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Gotas dos novos decretos: breve análise da prestação isolada no âmbito da regionalização e a adequação ao modelo desejado

Destruir o que funciona bem para melhorar o todo não parece ser o caminho mais inteligente para universalização. Ter mais prudência e respeito às opiniões diversas, com menos vontade de ter razão, parece auxiliar mais para a universalização dos serviços.

18/5/2023

A onda de novas discussões sobre uma imensa reviravolta no saneamento em razão dos decretos editados pelo Presidente da República no último dia 05 de abril revela a triste realidade de que a imensa polarização política e social também se entranhou no saneamento.

Há anos discute-se o desequilíbrio de forças, receitas e poderes dos entes federativos que compõem a República Federativa do Brasil, inclusive com discursos calorosos e embates públicos e um slogan já usado que resume, talvez, um pouco do que deveria ser o funcionamento do pacto federativo: "menos Brasília e mais Brasil".

Ocorre que no Saneamento Básico, tipicamente de interesse local ou, em razão do fenômeno da conurbação advindo com o crescimento populacional ou da própria implementação de Funções Públicas de Interesse Comum, regional/estadual, cabe à União, ou seja, Brasília, unicamente estabelecer as diretrizes, conforme o já decorado art. 21, XX da Constituição.

De forma alguma tentar-se-á defender que não havia, ou que ainda não há, necessidade de inúmeros ajustes e melhorias na regulamentação, na organização e na prestação dos serviços públicos de saneamento.

O que chamamos a atenção, por observar certo excesso de destempero ou questionamentos, é a continuação de embates de narrativas vinculadas a modelos prontos e herméticos como se somente uma solução existisse, de forma a conseguir convencer sobre que tem razão e não sobre como o real problema será efetivamente solucionado.

Mas qual problema?

Ora os milhões de brasileiros ainda sem água e esgoto, que certamente pouco estão preocupados se há contrato de concessão, de programa, PPP ou prestação direta, desde que tenha água nos padrões de potabilidade e esgoto coletado e tratado adequadamente, por um preço justo.

Além disso, tratamos, nesta oportunidade de distribuição de água potável e coleta e tratamento de esgoto, porque embora a falta de drenagem venha ceifando vidas e estruturas ano após ano, não parece atrair a atenção de políticos, especialistas e grande mídia para modelos de negócios que possam ser implementados para as melhorias necessárias. No caso de resíduos, embora haja mais discussões, também não se vêem calorosos discursos ou ímpeto de buscar a implementação imediata de modelos concessionados.

Continuar enxergando o saneamento como um serviço que pode ser organizado e gerido sob a batuta da União é um erro quase primário.

O mesmo remédio pode não funcionar para doenças diferentes e repetir exaustivamente que, assim como na desestabilização dos serviços de energia elétrica e de telecomunicações, o saneamento precisa daquela mesma receita é fingir que a União é titular de um serviço que não lhe pertence.

E no limite do que pertence à União, inobstante haja sempre quem entenda que a depender do tamanho do enforcement utilizado há violação às autonomias locais, a lei reservou o poder do dinheiro.

O protagonismo da União enquanto financiadora de projetos de saneamento é mais que conhecido e remonta a modelo que produziu o PLANASA e atualmente um tratamento especial conforme o artigo 50, inserido pela lei Federal  14.026/20.

Em resumo claro: A União e suas entidades financeiras só alocam recursos, inclusive financiamentos, onde houver aderência à política pública definida pelo Governo.

E não é segredo para ninguém a posição de destaque dos Bancos federais no financiamento do Saneamento, especialmente BNDES, Caixa Econômica Federal e Banco do Nordeste.

O apoio, porém, depende, por óbvio, de regulamentação como expressamente previsto na legislação.

E em cumprimento estrito a essa previsão do artigo 50 da LNSB e também do art. 13 da lei Federal 14.026/20 que a União regulamentou tais repasses.

Primeiro, no Governo Bolsonaro por meio dos decretos Federais 10.588/20 e 11.030/22. Agora, sob o Governo Lula, por meio do decreto Federal 11.467/23.

Há uma claríssima distinção entre as políticas de governo refletidas licitamente em regulamentações diferentes do mesmo assunto.

Façamos um exercício a partir de uma previsão que, embora seja estritamente alinhada ao respeito da autonomia dos entes federativos locais e regionais, vem sofrendo ataques não razoáveis: a possibilidade de destinar recursos financiados a operações isoladas, ainda que se trate de Município componente de uma estrutura de regionalização devidamente estruturada.

Isso porque no Projeto de decreto Legislativo 111/23, de autoria do Dep. Fernando Monteiro se volta a sustar, inclusive, os parágrafos do artigo 6º do decreto Federal 11.467/23 que reconhecem a possibilidade de prestadores distintos dentro da mesma estrutura ou mesmo a prestação direta isolada:

§ 13.  A prestação integrada a que se refere o caput pressupõe uniformização da regulação e da fiscalização e a compatibilidade de planejamento entre os titulares, com vistas à universalização dos serviços, admitida a existência de prestadores distintos dentro da mesma estrutura, a critério da respectiva entidade de governança, e garantida segurança jurídica aos contratos vigentes e às situações de prestação direta pelos Municípios que a integram.

§ 14.  A prestação direta dos serviços em determinado Município da estrutura de prestação regionalizada por entidade que integre a administração do próprio Município poderá ser autorizada pela entidade de governança interfederativa, condicionada à comprovação de efetivo cumprimento do disposto no art. 9º da lei 11.445, de 2007, em especial a definição da entidade responsável pela regulação e fiscalização que atestará o cumprimento das demais condicionantes.

Ao justificar a proposta que susta os parágrafos 13 a 17, o Exmo. Deputado, entre outras justificativas afirma que:

“O conceito de prestação regionalizada da lei 11.445/07 pressupõe intrinsecamente a regionalização da prestação do serviço em si, e não somente uma estrutura regionalizada com prestações isoladas dentro dela.

Não poderia ser de outra forma, pois um dos fundamentos basilares da prestação regionalizada é a obtenção de ganhos de escala, o que só é possível se a prestação em si abranger todos os municípios que integram a entidade regionalizada.

Tanto é assim que a própria lei 11.445/07 prevê, em seu art. 8º-A, que é facultativa a adesão dos titulares dos serviços de interesse local às estruturas das formas de prestação regionalizada. Ou seja, não faz qualquer sentido a adesão a uma estrutura regionalizada se a prestação em si permanece isolada, por interesse local do titular.”

Um primeiro ponto que causa perplexidade é que, embora não haja dúvidas que a prestação regionalizada esteja inserida dentre os princípios fundamentais, já que consta expressamente do artigo 2º, XIV da LNSB, o conceito defendido no projeto de Decreto Legislativo aproximar-se-ia daquele que foi expressamente revogado quando da aprovação da lei Federal 14.026/20, ou seja da redação original do artigo 14,II da lei 11.445/07:

Art. 14.  A prestação regionalizada de serviços públicos de saneamento básico é caracterizada por: (Revogado pela lei 14.026, de 2020)

I - um único prestador do serviço para vários Municípios, contíguos ou não; (Revogado pela lei 14.026, de 2020)

O que o Governo atual fez foi preservar as autonomias locais e regionais, de forma que os modelos de prestação que respeitem os princípios gerais sejam desenvolvidos, ainda que isso permita, ou até exija, a existência ou continuidade de operações isoladas.

Essa tônica democrática e extremamente adequada ao pacto federativo faz parte, inclusive, de diversos modelos de regionalização por meio de Microrregiões, preservando de maneira clara a autonomia possível dos entes federados, conciliando os interesses mútuos de forma a permitir a prestação isolada, desde que viável e sem prejuízo à universalização. Vejamos alguns exemplos:

Lei Complementar 455/21 – Pernambuco1:

Art. 7º São atribuições do Colegiado Microrregional:

(...)

VII - autorizar Município a prestar isoladamente os serviços públicos de abastecimento de água ou de esgotamento sanitário, ou atividades deles integrantes, inclusive mediante a criação de órgão ou entidade, contrato de concessão ou ajuste vinculado à gestão associada de serviços públicos;

(...)

§ 5º Não se concederá a autorização prevista no inciso VII do caput no caso de projetos que:

(...)

III - cujo modelo contratual seja considerado prejudicial à modicidade tarifária ou à universalização de acesso aos serviços públicos de abastecimento de água e de esgotamento sanitário.

Lei Complementar 968/212 – ES

Art. 13. São atribuições do Colegiado Regional:

(...)

VII - autorizar a prestação direta ou indireta/delegada de serviços públicos de abastecimento de água e de esgotamento sanitário, ou atividades deles integrantes, desde que comprovada a viabilidade técnica e econômico-financeira dos serviços para o próprio município, sem eliminar a viabilidade do restante da Microrregião, nem prejudicar a modicidade tarifária e a universalização dos serviços públicos;

Lei Complementar 168/213- PB

Art. 7° São atribuições do Colegiado Microrregional:

(...)

VII - autorizar Município a prestar isoladamente os serviços públicos de abastecimento de água ou de esgotamento sanitário, ou atividades deles integrantes, inclusive mediante criação de órgão ou entidade ou a celebração de contrato de concessão ou de ajuste vinculado à gestão associada de serviços públicos;

(...)

§ 5° Não se concederá a autorização prevista no inciso VII do caput no caso de projetos que:

(...)

III - cujo modelo contratual seja considerado prejudicial à modicidade tarifária ou à universalização de acesso aos serviços públicos de abastecimento de água e de esgotamento sanitário.

Lei Complementar 237/21- PR

Art. 9º São atribuições do Colegiado Microrregional:

VII - autorizar Município a prestar isoladamente os serviços públicos de abastecimento de água ou de esgotamento sanitário, ou atividades deles integrantes, inclusive mediante a criação de órgão ou entidade, contrato de concessão ou ajuste vinculado à gestão associada de serviços públicos

(...)

§ 5º Não se concederá a autorização prevista no inciso VII do caput deste artigo, no caso de projetos que:

(...)

III - cujo modelo contratual seja considerado prejudicial à modicidade tarifária ou à universalização de acesso aos serviços públicos de abastecimento de água e de esgotamento sanitário.

Por outro lado, em rápida consulta ao site da Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto - Abcon-Sindcon5, é possível verificar concessões plenas isoladas em municípios relevantes, cujos prazos de concessão são razoavelmente longos. Abaixo uma pequena amostra:

Também se pode perceber que no Estado de São Paulo, nem mesmo na Unidade Regional de Água e Esgoto – URAE 1 - Sudeste, onde atua a gigante e reconhecida Sabesp, teria havido a adesão integral dos Municípios6, sendo que, daqueles que aderiam, outros seis não haviam formalizado anuência aos aditivos para incorporação de metas no prazo originalmente estabelecido pelo decreto Federal 10.710/217.

Ou seja, no suposto intuito de resolver o complexo problema da universalização, há movimentos claramente voltados a unicamente buscar “ter a razão” nos contínuos e intermináveis debates jurídicos, políticos e ideológicos estabelecidos no setor, independentemente dos resultados que isso possa vir a gerar aos usuários e às prestações que necessitem de recursos de financiamentos de entidades federais.

Entender da forma explicitada no PDL e sustar os efeitos do Decreto do Presidente da República, ou mesmo uma suspensão pelo STF no âmbito da ADPF 1055 teria, neste particular, o condão de forçar operações lícitas e aparentemente adequadas a serem encerradas antecipadamente de forma desnecessária para que haja uma nova licitação regionalizada ou serem alijadas de qualquer acesso a recursos federais inclusive e especialmente os financiados.

Além de não parecer razoável, porque é uma solução pronta não vinculada a qualquer estudo específico que demonstre inviabilidade ou desrespeito aos princípios constitucionais e da própria LSNB, parece ser uma afronta direta à autonomia dos Municípios e Estados e ainda ao ato jurídico perfeito de prestadores que mantém contratos de concessão isolados ou mesmo de programa em parte da região, ainda que se garanta a eles as indenizações decorrentes da encampação que seria necessária.

O cidadão usuário não parece se beneficiar dessa solução, pois os recursos para tais indenizações sairão ou do caixa formado pelos tributos ou das tarifas do novo prestador obrigado a indenizar os anteriores8.

Licitações realizadas ou em estruturação sob o manto do Novo Marco como Crato-CE9 (Integrante da Microrregião de Água e Esgoto do Centro-Sul – lei Complementar CE 247/21), São Simão - GO10 (ainda não regionalizado) e Porto Alegre11 (integrante da Unidade Regional de Serviços de Saneamento Básico 2  - URSB 2 – lei Estadual 15.795/22) deveriam, então, ficar sem acesso a recursos de financiamentos federais?

Da mesma forma deveria a Sabesp, que atuaria em região em que determinados municípios não aderiram e outros não aceitaram regularizar seus contratos, ser impedida de acessar recursos federais, já que há municípios não aderentes no âmbito da estrutura de regionalização formada?

Cremos, por óbvio, que não. Não se pode admitir que a solução para o saneamento está centralizada em Brasília somente, e não espalhada pelo continental país que é o Brasil, e que para melhorar o cenário há que se destruir ou inviabilizar o que funciona e não buscar as medidas para solucionar o que não funciona.

Para ter uma noção de parte do que funciona basta olhar as dez primeiras cidades do ranking recentemente divulgado pelo Instituto Trata Brasil  em que oito tem serviços geridos por prestadores públicos, sendo cinco cidades atendidas por companhias estaduais e outras três por prestadores municipais isolados13.

Destruir o que funciona bem para melhorar o todo não parece ser o caminho mais inteligente para universalização. Ter mais prudência e respeito às opiniões diversas, com menos vontade de ter razão, parece auxiliar mais para a universalização dos serviços.

Assim talvez, embora acabemos não tendo a razão que pensávamos, consigamos cumprir a meta que a população exige: ter água potável e esgoto tratado.

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1 https://legis.alepe.pe.gov.br/texto.aspx?tiponorma=2&numero=455&complemento=0&ano=2021&tipo=&url=. Acesso em 14/04/2023

2 https://www3.al.es.gov.br/Arquivo/Documents/legislacao/html/LEC9682021.html#:~:text=LEC9682021&text=Art.,sua%20respectiva%20estrutura%20de%20governan%C3%A7a. Acesso em 14/04/2023

3 https://paraiba.pb.gov.br/diretas/secretaria-de-infraestrutura-e-dos-recursos-hidricos/arquivos/LEICOMPLEMENTAR1682021MICRORREGIOESPARAIBA.pdf Acesso em 14/04/2023

4 http://portal.assembleia.pr.leg.br/modules/mod_legislativo_arquivo/mod_legislativo_arquivo.php?leiCod=56555&tipo=L&tplei=0 Acesso em 14/04/2023

5 https://abconsindcon.com.br/panorama/capitulo-7-quadro-de-concessoes. Acesso em 14/04/2023. 

6 https://www.aguaesaneamento.org.br/baixa-adesao-dos-municipios-reforca-fragilidades-do-processo-de-regionalizacao-do-estado-de-sao-paulo/. Acesso em 14/04/2023 

7 https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/9e47ee51-f833-4a23-af98-2bac9e54e0b3/bfd717fa-f41c-d39f-0f4d-26f12c279f04?origin=1 . Acesso em 14/04/2023

8 Lei 11.445/2007. Art. 42. (...)§ 5º A transferência de serviços de um prestador para outro será condicionada, em qualquer hipótese, à indenização dos investimentos vinculados a bens reversíveis ainda não amortizados ou depreciados, nos termos da Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, facultado ao titular atribuir ao prestador que assumirá o serviço a responsabilidade por seu pagamento.          (Incluído pela Lei nº 14.026, de 2020). http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/L11445compilado.htm Acesso em 14/04/2023

9 https://crato.ce.gov.br/informa.php?id=2432 Acesso em 14/04/2023

10 https://www.gov.br/mdr/pt-br/noticias/concessao-dos-servicos-de-saneamento-integrado-garante-investimentos-de-r-49-milhoes-em-sao-simao-go Acesso em 14/04/2023

11 https://hubdeprojetos.bndes.gov.br/pt/projetos/Porto-Alegre-Saneamento-00001/378f5ea5-17a4-11eb-9b0d-0242ac11002b 

12 https://aesbe.org.br/novo/das-20-melhores-cidades-em-saneamento-17-sao-geridas-por-empresas-publicas/ Acesso em 14/04/2023

13 São José do Rio Preto (SEMAE), Uberlândia (DMAE) e Piracicaba (SEMAE). https://tratabrasil.org.br/wp-content/uploads/2023/03/Tabela-Resumo_Ranking-do-Saneamento-de-2023.pdf  Acesso em 14/04/2023

Mateus Rodrigues Casotti
Membro da Comissão de Saneamento da OAB Nacional e Coordenador Jurídico da CESAN (ES)

Ariana Garcia
Conselheira Federal e Presidente da Comissão de Saneamento da OAB Nacional e Procuradora Jurídica da Saneago (GO)

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