Migalhas de Peso

O ser é e não pode não ser e o não-ser não é e não pode ser de modo algum

A desconsideração da personalidade jurídica não é a responsabilidade patrimonial subsidiária

19/5/2023

O título desta exposição não é uma homenagem à música “o quê” do Titãs, mas sim à teoria de Parmênides de Eleia, um dos mais importantes representantes da "Escola Eleata" que teve forte influência no pensamento de Platão. Nitidamente a música também é uma homenagem ao filósofo grego.

A teoria desenvolvida por Parmênides tinha por eixo o conceito do “ser”. Tudo que existia tinha por essência o “ser”, e, por isso o “não ser” era o que não existia. Então, por exemplo, o que fosse fruto de uma mentira era o “não ser”, e assim explica-se a famosa frase descrita no título deste singelíssimo ensaio: o “ser” é, porque existe em essência; o “não ser”, porque não existe, “não é” e “nem pode ser” de modo algum.

O título aqui utilizado serve para dizer que a desconsideração da personalidade é uma coisa (um ser) e a teoria menor da desconsideração é, sob esta perspectiva, um “não ser”. Não se pode acomodar sob o mesmo signo duas “seres” absolutamente distintos. O fenômeno da “teoria menor” não é uma genuína desconsideração judicial da personalidade, mas apenas uma hipótese legal de “responsabilidade patrimonial subsidiária”.

Relembre-se que a proteção do crédito pode ser feita de várias formas e por meio de várias técnicas. A lei cria técnicas diretas de proteção quando não abre hipóteses para que esta proteção seja convencional ou judicial. A cláusula penal, as arras, o direito de retenção etc. são alguns dos vários exemplos de técnicas de proteção do crédito. A própria garantia comum (responsabilidade) patrimonial embutida pela lei em toda relação jurídica obrigacional, seja ela de origem negocial (art. 391 do CCB) ou extranegocial (art. 942 do CCB), constitui uma dessas técnicas de proteção. Além desta garantia comum a lei cria as hipóteses para que sejam instituídas as garantias especiais de proteção do crédito, tais como a hipoteca, o penhor etc.

Nesta linha, pode-se afirmar que a fraude contra credores, a fraude à execução, a desconsideração judicial da personalidade são técnicas de proteção corretivas da garantia patrimonial, portanto, só faz sentido pensar ou cogitar utilizá-las se o devedor tiver desfalcado ilicitamente o seu patrimônio de forma a prejudicar o credor a receber o seu crédito. Servem elas para remoção do ilícito patrimonial.

Por outro lado, aquilo que se denomina de “teoria menor” da desconsideração da personalidade nada mais é do que a previsão direta na própria lei de que determinadas pessoas (físicas ou jurídicas) sejam garantidoras de dívida alheia. Não é necessário ter qualquer ato ilícito praticado pelo devedor para que o patrimônio do terceiro garantidor deva responder, bastando apenas que o patrimônio do devedor seja insuficiente para saldar os prejuízos causados pelo seu inadimplemento.

Nesta toada, tomemos de análise o art. 4º da lei 9.605 (lei de crimes ambientais), embora existam outros dispositivos legais no nosso ordenamento que cometem o mesmo erro.

Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.

O que diz este dispositivo, claramente, é que os sócios poderão ter os seus patrimônios pessoais atingidos sempre que o patrimônio da pessoa jurídica não for suficiente saldar os prejuízos causados ao meio ambiente.

Trata-se de requisito meramente objetivo, ou seja, sendo insuficiente o patrimônio da pessoa jurídica para ressarcir os danos ambientais, passa-se ao patrimônio do responsável subsidiário. Aqui não se fala em qualquer ato ou comportamento ilícito de desfalque patrimonial creditável à pessoa jurídica (devedora), sendo o único requisito a insuficiência patrimonial para o ressarcimento integral.

A hipótese acima é típica situação de responsabilidade patrimonial subsidiária dos sócios prevista na referida lei que foi promiscuamente denominada de “desconsideração da personalidade jurídica”.

O que está nas entrelinhas do referido dispositivo é a regra de que em qualquer demanda ressarcitória ambiental cujo objetivo seja a expropriação de patrimônio da pessoa jurídica devedora, todos os seus sócios são corresponsáveis subsidiários pelo referido ressarcimento. Os sócios são “corresponsáveis” porque respondem pela dívida, mas são “subsidiários” porque possuem o benefício de ordem [o patrimônio do devedor respondem antes do patrimônio deles].

Em um exemplo simples seria a hipótese os sócios de uma pessoa jurídica serem corresponsáveis pelo ressarcimento do dano moral coletivo por ela causado, de forma que os seus patrimônios pessoais também poderão ser expropriados se a pessoa jurídica não tiver patrimônio suficiente para satisfazer o débito.

É preciso ficar atento a um aspecto muito importante e comumente ignorado: ser corresponsável por uma dívida, com ou sem benefício de ordem, não prescinde de que a expropriação judicial seja lastreada em título executivo.

A rigor, ao propor a ação civil pública ressarcitória pelo dano moral coletivo, para que possa ter título executivo contra os corresponsáveis subsidiários (sócios), é mister que o autor da demanda coloque no polo passivo da ação condenatória não apenas a pessoa jurídica, mas também todos os sócios da referida empresa. O fato de a lei dizer que são corresponsáveis subsidiários não desonera a necessidade de que sejam formados títulos executivos contra eles (sócios corresponsáveis subsidiários), na esteira do art. 513, §5º do CPC.

Art. 513:

§ 5º O cumprimento da sentença não poderá ser promovido em face do fiador, do coobrigado ou do corresponsável que não tiver participado da fase de conhecimento.

Observe que o art. 4º da lei 9.605 cria a responsabilidade patrimonial subsidiária dos sócios em relação a pessoa jurídica, mas não o inverso, ou seja, se o poluidor é a pessoa física, nenhuma sociedade da qual ele eventualmente participe será, por este dispositivo, corresponsável subsidiária.

Por outro lado, é importante que fique claro que a corresponsabilidade patrimonial subsidiária, porque se trata de instituto distinto da genuína técnica da desconsideração da personalidade, não afasta a possibilidade de que tal técnica seja utilizada sempre que os seus pressupostos materiais estejam configurados, ou seja, sempre que o poluidor/devedor tenha praticado um desfalque patrimonial ilícito para prejudicar o recebimento do crédito. Basta pensar na hipótese de o sócio (um corresponsável subsidiário nos termos do art. 4º citado acima) alienar ilicitamente o seu patrimônio para esvaziar a sua garantia patrimonial subsidiária por ter ciência de que a empresa não possuiria patrimônio suficiente e que o seu patrimônio pessoal seria atingido.

Como dito alhures existem várias técnicas de proteção do crédito e a própria responsabilidade patrimonial (garantia patrimonial comum), criada há mais de século, é uma delas. Se não existisse a garantia patrimonial comum (apelidada de responsabilidade patrimonial), todas as obrigações seriam naturais e haveria um caos na economia e no mercado: inadimplemento sem consequência.

Nesse diapasão o sistema jurídico é tão requintado que oferta – além da garantia legal comum e de tantas outras técnicas de proteção do crédito - uma série de meios/ferramentas que protegem a própria garantia (responsabilidade) patrimonial contra os ilícitos praticados pelo devedor, tal como se fosse um instrumento do instrumento. Protegem o crédito por meio da proteção da responsabilidade patrimonial. São exemplos o arresto, a fraude contra credores, a fraude à execução, a desconsideração da personalidade jurídica ou inversa. Em todas estas situações reprime-se ou previne-se do ilícito de desfalque patrimonial que no final das contas irá prejudicar o integral ressarcimento pretendido pelo credor.

Assim, caminhando para o fim, percebe-se que coisa absolutamente diversa da desconsideração da personalidade são as técnicas em que a própria lei cria as situações de corresponsabilidade onde o patrimônio de um terceiro é garantidor de uma dívida alheia. Essa corresponsabilidade independe de qualquer ilícito e tanto pode colocar o patrimônio garantidor deste “terceiro” em pé de igualdade com o patrimônio do devedor ou simplesmente fixar uma regra de subsidiariedade de que primeiro deva se esgotar o patrimônio do devedor para só depois, no caso de insuficiência, passar-se ao patrimônio do garantidor subsidiário num fenômeno que é conhecido como benefício de ordem. Não esqueçamos, contudo, que nada disso pode ser feito sem título executivo que autorize a execução forçada.

A chamada “teoria menor da desconsideração judicial da personalidade jurídica”, tal como prevista no artigo 4º da Lei 9605 citada acima, nada mais é do que hipótese de responsabilidade patrimonial subsidiária, e, por isso mesmo a demanda ressarcitória proposta contra o devedor também deve sê-lo contra o garantidor subsidiário em litisconsórcio passivo facultativo simples, pois este último só poderá ter a sua esfera patrimonial atingida se contra ele for formado um título executivo judicial (art. 513, §5º do CPC, que habilite a expropriação judicial em um cumprimento de sentença.

Por sua vez a desconsideração da personalidade, jurídica ou inversa, pressupõe a existência de um ilícito comissivo ou omissivo imputável ao devedor; ilícito este que tem por finalidade desfalcar o seu patrimônio impedindo o recebimento integral do crédito pelo credor. A técnica para se realizar a desconsideração é aquela prevista no art. 133 e ss. do CPC e uma vez decretada judicialmente a desconsideração (ineficácia do ilícito de desfalque patrimonial) o patrimônio do terceiro atingido coloca-se em posição de igualdade e solidariedade com o do patrimônio do devedor, de forma que não existe para ele qualquer benefício de ordem.

Fechando este singelíssimo ensaio com retorno a frase que o intitula a desconsideração da personalidade é técnica que não é e nem pode ser a responsabilidade patrimonial subsidiária e vice-versa. Cada qual no seu quadrado, constituem “seres” distintos e importantes, verdadeiras ferramentas de proteção do crédito que inclusive podem incidir numa mesma situação a depender das circunstâncias do caso concreto.

Marcelo Abelha Rodrigues
Mestre e doutor em Direito pela PUC/SP. Pós-doutorado em Direito Processual pela Universidade de Lisboa. Professor e sócio do escritório Cheim Jorge & Abelha Rodrigues Advogados Associados.

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