Todo mês de maio, textos e discursos louvam a Defensoria Pública. Oradores repetem que é a atividade mais nobre do sistema de justiça. Muitos contam que, caso recomeçassem a carreira, certamente seriam defensores. Quase todos lembram do início das vidas profissionais, quando “foram praticamente defensores públicos” porque advogaram pró-bono ou foram nomeados como advogados dativos. O que nunca falta é a constatação inocente de que “lamentavelmente a Defensoria Pública ainda não foi devidamente estruturada”.
São falas bem-intencionadas de pessoas que desejam sinceramente a melhoria do acesso à justiça. Mas, a conclusão fatalista reforça um problema. Parece se referir a um dado da natureza. É como se abríssemos a janela e constatássemos que “está ventando demais... parece que vem chuva... as folhas não estão verdes no outono... e a Defensoria Pública amanheceu com o menor orçamento do sistema de justiça”.
A eterna espera pela estruturação adequada da instituição que defende os necessitados não se relaciona com o destino ou com a ecologia. É fruto de uma série de decisões políticas, motivadas pela forma como quem toma as decisões vê o seu público-alvo. A história da Defensoria Pública foi, é e será sempre umbilicalmente ligada à luta contra a aporofobia, o medo, a raiva, o desprezo destinado às pessoas pobres.
O público-alvo da Defensoria Pública são os “ninguéns” de Eduardo Galeano. Aqueles que são “filhos de ninguém e donos de nada, (...) que não são seres humanos, são recursos humanos, que não têm cara, têm braços, que custam menos do que a bala que os mata”.
Essa história começa bem antes de se falar em Defensoria Pública, em Direitos Humanos ou em aporofobia. Ela nasce junto com a própria desigualdade. Desde então, a criação dos “ninguéns” alimenta e é alimentada por todas as discriminações: o racismo, o machismo, a homofobia, a xenofobia, etc. Permite as maiores crueldades e as maiores omissões. Cria chances de assunção da condição de superioridade, através da caridade. Quando o outro é inferior, ele sempre merece menos.
Até o século XVIII, a pobreza era vista como um mal inevitável, com o qual sempre precisaríamos conviver. Diante da inexorabilidade da miséria, o máximo que poderia ser destinado aos miseráveis era a compaixão. Porém, somente a compaixão sentimental, covarde, não a compaixão produtiva, emancipatória.
Se a pobreza era uma fatalidade, as primeiras medidas antipobreza não poderiam ter como objetivo acabar com ela. Se os pobres são os ninguéns, não poderiam ser eles os seus verdadeiros destinatários. O objetivo principal de qualquer política social nessas bases é a proteção dos não pobres contra as consequências externas da carência extrema: a criminalidade, a mendicância, a falta de mão de obra qualificada, ou, mais concretamente, a falta de pessoas dispostas a aceitar trabalhar o máximo em troca da remuneração mínima.
Durante o iluminismo, pela primeira vez, passou-se a defender que deveríamos tentar evitar a pobreza e não apenas conviver com ela. A Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão falou em igualdade. Mas, desde o início a igualdade teria as suas nuances. As mulheres, por exemplo, seriam iguais para ter direito à autonomia privada, mas não para a autonomia pública. Teriam direitos passivos ou direitos dentro da família, mas não teriam direitos políticos e nem poderiam atuar coletivamente contra estruturas. Aconteceria algo semelhante em relação ao acesso à justiça dos pobres e oprimidos em geral no Brasil.
O Brasil foi o último país do ocidente a abolir a escravidão nos seus domínios. As políticas para os libertos após a lei áurea foram semelhantes às do século XVI na Europa. Tinham como objetivo principal coibir e punir a vadiagem e forçar os recém-libertos a permanecer fazendo os mesmos trabalhos. Eram também medidas de proteção dos ricos.
Aqui, por mais tempo que em qualquer outro lugar, a pobreza foi oficialmente um atributo dos não sujeitos. O acesso à justiça de quem não possuísse recursos não era um direito. Sempre foi tratado como uma questão de caridade ou de proteção de interesses alheios, seja das igrejas, dos patrões ou dos proprietários das pessoas. A defesa jurídica dos interesses dos necessitados dependia da bondade ou dos cálculos patrimoniais dos outros.
Também era uma oportunidade de aprendizado. Estudantes, pessoas que iniciam as suas carreiras, ou aqueles que não conseguiram se firmar no mercado, poderiam praticar, treinar, cuidando de quem não é sujeito. Qual o melhor lugar para errar por inexperiência daquele em que não se dá importância para as consequências? Para quem mal é considerado pessoa, qualquer coisa basta e deve ser retribuída com gratidão. Já deixaram respirar, já deixaram existir... Deus lhe pague, diria Chico.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 afirmou que “todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um Tribunal Independente”. Claro que não há plena igualdade se os profissionais considerados bons somente defendem os ricos. A desigualdade sempre foi conveniente para muitos, até para o próprio Poder Judiciário, que poderia esconder a sua seletividade na alegação de que “somente as pessoas ricas podem pagar bons advogados”.
Apenas em 1988, exatos cem anos após a lei áurea, a Constituição Brasileira instituiu a obrigação do Estado manter um órgão público para dar orientação jurídica e fazer a defesa dos necessitados. No fim da ditadura militar, era imperioso falar em democracia, liberdade e direitos sociais. A ausência da defesa pública naquela época inclusive faz com que praticamente ignoremos os abusos policiais e judiciais, as torturas e prisões injustas contra as pessoas pobres. Parece que apenas artistas, estudantes e jornalistas sofreram com o regime exceção.
Na Assembleia Constituinte, houve parlamentares que defenderam um modelo de assistência jurídica através de convênios com a OAB para a remuneração de advogados dativos. Foram derrotados. O Deputado Stélio Dias, do PFL do Espírito Santo classificou aquela opção como “mero paliativo”, que não serviria ao povo, mas apenas a “profissionais, que já veem nesse tipo de atividade não só uma saída para suas eventuais dificuldades de trabalho, como também a vantagem de não estarem obrigados a concurso público e a dedicação exclusiva”, perpetuando a “anomalia vigente, em prejuízo da própria sociedade”.
Venceu o modelo público, cujos membros atuam com dedicação exclusiva e são selecionados em processos rigorosos. O texto original da Constituição foi um grande avanço. Ainda assim, falou de forma muito sucinta. Primeiro descreveu todas as outras instituições essenciais ao sistema de justiça, o Ministério Público, a Advocacia Pública e a Advocacia Privada. No final, vinha a Defensoria Pública, quase como um apêndice.
Nos debates para a elaboração da Carta, houve lobby ativo de outras instituições para que a Defensoria fosse tratada como algo menor e foi realmente esse o tratamento inicial. 10 anos após a promulgação da Carta, apenas 16 Estados a haviam implantado. São Paulo Levou quase 20 anos para fazê-lo. Goiás, Paraná e Santa Catarina quase 30. Apenas em 2019, chegou-se a 100%.
O desenho inicial da Defensoria Pública não era o que conhecemos hoje. Assim como aconteceu com o reconhecimento dos direitos das mulheres, o acesso à justiça foi vislumbrado como pertinente apenas à esfera privada. A Defensoria era limitada às ações de divórcio, alimentos, pequenas disputas de vizinhança e à regularização formal dos processos penais. No fundo, ainda prevalecia a ideia de acesso à justiça enquanto compaixão sentimental.
A defesa dos Direitos Humanos, dos direitos difusos, dos direitos coletivos, segundo o Constituinte originário, deveria ser feita apenas pelo Ministério Público. Havia uma certa lógica na opção legislativa. Se somos todos iguais, se a nação é uma só, se a lei é para todos, se o Ministério Público defende a sociedade e fiscaliza a lei, não bastaria a sua atuação para corrigir todas as injustiças? A realidade demonstrou que não, jamais bastaria. Considerar a sociedade como se fosse uma massa uniforme sempre traz como consequência a manutenção ou a ampliação das diferenças. Na justiça não é diferente.
Todo o sistema de justiça é composto por pessoas que nasceram nas classes média e alta, vivem nas classes média e alta, confraternizam com pessoas das classes média e alta, educam os filhos em escolas de classes média e alta, convivem com os problemas das classes média e alta e adquirem os valores das classes média e alta. Praticamente, o único contato direto profissional com as pessoas pobres se dá nos processos penais, em que elas são as rés.
O MP se mostrou muito mais eficiente para identificar e sustentar demandas coletivas de interesse das classes média e alta do que as de interesses das pessoas pobres. As primeiras eram vivenciadas pelos seus membros. As segundas dependiam muitas vezes da mídia para serem descobertas. Por outro lado, paulatinamente, o Parquet priorizou a identidade institucional de órgão ligado à segurança pública ou ao combate à corrupção, que atingiria o ápice com a apropriação de uma operação policial, a Lava-Jato.
A partir de 2003, o combate à pobreza e a redução das desigualdades ganharam uma centralidade inédita no país. Exatamente nesse momento, iniciou-se um movimento de reestruturação e fortalecimento da Defensoria Pública. Ela atendia diretamente milhares de pessoas pobres todos os dias. A antiga ideia de dicotomia entre direitos individuais e coletivos perdia o sentido. A repetição de demandas individuais levava à natural identificação de problemas estruturais. Os problemas não precisavam ter passado na Televisão. Chegavam silenciosamente nas longas filas de atendimento.
De outra parte, todas as violações de Direitos Humanos se dirigem com mais força ou com exclusividade aos pobres. Por ser a instituição do sistema de justiça mais próxima deles, aos poucos, a Defensoria tornou-se a também aquela que mais se destacava na defesa dos Direitos Humanos.
Para completar, a posição de defesa, ao contrário da de acusar, julgar, ou fiscalizar, conduz à aproximação, à tentativa de compreensão do ponto de vista, da história, da cultura e dos valores da pessoa assistida. Defender é um ato de solidariedade. Próxima da população pobre e das organizações civis de direitos humanos, a Defensoria se tornou a instituição mais propícia à abertura para participação social. Até hoje é a única instituição do Sistema de Justiça que possui como membro nato no seu Conselho Superior um representante da sociedade civil, escolhido com participação popular entre pessoas de fora da Defensoria: o ouvidor-externo.
O período que vai de 2003 à metade de 2014 foi a “década de ouro”. A Defensoria tornou-se autônoma, para poder defender direitos individuais e coletivos também contra o Estado. Começou a ser lembrada expressamente nos Códigos de Processo e em outras normas. Em junho de 2014, no que até agora foi o ápice deste processo, foi promulgada a Emenda Constitucional 80.
A Defensoria Pública ganhou o status de “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado e, mais importante, “expressão e instrumento do regime democrático”. A Constituição brasileira definiu que a Defensoria Pública é um espelho. Para saber a intensidade do respeito de qualquer governo pela democracia, devemos olhar como ele trata a Defensoria. Foi fixado o prazo de 8 (oito) anos para a União, os Estados e o Distrito Federal contarem com defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais.
Nessa fase, além das mudanças normativas, o número de Defensores Públicos praticamente dobrou (foi de 3.190 a 6.062). Em todo o país, suas remunerações e orçamentos deram um salto. Parecia que a história seguiria uma linha reta, mas logo se viu que não seria fácil assim. Do mesmo modo como acontece com a população em situação de pobreza, os avanços e conquistas da Defensoria precisam ser reconquistados repetidamente, pois o atraso não cansa de querer voltar.
O chamado período de ouro foi condicionado pela estrutura. Recebeu o impulso da centralidade adotada para políticas de combate à pobreza e de prevalência dos Direitos Humanos. Não é coincidência que a Defensoria Pública tenha começado a crescer intensamente, exatamente quando o Brasil saía do mapa da fome, firmavam-se as políticas de cotas raciais, o SUS era expandido, combatia-se a LGBTfobia, etc.
A Defensoria Pública não foi parte desse processo por causa da “simetria constitucional com outras carreiras”, da ideia de “tripé do sistema de justiça” ou de quaisquer princípios abstratos. Conquistou o espaço por estar próxima, inclusive fisicamente, da população mais pobre. Fortaleceu-se quando o acesso à justiça foi visto pela ótica da compaixão emancipatória e quando ela se apresentou como instrumento de emancipação.
A proximidade com os necessitados legitima a Defensoria, mas também é a origem das suas maiores dificuldades. A instituição herdou o tratamento destinado aos pobres, herdou o ódio que eles suscitam ao se destacar e ameaçar mudar as coisas. Quando não havia nenhuma perspectiva concreta de que ela se fortalecesse, era de bom tom falar que se torcia por isso. Mas, a partir do momento em que esse fortalecimento começa a parecer real, começa também a resistência. Para complicar, na história da Defensoria Pública, esse momento coincidiu com uma mudança estrutural no cenário social.
Quando a reação contra o avanço dos direitos humanos cresceu e pessoas voltaram a ser orgulhosamente machistas e racistas, era a Defensoria quem acompanhava os grupos antes silenciados na justiça. Quando as políticas de inclusão social e o próprio serviço público começaram a ser demonizados, a Defensoria havia assumido o protagonismo na defesa judicial do acesso à saúde, à educação e à terra. Quando a louvação do Estado policialesco saiu do armário, a Defensoria Pública brasileira estava nos estabelecimentos penais e nas casas de internação de adolescentes.
Algumas pessoas que diziam atuar em favor de pessoas, grupos ou categorias oprimidas começaram a atacar a Defensoria. Era uma proteção de mercado. De repente, as mães pobres não precisavam vender as casas e tudo que possuíam para pagar por um habeas corpus para os filhos, por exemplo. Ao mesmo tempo, restringiam-se as oportunidades de agentes que “ajudavam” comunidades a se organizar em cooperativas, cobrando como preço virar o dono delas. Com a Defensoria, pessoas pobres não precisavam virar mão de obra barata e desprotegida pela legislação trabalhista para o antigo suposto benfeitor.
Aonde a Defensoria chegava, os pobres começavam a se aproximar da ideia de justiça com igualdade, conforme a Declaração Universal de Direitos Humanos. A defesa tinha qualidade e era prestada efetivamente no interesse deles. O órgão que até então era simpático, nobre e, principalmente, inofensivo começou a incomodar. Tornou-se comum ouvir queixas como “Ninguém nunca reclamou disso e a Defensoria está criando problemas!” “Outras instituições não falaram nada sobre esse caso, porque a Defensoria começou a falar?”
O ritmo de crescimento, que parecia inexorável, diminuiu. Em 2022, os Estados e a União investiram quase 117 bilhões no Poder Judiciário, 28 no Ministério Público, e apenas 7 na Defensoria. Mais de 8 anos após a determinação de lotação da Defensores em todas as Comarcas, apenas 11 Estados cumpriram esse objetivo. Menos da metade das comarcas são atendidas no âmbito estadual e menos de 1/3 no âmbito federal.
Uma série de vitórias da Defensoria no Supremo Tribunal Federal em todas as muitas ofensivas que a Defensoria recebeu foi interrompida por uma lamentável decisão autorizando a criação de serviços de assistência jurídica municipal. Voltaram a aparecer propostas legislativas de imposição de convênios com a OAB, exatamente nos moldes rechaçados pelo constituinte e considerado já em 1987 como a “perpetuação da anomalia vigente em prejuízo da sociedade”.
A justificativa é sempre o fato de que “lamentavelmente, a Defensoria Pública ainda não foi devidamente estruturada”. Em geral, fala-se que não são ataques ao modelo constitucional, mas apenas “paliativos temporário”. Entretanto, nenhuma proposta de lei sobre convênios de advocacia dativa jamais incluiu a obrigação de aumento escalonado do orçamento da Defensoria Pública, com destinação vinculada a acabar com o déficit de defensores. Que “paliativo” é esse que não almeja a solução do problema?
Alguns atores nem disfarçam e partem para o ataque direto: “está provado que a Defensoria não consegue atender a todos”, ou “o Estado tem condições de bancar a instituição”. Não importa se o Estado investe 4 vezes mais no Ministério Público e 16 vezes mais no judiciário ou se há quase 13.000 promotores e 17.000 juízes no país contra apenas cerca de 7.000 defensores. Oculta-se a face política, porque talvez a aporofobia é que seja um fato da natureza.
Diante de eventual ausência de juízes, seria razoável a realização de um convênio para que advogados com dificuldade de se firmar no mercado de trabalho realizassem a função judicante? Evidente que não. Na eventual carência de promotores, isso seria aceito? Também não. Algum Governador pensaria em propor uma lei para que advogados iniciantes, em vez de procuradores concursados, fizessem a defesa do Estado? Nunca. Alguma pessoa com boas condições financeiras, aceitaria que a defesa dos seus interesses se desse nessas condições? Menos ainda.
Não se cogita algo semelhante à oficialização da advocacia dativa para nenhuma atividade essencial ao sistema de justiça, exceto a da Defensoria Pública. O motivo real, por trás de todas as cortinas é que os seus assistidos “são quase todos pretos, ou quase pretos, ou quase brancos, quase pretos de tão pobres e pobres são como podres”. O máximo que se faz pelo Haiti é ouvir Caetano e fingir que se reza por ele. Esse tema retornou após mais de 34 anos da Carta Magna, porque ela ainda não foi capaz de extirpar o ódio e o desprezo contra os ninguéns. “Quando o outro é inferior, ele sempre merece menos”.
Apesar de tudo, os últimos anos foram um período bastante exitoso para a Defensoria Pública. Antes se dizia que os Tribunais Superiores eram exclusividade de pessoas com recursos financeiros suficientes para contratar os chamados “bons advogados”. Hoje, mais da metade dos recursos apresentados nestas cortes são oriundos da Defensoria Pública. Mais ainda: as pessoas pobres, representadas pela Defensoria Pública, têm obtido um percentual de êxito maior do que as pessoas representadas por advogados. Definitivamente, a Defensoria transformou o STF e o STJ em rodoviárias.
As Defensorias Públicas do Brasil trabalham com um volume de pessoas muito grande. Desse modo, têm um grande potencial de produção de dados, identificação de gargalos judiciais ou de mazelas sociais e, logo, proposição de políticas públicas. Os políticos que entenderem a defensoria como fonte de programas ou ações de governo estarão um passo à frente dos adversários.
A Defensoria Pública ampliou a sua capacidade de organização para atuar de forma coordenada enquanto instituição e em conjunto com as suas ouvidorias e a sociedade civil. Assim ampliou a voz de quem não conseguia ser ouvido. Esteve presente na ADPF das Favelas no Rio de Janeiro, na resposta ao racismo do Carrefour no Rio Grande do Sul e na vacinação de quilombolas no Piauí. Somente o modelo institucionalizado permite a atuação estratégica, apenas ele permite a busca de resolução extrajudicial, afinal o defensor não é remunerado por processos.
Um bom exemplo da conjugação desses fatores, ocorreu durante as eleições de 2022. A Defensoria baiana trabalhou de forma planejada junto às prefeituras e ao judiciário de todas as comarcas onde estava presente para buscar a gratuidade do transporte público. A atuação coordenada incluía a busca da resolução amigável e a possibilidade de judicialização. Em 46% destas comarcas, a gratuidade foi assegurada sem sequer ser necessário um processo. Em 22%, o direito foi assegurado por decisões judiciais de 1ª ou 2ª instância. Mais de 6 milhões de baianos tiveram ônibus liberados. Logo no dia em que tentaram impedir os nordestinos pobres de votar, a democracia chegou de “buzu”, com a Defensoria.
Consolidou-se o entendimento de que somente uma instituição devidamente estruturada e organizada pode atingir o verdadeiro potencial emancipatório da assistência jurídica gratuita. A visibilidade e a credibilidade cresceram. Veículos de imprensa começaram a chamar defensores para falar sobre temas variados com muita frequência. Uma pesquisa da FGV apontou a Defensoria Pública como instituição melhor avaliada no Sistema de Justiça. Pesquisas do CNMP chegaram às mesmas conclusões.
Um fruto da aproximação com a sociedade, do aumento da credibilidade e da produção de dados foi colhido no julgamento das ações em que o Procurador Geral da República, inexplicavelmente, pediu a proibição de que defensores requisitassem informações para instruir as demandas. Se o pleito da PGR fosse contemplado, a Defensoria não poderia, por exemplo, checar a existência de um determinado medicamento para os pobres. Ela mostrou com números, qual seriam as consequências para a população e para o judiciário. A sociedade se mobilizou. A imprensa denunciou. No fim, os necessitados, que precisam da Defensoria Pública, venceram.
Em 2023, a Defensoria Pública está diante de um dos seus momentos mais decisivos. O contexto nacional voltou a unir as condições que possibilitaram o seu surgimento, a sua remodelação e os seus picos de crescimento. Assim como no pós- ditadura militar, o país vive um clima de exaltação da democracia, da participação popular e da luta contra as discriminações. Do mesmo modo que ocorreu em 2003, aparentemente, a prioridade nas políticas governamentais voltou a ser a erradicação da pobreza. Não por acaso, foi criada no Ministério da Justiça uma Secretaria Nacional de Acesso à Justiça.
Porém, nada está garantido. Haverá algum programa nacional para estímulo ao cumprimento da Emenda 80 e a chegada a do acesso à justiça a todas as comarcas? Será finalmente criado o Conselho Nacional da Defensoria Pública para coordenar a instituição nacionalmente? Não sabemos. Há pelo menos um indício preocupante. Enquanto escrevo este texto, a Defensoria Pública da União é gerida por um interino, porque o Governo Federal simplesmente não indicou o Defensor Público Geral, após mais de 4 meses, o que sugere grave descaso.
Algo também mudou dentro da Defensoria. Embora a sua estrutura esteja longe da ideal e, em geral, a carreira seja menos valorizada que outras, não dá mais para dizer que os orçamentos ou remunerações são insignificantes. Ninguém mais terá pena ou condescendência em relação à Defensoria Pública ou aos Defensores. Ela está no estágio em que desperta incômodo e não piedade. Em resumo, ela será cobrada.
A responsabilidade da Defensoria Pública no processo é muito maior que foi em 1988, quando a era quase inexistente ou em 2003, quando ainda não tinha qualquer independência. Defensores Públicos precisam ter consciência que a tolerância com os seus erros sempre será menor, assim como acontece com a tolerância aos erros dos seus assistidos. O pobre condenado criminalmente tem a vida eternamente destruída. O rico escreve livros “contando a verdade” e volta ao círculo social. Funciona assim também entre as instituições.
Lembre-se do famoso auxílio-moradia, considerado um escárnio pela sociedade, mas pago a todos os juízes e promotores por vários anos. O Conselho Superior da DPU tentou instituí-lo, mas nunca chegou a pagá-lo. Mesmo assim, até hoje, sempre que um ministro do STF se posiciona contrariamente à Defensoria, a tentativa é lembrada. Ela foi suficiente para um deles votar contra a autonomia da instituição, por constituir “prova” de que, para os defensores, autonomia era sinônimo de corporativismo. O Judiciário e o MP, nos quais a indenização saiu efetivamente do papel e somente deixou de ser paga em troca de aumentos equivalentes nos subsídios, nunca tiveram suas autonomias questionadas.
A cobrança sobre os defensores sempre será maior, logo a sua margem de erro será sempre menor. O Defensor Público deve lutar por subsídio equivalente ao das outras carreiras, porque o seu trabalho é tão importante quanto o delas. Mas, não pode copiar o que todos sabem ser errado.
Defensores públicos precisam urgentemente se libertar das comparações com os membros das outras carreiras. A instituição avança quando não quer ser mais do mesmo. Ela surgiu para trazer perspectivas novas. Ninguém quer um novo Ministério Público. Todos esperam a Defensoria Pública fazendo o seu trabalho em todas as comarcas. Defensor é valioso porque é defensor, ponto.
Ainda assim, até para evitar repetição de erros alheios, é preciso ter a consciência de que Defensor Público não é superior a ninguém. Não é mais generoso, nem mais piedoso que ninguém, seja advogado, juiz ou promotor. Não exerce sacerdócio ou caridade. Não é bonzinho, nem herói. Não é nobre. Passar em um concurso não é uma façanha. Não transforma ninguém em sábio. Acreditar-se superior é o primeiro passo para se achar merecedor de privilégios e para confundir a democracia com uma relação de consumo, na qual é o cliente que exige a satisfação de todas as vontades. Essa confusão pode ser fatal, porque distorce a noção da autonomia institucional.
A autonomia é antes de tudo uma demonstração de confiança. O constituinte deu aos defensores a possibilidade de gerirem a si mesmos. É uma grande responsabilidade, que não existia em 1988 ou em 2003. Gerir os seus recursos de acordo com o interesse público e não o interesse corporativo é dever da Defensoria, dos defensores gerais, dos corregedores, dos conselheiros e de todos os defensores. Ao mesmo tempo que se cobra orçamento, é necessário demonstrar que os recursos são geridos com probidade. É preciso provar que a prioridade da instituição é o seu público-alvo.
A Defensoria Pública precisa de recursos para chegar a todas as comarcas e para isso depende dos poderes da república. Mas, a primeira responsável por promover esta expansão é ela mesma. Cabe a todos que trabalham na instituição lutar por isso. Toda defensoria precisa de um plano de expansão. Quanto mais rápido os vazios deixarem de existir, mais notória será a imprescindibilidade da instituição. A abertura de novas vagas precisa ser feita sempre com a Emenda Constitucional 80 embaixo do braço.
Percebe-se como é difícil para uma instituição que defende os pobres, rodeada de aporofobia por todos os lados, se firmar. Para aumentar o desafio, a Defensoria é extremamente jovem. 55% dos Defensores Públicos possuem menos de 40 anos. 50% deles, menos de 10 anos de carreira. Essa característica inevitável para uma instituição nova ajuda a renovar os ares, mas traz um obstáculo imenso: a inexperiência. Inexperiência e imaturidade são combustíveis para ingenuidade, mas também para arrogância, vaidade e desprezo pelo acúmulo construído por outros. As tentações para o cargo subir à cabeça são grandes. Assim como faz com os assistidos da Defensoria, a vida exige que defensores amadureçam mais rápido que os outros.
Defensores não podem esquecer de onde veio a sua força. A Defensoria Pública somente cresce se estiver presente, em contato com a população. Em tempos de fetiche por tecnologias e por trabalho remoto, é necessário ressaltar: o contato olho no olho sempre foi o diferencial da instituição e não pode ser substituído por telas de computador ou celular.
Qualquer opção por trabalho remoto deve atender o interesse e conforto dos assistidos, não a comodidade dos defensores. Nem todos possuem telefones ou acesso à internet. Nos anos em que, por necessidade sanitária vigorou o trabalho à distância (20/21), a quantidade de pessoas atendidas pela Defensoria Pública caiu em relação a 2019, último ano pré-pandemia.
Defensores lutam por audiências de custódia porque a presença física humaniza os réus e ajuda no processo de empatia dos magistrados. Mas, eles também necessitam do contato com os assistidos pelo mesmo motivo, afinal não são melhores que ninguém. Vivem na classe média, como os magistrados. 54% deles vieram de famílias com renda superior a 10 salários-mínimos. Menos de 3% vieram de famílias que constituem o público-alvo da instituição. Se a Defensoria se afastar das pessoas, perderá o seu diferencial. Perdendo o traço distintivo, não sobrará nada.
A abertura para o contato não se restringe aos atendimentos. É necessário ser receptivo à participação popular na construção da instituição. É necessário valorizar as ouvidorias externas, abrir (e respeitar) espaços como conferências de orçamento participativo e posse popular. Dificilmente haverá um Conselho Nacional da defensoria Pública com a composição fechada em si mesma, como ocorre no CNJ e no CNMP.
Mas, a relação com a sociedade é uma via de mão dupla. Movimentos sociais não aceitarão ser usados como mera massa de manobra para fins corporativos. A Defensoria deve estar, sinceramente, ao lado do povo. Nunca tutelando e não apenas ajudando, mas pedindo ajuda para aprender e saber como construir.
Por fim, um dos aspectos que fazem a Defensoria Pública se destacar é a capacidade de atuar como instituição. Assim como liberdade de expressão não significa a liberdade para ofender ou mentir, a independência funcional dos defensores não significa que eles podem desrespeitar os princípios, os objetivos e a estratégias institucionais. Eles precisam ajudar na coleta de dados e na identificação das demandas. Especialmente na atuação coletiva, o erro cometido por um defensor, pode prejudicar a população e a Defensoria Pública de todo o país.
Talvez, os últimos parágrafos tenham soado duros para os defensores. Mas, não se trata de uma bronca. É um apelo de quem está cansado de ver a insistência do passado e do retrocesso em retornar. É uma súplica de quem não quer ver uma instituição tão fundamental dar armas para os seus inimigos. Martin Luther King Jr., no seu mais famoso discurso alertou aos seus companheiros que “no processo de recebermos nosso direito, não devemos ser culpados por ações errôneas. Não busquemos satisfazer nossa sede por liberdade, bebendo da taça do ódio. Nós devemos conduzir a nossa luta eternamente no alto plano da dignidade e da disciplina.”
A história da Defensoria Pública é muito semelhante à dos Direitos Humanos. Como Luther King, eu também tenho um sonho. Sonho com o dia em que nenhum brasileiro seja vítima de qualquer injustiça por não possuir dinheiro para contratar um advogado. Por isso, peço para quem se importa realmente com a dignidade das pessoas em situação de pobreza, que pare de lamentar porque a Defensoria ainda não foi estruturada. Ajude a estruturá-la. Enfrente a aporofobia!
Aos defensores, imploro que não sejam ingênuos e, parafraseando Gilberto Gil, para que entendam: Na Defensoria “quem tem coragem pra suportar, tem que viver pra ter coragem pra suportar e somente plantar coragem pra suportar e somente colher coragem pra suportar e mesmo quem não tem coragem pra suportar tem que arranjar também coragem pra suportar ou então vai embora, vai pra longe e deixa tudo”. Coragem, meus amigos!