Migalhas de Peso

Ainda sobre a nova lei de improbidade administrativa

Entendemos que, “permissa venia”, com base nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, as condenações por atos culposos de improbidade administrativa, que tenham sido proferidas a título de culpa leve ou levíssima ou por culpa “in vigilando” e “in eligendo”, e não com fulcro em culpa grave, possam e devam ser revistas.

22/5/2023

No dia 14 de abril do ano passado, tivemos a oportunidade de publicar no site Migalhas um artigo1, defendendo a retroatividade benéfica da Nova LIA, de modo irrestrito, a todos os casos de atos de improbidade administrativa ocorridos sob a égide da Lei original, quer no tocante a processos em andamento, quer no que tange a processos com trânsito em julgado (numa posição bem semelhante aos votos do eminentes Ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowksi, proferidos em sede do Agravo em Recurso Extraordinário 843989).

Porém, no julgamento do sobredito ARE, que se deu no dia 18/8/22, o Excelso Pretório, por maioria dos votos e na esteira de raciocínio do digno Relator, Ministro Alexandrte De Moraes, decidiu que a Nova LIA somente é retroativa quanto aos processos em andamento, não se estendendo a atipicidade das condutas culposas e o novo sistema de prescrição aos casos em que haja condenações proferidas sob o pálio do texto legal original e já com trânsito em julgado, conforme publicação no site da própria Suprema Corte:

“- O Supremo Tribunal Federal decidiu que o novo texto da Lei de Improbidade Administrativa (LIA - lei 8.429/1992), com as alterações inseridas pela lei 14.230/2021, não pode ser aplicado a fatos culposos, nos quais tenha havido condenações definitivas e processos em fase de execução das penas;

“- O Tribunal também entendeu que o novo regime prescricional previsto na lei não é retroativo e que os prazos passam a contar a partir de 26/10/2021, data de publicação da norma;

“- Prevaleceu o entendimento do nobre Relator, Ministro Alexandre de Moraes, de que a LIA está no âmbito do direito administrativo sancionador, e não do direito penal. Portanto, a nova norma, mesmo sendo mais benéfica para o réu, não retroage nesses casos;

“- Os ministros entenderam, ainda, que a nova lei somente se aplica a atos culposos praticados na vigência da norma anterior se a ação ainda não tiver decisão definitiva.

“- Segundo a decisão, tomada no julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 843989, como o texto anterior que não considerava a vontade do agente para os atos de improbidade foi expressamente revogado, não é possível a continuidade da ação em andamento por esses atos. A maioria destacou, porém, que o juiz deve analisar caso a caso se houve dolo (intenção) do agente antes de encerrar o processo”2.

Na linha de raciocínio da respeitável decisão colegiada proferida no ARE 843989, entendemos perfeitamente que a inexistência de tipos culposos na Nova LIA não estende seu benefício (da “abolitio criminis”) para condenações anteriores, já transitadas em julgado, pela prática de atos culposos, sob a égide do texto legal original. Porém, parte relevante da doutrina e da jurisprudência, mesmo sob o pálio da Antiga Lei, já se orientava no sentido de que:

“A LIA não visa punir meras irregularidades ou o inábil, mas sim o desonesto, o corrupto, aquele desprovido de lealdade e boa-fé" (STJ, 2ª Turma, AgInt no REsp 1746240 / RS, rel. Min. OG FERNANDES, DJ. 03/08/2021).

Neste sentido também preleciona o ínclito Prof. FERNANDO DA FONSECA GAJARDONI: “[..] o Superior Tribunal de Justiça entende, por ampla maioria, que principalmente considerando a gravidade das sanções impostas na LIA, a configuração de ato de improbidade administrativa exige, necessariamente, a presença do elemento subjetivo, inexistindo a possibilidade da atribuição de responsabilidade objetiva na esfera da Lei 8.429/1992. Não há portanto, em sede de direito administrativo sancionatório (como também não há em direito penal), culpa presumida ou responsabilidade por ato de terceiro”3.

De modo que não é qualquer culpa (leve ou levíssima) que o antigo texto legal tinha em mira, mas somente a culpa grave. Neste sentido, o Colendo STJ já havia praticamente fulminado a culpa “in eligendo” e a culpa “in vigilando”, no tocante à Lei de Improbidade Administrativa. Vejamos o lúcido julgado neste sentido:

“Considerando isso, verifico que esta Corte tem entendido, de forma pacífica, que o enquadramento da conduta do réu como ato ímprobo a que se refere a Lei 8.429/1992 exige a demonstração do elemento subjetivo, consubstanciado pelo dolo para os tipos previstos nos arts. 9º e 11 e, ao menos, pela culpa grave, nas hipóteses descritas no art. 10” (REsp nº 1.634.627, Rel. Ministro Gurgel de Faria, com grifos nossos).

Assim, em síntese o argumento trazido à baila, aqui, é o seguinte: a) compreendemos que, por maioria de votos, no ARE 843989, o Excelso Pretório decidiu pela não-retroatividade benéfica da Nova LIA aos processos já com sentenças transitadas em julgado; b) porém, as condenações, ainda que transitadas em julgado, não podem subsistir, se embasadas em qualquer espécie de culpa (“verbi gratia”: no caso de cumprimento de ordens superiores, os funcionários públicos subalternos agem com culpa “in vigilando”, quando muito); c) mesmo antes da edição da lei 14.230/21, o réu devia agir com dolo quanto aos tipos previstos nos arts. 9º e 11 e, ao menos, com culpa grave, nas hipóteses descritas no art. 10” (REsp 1.634.627, Rel. Ministro Gurgel de Faria, com grifos nossos).

Destarte, com a devida vênia, a culpa leve e levíssima, e a culpa “in vigilando” e “in eligendo” já haviam sido expurgadas pelo Colendo STJ, no tocante à Lei nº 8.429/92, mesmo em sua redação original.

Assim, entendemos que, “permissa venia”, com base nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, as condenações por atos culposos de improbidade administrativa, que tenham sido proferidas a título de culpa leve ou levíssima ou por culpa “in vigilando” e “in eligendo”, e não com fulcro em culpa grave, possam e devam ser revistas.

Mesmo porque a melhor doutrina jurídica expõe que os princípios constitucionais da razoabilidade e da proporcionalidade devem ser ponderados em todas as instâncias dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, a fim de se aplicar no caso concreto a medida menos gravosa ao administrado, sob pena de os atos mais gravosos serem julgados inconstitucionais. Vejamos o que escreveu o Prof. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, Doutor em Ciência do Direito pela Faculdade de Bielefeld/Alemanha, Professor e Pesquisador do CNPq, sobre o tema:

“O princípio da proporcionalidade é originário do direito público alemão, e não pode ser confundido, como ultimamente vem acontecendo entre nós, com o princípio da razoabilidade, de origem anglo-saxônica, pois não apenas são diversos em sua destinação, como são verdadeiramente incomensuráveis. A desobediência ao princípio da razoabilidade significa ultrapassar irremediavelmente os limites do que as pessoas em geral, de plano, considerariam aceitável, em termos jurídicos. É um princípio com função negativa. Já o princípio da proporcionalidade tem uma função positiva a exercer, na medida em que pretende demarcar aqueles limites, indicando como nos mantermos dentro deles – mesmo quando não pareça, à primeira vista, ‘irrazoável’ ir além.

“A transposição do princípio da proporcionalidade do campo do direito administrativo para o direito constitucional, de onde se irradia para os mais diversos setores do direito, deve-se em grande parte ao posicionamento assumido pelo Tribunal Constitucional na Alemanha. Essa Corte Suprema, investida que está pela Lei Fundamental da função de velar pelo seu cumprimento e respeito, a partir de um determinado momento, passa a repetir com freqüência expressões em sua argumentação, que se associam claramente ao ‘pensamento da proporcionalidade’, tais como ‘excessivo’ (übermässig), ‘inadequado’ (unangemessen), ‘necessariamente exigível’ (erforderlich, übererlässlich, unbedingt notwendig), até estabelecer de forma incisiva que o referido princípio e a correlata ‘proibição de excesso’ (Übermassverbot), ‘enquanto regra condutora abrangente de toda a atividade estatal decorrente do princípio do Estado de Direito (possui) estrutura constitucional’ [...]; que “o Verhältnismässigkeitsprinzip (o princípio da proporcionalidade) já foi apresentado como resultante ‘no fundo, da essência dos próprios direitos fundamentais’, acrescentando, de forma assimilável à formulação clássica de Svarez, que se teria aí uma ‘expressão do anseio geral de liberdade dos cidadãos frente ao Estado, em face do poder público, que só pode vir a ser limitada se isso for exigido para a proteção de interesses públicos”4 .

Nesta linha de raciocínio, bem sabemos que, na Teoria dos Direitos Fundamentais Moderna, ocorrendo uma colidência entre princípio e princípio ou entre princípio e regra, há que se fazer uma ponderação entre os respectivos princípios (ponderação: de “pondus – ponderis”, “peso” em Latim), a fim de se chegar ao princípio de maior peso em cada caso concreto. E os princípios da proporcionalidade (“Verhätnismässingkeit”, em alemão) e da razoabilidade (“reasonability”, em inglês) devem ser o fiel da balança na ponderação entre princípios, uma vez que os dois postulados se completam, sendo um originário do Direito Alemão e o outro do Direito Anglo-saxônico; e o princípio da proporcionalidade é uma expressão do Estado de Direito (“Rechtsstaat”)  .

Em suma: condenações por atos em tese ímprobos, embasadas em qualquer espécie de culpa (leve, levíssima etc.) e não em culpa grave ferem os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, além de irem no sentido oposto ao princípio da proibição de retrocesso.

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1 CONSTANTINO, Carlos Ernani.https://www.migalhas.com.br/depeso/363952/a-nova-lei-de-improbidade-administrativa-interpretação-de-seu-sistema.

2 https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=492606.

3 GAJARDONI, Fernando da Fonseca et alii. Comentários à Nova Lei de Improbidade Administrativa. 5ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Thompson Reuters – Revista dos Tribunais, 2021, p. 484-485, com grifos nossos.

4 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Dos Direitos Fundamentais aos Direitos Humanos: Direitos Fundamentais, Processo e Princípio da Proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1997, p. 25-26

5 KÖBLER, Gerhard; POHL, Heidrun. Deutsch-Deutsches Rechtswörterbuch (id est: Dicionário Jurídico Alemão-Alemão). 1ª ed., Munique-Alemanha: Beck, 1991.

Carlos Ernani Constantino
Advogado Militante. Promotor de Justiça Aposentado no Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal no curso de graduação da Faculdade de Direito de Franca-SP. Sócio-Coordenador do Escritório "Constantino Advogados". Mestre em Direito Público, pela Unifran-SP.

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