pietro Alarcón
Advogado, doutor em Direito pela PUC/SP, membro da ABJD - Associação Brasileira de Juristas pela Democracia e da ADJC - Associação de Advogados e Advogadas pela Democracia, a Justiça e a Cidadania.

Tatiana Stroppa
Advogada, doutora em Direito, professora do Centro Universitário de Bauru (CEUB-ITE) e pesquisadora das liberdades comunicativas. Coordenadora GT Políticas e Governança da Comunicação da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política (Compolítica).

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