Os prejudicados pela prática de infrações à ordem econômica podem ingressar no Poder Judiciário para obter a reparação de danos concorrenciais contra os autores da infração (ARDCs).
O direito à reparação civil por danos concorrenciais é previsto no art. 47 da lei 12.529/11 (Lei de Defesa da Concorrência). Apesar da longa vigência desse dispositivo, as denominadas Ações Reparatórias por Danos de Cartel (ARDCs) só ganharam incentivos a partir da lei 14.470/22, publicada em 17 de novembro de 2022.
A delimitação do prazo prescricional para propositura das ARDCs é um dos pontos mais importantes da nova lei1, que definiu o lapso de 5 (cinco) anos (art. 46-A, § 1º). Esse prazo não correrá na pendência do inquérito ou do processo administrativo no âmbito do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE (art. 46-A, caput).
A prescrição tem início com a ciência inequívoca do ilícito (art. 46-A, § 1º), que a Lei considera ocorrida quando da publicação do julgamento final do processo administrativo no CADE (art. 46-A, § 2º).
A opção legislativa de desmembrar em dois os comandos normativos acima (os dois parágrafos do art. 46-A) abre discussão sobre a possível existência de outros eventos aptos a gerar ciência inequívoca e deflagrar o prazo prescricional. Essa interpretação harmoniza-se com as situações em que a decisão final do CADE não é condenatória2 ou com as demandas reparatórias que não se baseiam em decisão da autarquia3.
Quanto à aplicação intertemporal, a lei 14.470/22 não veicula regra de transição, ensejando potenciais controvérsias a respeito de sua aplicação no tempo.
Os casos em que a prescrição se esgotou antes da entrada em vigor da lei 14.470/22 não devem ser afetados. A proteção ao ato jurídico perfeito conduz à conclusão de que essas situações, consumadas durante a vigência da lei anterior, permanecerão por ela regidas.
Essa conclusão confere vigência ao princípio da irretroatividade das normas para proteção à segurança jurídica, impedindo que a lei 14.470/22 alcance fatos ocorridos antes da sua vigência4. Consequentemente, não se reabriria a oportunidade para propositura de ARDCs sob o atual prazo prescricional de cinco anos se o prazo prescricional trienal5 houver transcorrido, por exemplo, meses antes da entrada em vigor da nova lei.
As situações futuras, iniciadas após a vigência da lei nova e pendentes de conclusão, também não apresentam dificuldades de compreensão: a lei 14.470/22 é inequivocamente aplicável a esses casos, pois o nascimento e o término da pretensão são contemporâneos ao novo regime jurídico.
Os problemas de direito intertemporal surgem em relação às situações pendentes, pois envolvem casos iniciados antes da vigência da nova lei, ainda não concluídos e que sofrerão incidência da nova norma. A ausência de regra legal de transição entre o antigo e o novo regime prescricional exige atenta interpretação da lei 14.470/22.
Tratando-se de situação em que a lei nova aumenta o prazo de prescrição – como é o caso da lei 14.470/22 –, a doutrina aponta como critério para solução do conflito a aplicação do novo prazo prescricional à situação iniciada antes da vigência da nova lei, descontado o tempo decorrido na vigência do regime legal anterior6.
Assim entende Humberto Theodoro Júnior: “[n]ão se pode impor a continuidade da regência da lei anterior, porque o curso do prazo inacabado não corresponde a direito adquirido nem a situação jurídica consolidada. Enquanto não se aperfeiçoa a prescrição, a parte que dela irá se beneficiar tem apenas uma esperança ou uma simples expectativa, tanto que a mera quebra da inércia pelo credor tem a força de eliminar, por completo, o prazo transcorrido de forma incompleta. Deve, por isso, prevalecer a norma antiga sobre o que sucedeu durante a sua vigência, isto é, sobre o início do prazo e as vicissitudes de sua fluência como fatos impeditivos e suspensivos ocorridos antes do advento da lei inovadora”7.
No mesmo sentido é a lição de Maria Helena Diniz: “[a] nova lei sobre prazo prescricional aplica-se desde logo se o aumentar, embora deva ser computado o lapso temporal já decorrido na vigência da norma revogada. Se o encurtar, o novo prazo de prescrição começará a correr por inteiro a partir da lei revogadora. Se o prazo prescricional já se ultimou, a nova lei que o alterar não o atingirá (...)”8.
Tome-se como exemplo uma situação em que o prejudicado pela conduta anticompetitiva teve ciência inequívoca do ilícito em 16/11/2020. Segundo essa posição, a entrada em vigor da lei 14.470/22 em 16/11/22 implicará na inclusão dos 2 (dois) anos já consumados do prazo prescricional na contagem da prescrição quinquenal inaugurada pela nova Lei para propositura da ARDC. Neste caso hipotético, a pretensão prescreveria em 16/11/25.
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1 De acordo com a definição que se extraí do art. 189 do Código Civil, prescrição é a extinção da pretensão pelo decurso do tempo.
2 Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça decidiu no seguinte sentido: “(...) 9. Verificada a inexistência de decisão do CADE sobre a formação de cartel, o prazo prescricional é o estabelecido no art. 206, § 3º, V, do CC/2002 - três anos -, e o termo inicial de sua contagem é a data da ciência do fato danoso - no caso dos autos, o momento da celebração dos contratos. 10. Recurso especial não provido. (REsp n. 1.971.316/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. 25/10/2022, DJe de 14/12/2022).
3 As chamadas stand alone actions, em que inexiste decisão do CADE reconhecendo a existência de cartel. Essa possibilidade foi preservada pela nova Lei, que manteve a locução “independentemente do inquérito ou processo administrativo” na redação do art. 47, caput da Lei de Defesa da Concorrência.
4 Segundo o art. 5º, XXXVI da Constituição Federal e art. 6º, § 1º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, devem ser respeitados o “ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”.
5 Conforme art. 206, § 3º, V do Código Civil, que fundamenta a corrente jurisprudencial majoritária, anterior à nova Lei, pela aplicação do prazo prescricional de três anos.
6 AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 10ª Ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2018, p. 697.
7 JÚNIOR, Humberto Theodoro. Prescrição e Decadência. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 208.
8 DINIZ, Maria Helena, Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada, 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 203.