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ADIn 6.137 do STF: a "deriva técnica" decorrente da pulverização aérea dos agrotóxicos e o risco que causa à sua vida e aos ecossistemas

Espera-se que o STF mantenha firme o leme, retire o meio ambiente e coletividade desta posição de alvo indefectível da deriva técnica do agrotóxico pulverizado por aviões, coloque a nau no rumo e que esse julgamento sirva de exemplo para que outros Estados legislem no mesmo sentido.

22/5/2023

O dia em que começo a escrever este brevíssimo ensaio (sexta-feira, 19/5) coincide com o início do julgamento da ADIn 6137 no plenário virtual do STF. A ação direta foi movida pela Confederação Nacional da Agricultura e nela aduz que a lei estadual 16820 do Ceará – que proíbe pulverização aérea de agrotóxicos no Ceará - seria inconstitucional tanto do ponto de vista formal, quanto material porque violaria a livre iniciativa e os objetivos da política agrícola brasileira (inc. IV do art. 1º, aos incs. I, X e XVI do art. 22, ao § 1º do inc. VI do art. 24, ao caput e ao inc. IV do art. 170 e ao art. 187 da CF/88).

Até o momento existem votos favoráveis à constitucionalidade da Lei Estadual 16.820/19 na parte que proíbe da pulverização aérea de agrotóxicos naquele Estado (§ 1º e o caput do art. 28-B da lei 12.228/93 do Ceará, incluídos pela lei  16.820/19). Oxalá se espera que este também seja o direcionamento dos demais Ministros da Corte Suprema até o dia 26/5 quando deve ser concluído o julgamento.

O caso que está sob julgamento no STF é uma dessas situações excêntricas em que é preciso que tenha ocorrido o sacrifício de seres humanos (normalmente hipossuficientes) e ecossistemas inteiros para tentar fazer com que o óbvio, o ululante, o lógico prevaleça sobre o surreal1. Como dizia Saramago no seu seminal Ensaio Sobre a Cegueira “estamos a destruir o planeta e o egoísmo de cada geração não se preocupa em perguntar como é que vão viver os que virão depois. A única coisa que importa é o triunfo do agora. É a isto que eu chamo a cegueira da razão”.

Num país em que é necessário uma Lei – das mais importantes, diga-se de passagem - para dizer que criança tem direito fundamental de ser criança e que é proibido o trabalho infantil - faz todo sentido que tenhamos que ter uma Lei para dizer que a pulverização aérea por agrotóxico deve ser proibida e, pior que isso, que ainda por cima seja necessário o Supremo Tribunal Federal para dizer que ela é constitucional.

Além de formalmente constitucional porque abrigada no artigo 24, VI e VII da CF (e em consonância com o art. 10 da lei federal 7.803), o art. 28-B da lei do Ceará é admiravelmente constitucional do ponto de vista material, em primeiro lugar, porque é embasada em notórios e inquestionáveis dados científicos, coisa que andou absurdamente  ignorada; em segundo lugar, porque coloca em primeiro lugar a proteção da vida e do meio ambiente e; em terceiro lugar, porque enfrenta a poderosíssima força econômica da nossa política agro – que é pop, é vida, é tudo – e que, pelo fato de ser decisiva na balança comercial do país, não se importa que sejamos, no mundo, “medalha de ouro” no consumo – direto e indireto - de agrotóxicos com nada mais nada menos que uma média de cinco quilos de veneno agrícola por pessoa2.

Então, não é de se estranhar que surja uma ação direta de inconstitucionalidade como esta para dizer que a tal lei deva ser banida do planeta e, sem trocadilho, a todo vapor seja permitido pulverizar veneno muito além das plantações. É preciso manter a tal “primeira colocação”, ainda que isso custe vidas e ecossistemas.

O desfecho típico desta ação direta de inconstitucionalidade pode ser de procedência ou de improcedência. Pelo andar da carruagem – ainda bem - caminha em direção da improcedência com o reconhecimento da constitucionalidade da lei cearense que proibiu a pulverização aérea de agrotóxicos.

O voto da excelente constitucionalista, Ministra Relatora Carmem Lúcia, é técnico e, materialmente, aplica diretamente o art. 225, §1º, V do texto constitucional. O voto traz dados e mais dados científicos – pulverizados aos borbotões na rede - que escancara o impacto negativo irreversível à saúde e ao meio ambiente causado pela pulverização aérea de agrotóxicos.

Ouso dizer que é tão infame a propositura de uma ação direta de inconstitucionalidade num caso como este, com tantas evidências científicas – inclusive no Ceará - do mal que a pulverização aérea causa, que não seria absurdo sussurrar que “inconstitucional” é uma demanda como esta. Como dizia Teixeira de Freitas, infelizmente, o papel aceita tudo (charta aliquid accipit), e somos obrigados a conviver com situações extravagantes como esta.

O texto constitucional brasileiro ostenta estrelado no verde louro do artigo 225, §1º, V a regra de que para assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado incumbe ao Poder Público: “controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”.

Obviamente que dúvida não há para aquele que lida minimamente com o Direito Constitucional Ambiental, que o “Poder Público” mencionado no §1º do artigo 225 é o Poder Executivo, Legislativo e Judiciário. Também não há dúvidas de que “controlar o emprego de técnicas métodos e substâncias que comportem risco para a vida, qualidade de vida e meio ambiente” implica dizer que há um dever jurídico fundamental de não se permitir que tais valores (vida e meio ambiente) fiquem sob uma situação de risco3. Menos complexo ainda é saber que “situação de risco” é a situação de incerteza; situação em que se encontra alguém ou alguma coisa com possibilidade de que dela derive um dano. Imagine alguém se equilibrando numa corda bamba entre um arranha céu à outro.4

E o que isso tem a ver com a pulverização aérea de agrotóxicos? Tudo, “eu” diria. Aliás, “eu não”, já que 10 entre 10 estudos científicos do mundo inteiro revelam que a pulverização aérea de agrotóxicos é extremamente impactante do meio ambiente e da vida humana em razão de um fenômeno denominado deriva técnica.5

Todos já ouviram a expressão “barco à deriva”. Pois é, barco à deriva, aeronave à deriva, vida à deriva etc. significa que algo está sem rota, sem rumo, perdido da rota normal.  A expressão deriva técnica utilizada na pulverização aérea de agrotóxico é o nome “chique” para dizer que a substância, leia-se, o veneno pulverizado, não atingiu o alvo ou não atingiu apenas o alvo e está à deriva, literalmente solto por aí.... portanto, um veneno sem rumo e prontinho para impactar pessoas e ecossistemas. Os fatores que causam essa deriva técnica são os fatores ambientais como o vento, a temperatura, a umidade do ar etc. e também fatores atribuíveis ao agente que aplica o veneno, tais como a distância do alvo, o tamanho das gotas, a velocidade da aplicação etc.

Só pra se ter uma ideia do problema, há estudos científicos6 que revelam, tal como citado no voto da Relatora, nada mais nada menos que apenas 32% do veneno fica na planta alvo e o restante migra para o solo, lençol freático, áreas vizinhas etc.

Mas, pra onde vão os agrotóxicos à deriva? E o que eles podem causar? Se você leitor tiver coragem de ler a bula de algum deles você vai se assustar7. No fundo no fundo quem está à deriva somos nós e o ambiente em que vivemos. Ainda bem que temos legisladores como o do Ceará.

Espera-se que o STF mantenha firme o leme, retire o meio ambiente e coletividade desta posição de alvo indefectível da deriva técnica do agrotóxico pulverizado por aviões, coloque a nau no rumo e que esse julgamento sirva de exemplo para que outros Estados legislem no mesmo sentido.

___________

1 https://reporterbrasil.org.br/2020/07/como-o-agronegocio-atua-para-garantir-a-pulverizacao-de-agrotoxicos-pelo-ar/

2 https://www.med.puc-rio.br/notcias/2022/6/23/brasil-lder-mundial-no-consumo-de-agrotxicos.

3 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito Ambiental esquematizado, 10ª edição. São Paulo: Saraiva. 2023; RODRIGUES, Marcelo Abelha. Proteção jurídica da flora. Salvador: Podivm. 2019.

4 O artigo 225, §1º, V permite que o poder público (Legislativo, Judiciário, Executivo) controle o emprego de técnicas como a pulverização aérea de agrotóxico quando tais técnicas coloquem à vida, a saúde e o meio ambiente em risco. Por sua vez o artigo 24, VI e VII da CF/88, sem contrariar a lei geral dos agrotóxicos (Lei n.º 7802, art. 10), dá esta competência legislativa concorrente aos Estados.

5 FERREIRA M. L. P. C. A Pulverização Aérea de Agrotóxicos no Brasil: Cenário Atual e Desafios. R. Dir. Sanit., São Paulo v.15 n.3, p. 18-45, nov. 2014/fev. 2015.; MATTHEWS et al. Status of Legislation and Regulatory Control of Public Health Pesticides in Countries Endemic with or at Risk of Major Vector- Borne Diseases. Environ Health Perspect 119:15171522. 2011.; OECD. Organisation for Economic Co-operation and Development. Report of an OECD Survey on Risk Management/Mitigation Approaches and Options Related to Agricultural Pesticide use near Residential Areas. Series on Pesticides, No.78. Paris, 22-Jul-2014; Directive 2009/128/EC of the European Parliament and of the Council. Disponível em: http://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=celex:32009L0128.;

6 CHAIM, A. Tecnologia de aplicação de agrotóxicos: fatores que afetam a eficiência e o impacto ambiental. In: SILVA, Célia Maria Maganhotto de Souza; FAY, Elisabeth Francisconi (Orgs.). Agrotóxicos & Ambiente. Brasília: Embrapa; 2004.

7chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.fmcagricola.com.br/Content/Fotos/Bula%20-%20Rubric.pdf; chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.adapar.pr.gov.br/sites/adapar/arquivos_restritos/files/documento/2020-10/glifosatonortoxwg.pdf; chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.adapar.pr.gov.br/sites/adapar/arquivos_restritos/files/documento/2020-10/cimox1020.pdf.

Marcelo Abelha Rodrigues
Mestre e doutor em Direito pela PUC/SP. Pós-doutorado em Direito Processual pela Universidade de Lisboa. Professor e sócio do escritório Cheim Jorge & Abelha Rodrigues Advogados Associados.

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