Migalhas de Peso

O "efeito mágico" da perícia psicológica nas ações de família

Quando o caso chega ao Juiz, e a autoridade judicial encaminha ao Setor Técnico, imediatamente surge um “efeito mágico”, tanto na expectativa como na realização dos procedimentos periciais.

9/5/2023

Olá colegas Migalheiros!

No artigo de hoje, eu trago uma observação que venho desenvolvendo há muito tempo como assistente técnica que acompanha os estudos psicossociais das ações das Varas de Família: a postura dos periciandos diante da simples expectativa ou do início dos agendamentos periciais para discussão de guarda, guarda compartilhada, alienação parental, etc.

Venho notando um uso distorcido e equivocado da lei da alienação parental (12.318/10), em que um dos genitores, para encobrir seus próprios comportamentos inapropriados (agressão, abuso sexual, negligência, desprezo, descaso, discriminação) contra o filho, manipula terceiros, principalmente o Judiciário, com um discurso vitimista de que “está sendo alvo de alienação parental”, atribuindo ao(à) outro(a) genitor(a) a “culpa” pelo desinteresse ou recusa do filho em estar com ele. Por vezes, ofensas recíprocas, desaforos recíprocos, difamações recíprocas permeiam a relação entre os genitores, e os filhos acabam participando involuntariamente dessa contenda, paralela ao litígio judicial.

Mas aí, quando o caso chega ao Juiz, e a autoridade judicial encaminha ao Setor Técnico, imediatamente surge um “efeito mágico”, tanto na expectativa como na realização dos procedimentos periciais: pais/mães negligentes, agressivos, violentos, discriminatórios, irônicos, etc., “de repente” se tornam carinhosos, pacientes, brincalhões, divertidos, atenciosos... fazem de tudo para não parecer aquele(a) genitor(a) inapropriado que vinha atuando até então. Tudo isso para manipular artificialmente o Setor Técnico, com o objetivo de atribuir ao(a) outro(a) genitor(a) a prática de alienação parental, como uma manobra inidônea para encobrir os seus próprios atos inapropriados.

Esse ato tem duas implicações: a primeira delas é o enquadre legal: a partir do momento que aquele(a) genitor(a) esteja atribuindo, indevidamente, “ato de alienação parental” ao(à) outro(a), para encobrir os seus próprios comportamentos indevidos, está ele(a) próprio(a) praticando ato de alienação parental, conforme inciso VI do art. 2º da lei: “VI - apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente;”. A segunda implicação desse ato é a intenção. Por que o(a) genitor(a) acusa o(a) outro(a) de “alienação parental”? Além da intenção de ludibriar o Judiciário para encobrir as suas próprias inadequações (ex.: abusador sexual que alega ter sido “vítima de alienação parental” para voltar a ver aquele filho para continuar abusando dele). Mas existe também um objetivo mais profundo: forçar a reversão da guarda, mediante alegações inverídicas (falsa acusação de alienação parental), para afastar o filho daquele(a) genitor(a) acusado de ter praticado alienação parental (quando esteja, na maioria das vezes, protegendo o filho dos comportamentos inapropriados daquele(a) genitor(a)), inclusive com intenção de afastá-lo do(a) genitor(a) originalmente guardião(ã). Ou seja, acaba consolidando a tipificação do ato de alienação parental elencado no referido inciso legal.

E, para isso, não há limites: mudança repentino e radical de comportamento, redução do discurso verbal violento, presentes e benefícios à criança/adolescência, mais atenção, disponibilização (primeiro, diziam que não tinham tempo para a criança, agora “arrumam” tempo!), na expectativa de realização dos estudos psicossociais técnicos encaminhados pelo Juízo. E, quando o estudo psicossocial finalmente acontece, encontramos outras limitações que também prejudicam e comprometem a qualidade do estudo psicossocial:

  1. Falta de qualificação dos psicólogos para avaliar corretamente os casos de alienação parental, e distinguir a verdadeira acusação da falsa, a auto-alienação parental (ou alienação parental autoinflingida, objeto de outro artigo meu anterior1), por manobras cerceadoras do Conselho Federal e alguns Conselhos Regionais de Psicologia que, por interesses alheios à proteção integral de crianças e adolescentes, insistem na revogação da lei da alienação parental e, por revanchismo imaturo e ilegal, emitem notas técnicas como a infame Nota Técnica 04/22, que impedem a atuação profissional dos psicólogos para dar visibilidade à alienação parental, o que poderia chamar a atenção das autoridades para que pudessem elaborar políticas públicas eficazes de orientação e psicoeducação das famílias;
  2. Ausência de instrumentos apropriados para se avaliar os casos de alienação parental: além dos profissionais nem sempre contarem com a colaboração do Judiciário para a aquisição de materiais e subsídios para cursos de qualificação, temos a própria falta de instrumentos específicos. Alguns instrumentos, como o SARP (Sistema de Avaliação do Relacionamento Parental (LAGO; BANDEIRA, 2015)) e o IEP (Inventário de Estilos Parentais (GOMIDE, 2016)), até se propõem a avaliar alguns aspectos, mas a avaliação da alienação parental propriamente dita acaba sendo muito mais dedutiva do que conclusiva – e não abrange a auto-alienação parental, a alienação parental beyond borders2, a falsa acusação de alienação parental, etc.
  3. Demora nos agendamentos: lapso de tempo entre o encaminhamento ao Setor Técnico e o início dos procedimentos periciais. Tenho estudos psicossociais agendados para 2024, 2025...
  4. Quando finalmente começam, temos uma precariedade de procedimentos: poucas entrevistas (por vezes uma só!) com cada uma das pessoas envolvidas, sessões que se limitam a uma hora de entrevista ou de observação lúdica, nem sempre chegam a ter sessões conjuntas entre cada um dos genitores com a criança e, se ocorrem, são um recorte precário da relação – em que aquele(a) genitor(a) “incorpora o personagem”, sob ”efeito mágico” da expectativa ou do início da perícia, manipulando os profissionais com um discurso articulado, respostas prontas, simulação de choro, dissimulação de transtornos para o psicólogo não perceber, atenuam as acusações contra o(a) outro(a) ou acusam o(a) outro(a) de serem os “culpados” pelo desinteresse ou recusa do filho em estar com ele(a), com objetivo de encobrir seus próprios comportamentos inapropriados – e, como os psicólogos ficam impedidos (por manobras ilegais e inidôneas do Conselho Federal de Psicologia, como a infame Nota Técnica 4/22) de apontar os atos de alienação parental daquele(a) genitor(a) que esteja de fato praticando os comportamentos violentos ou negligentes com o filho, e esteja distorcendo o sentido da lei da alienação parental para interesses ocultos, não conseguem dar a devida visibilidade à ocorrência da alienação parental (ou do uso distorcido e equivocado da lei). As consequências, para os filhos, são desastrosas.

Como evitar, ou até impedir, esse “efeito mágico” da perícia?

  1. Qualificando os profissionais para avaliar corretamente os atos de alienação parental, e instrumentalizando-os com os recursos próprios, inclusive incentivando o desenvolvimento científico com pesquisas quantitativas e qualitativas da sua incidência em Varas de Família, a fim de colaborar na elaboração de projetos de políticas públicas de orientação e psicoeducação familiar;
  2. Criando Comissões de Prerrogativas, nos Conselhos Federal e Regionais de Psicologia, formados por Especialistas das diferentes áreas, a fim de impedir elaboração de normas ilegais e ilegítimas que cerceiam a atuação profissional e permita o desenvolvimento científico e técnico em benefício da sociedade, como preconiza nosso Código de Ética (Resolução CFP 10/05);
  3. Aprimorando a lei da Alienação Parental (12.318/10), com a inclusão de uma Mediação Prévia, e outros recursos de orientação familiar, que impeçam o agravamento da alienação parental;
  4. Eficiência e celeridade dos procedimentos periciais: maior quantidade de profissionais, aprimoramento profissional, ampliação dos cadastros de peritos e auxiliares da justiça, respeito aos assistentes técnicos (que, muitas vezes, são os primeiros a apontar a ocorrência de alienação parental), e qualidade de procedimentos que permita uma compreensão ampla do contexto familiar, com diversidade de fontes. Assim teremos plena identificação dos discursos latentes (ocultos) por trás das falas “ensaiadas”, detecção da simulação (apresentação de sintomas inexistentes ou exagero de sintomas existentes) ou dissimulação (ocultação de sintomas existentes que podem prejudicar a imagem falsificada que a pessoa quer passar ao profissional) que podem desviar o entendimento do profissional para rumos temerários, contrários à proteção integral das crianças e adolescentes.
  5. Sanções rigorosas e eficazes aos que tentam ludibriar o Setor Técnico e o próprio Judiciário, inclusive com pena de multa (já que muita gente só “entende” quando “dói no bolso”) conforme especificidades do caso.

Espero ter contribuído com reflexões e observações relevantes, para o debate saudável.

Agradeço a atenção, e aguardo os colegas Migalheiros nos próximos artigos!

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1 SILVA, D.M.P. Avaliação psicojurídica da alienação parental: contextos e desafios. Migalhas. Ribeirão Preto, 10/01/2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/379716/avaliacao-psicojuridica-da-alienacao-parental-contextos-e-desafios.

2 SILVA, D.M.P. Alienação parental beyond borders, já ouviu falar? Migalhas. Ribeirão Preto, 20/09/2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/373819/alienacao-parental-beyond-borders-ja-ouviu-falar.

Denise Maria Perissini da Silva
Psicóloga clínica e jurídica. Coord. PG Psic. Jur UNISA e UNIFOR. Prof. SEWELL/SECRIM. Colab. Comissões OAB/SP e "Leis & L.etras" Autora livros Psic. Jurídica. Perissini Cursos e Treinamentos S/C.

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