Quando entrou abril de 2023, uma curiosidade se escondia no Mapa das Empresas do DREI – Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração. Segundo a atualização feita em 13/4/23, eram 71 sociedades em comandita por ações e 50 sociedades em comandita simples registradas no Brasil. Somos estudantes apaixonados pelo Direito Empresarial e, assim, assombrados por curiosidades que até podem ser rotuladas de mórbidas, vale dizer, doentias. Afinal, quem mais se importa com sociedades em comandita? Não é sintoma de uma doença dar atenção a esses números raquíticos? Somadas, são 121 corporações, ao passo que as sociedades limitadas totalizam 6.142.954; vale dizer: o número de comanditas (contratuais e estatutárias) corresponde a cerca de 0,002 do número de sociedades limitadas. Pois padecemos, com gosto, dessa moléstia que é a paixão pelo Direito das Empresas. Somos desses e lhe convidamos para um passeio jusempresarialista.
Antes de mais nada, ocorreu a criação de novas sociedades em comandita recentemente. A figura não está morta, senão pouco usada, como os suspensórios. Já em 2023, foi constituída uma Comandita Simples no Rio Grande do Sul. Mas vamos a um comparativo mais largo: há dois anos, abril de 2021, eram 69 comanditas por ações e 45 comandita simples. Portanto, em dois anos, houve um acréscimo de duas sociedade em comandita por ações e cinco sociedades em comandita simples. Ainda há pulso.
Os números, contudo, podem ser explorados de outra forma. Antes de mais nada, há 42% a mais de companhias em comandita do que sociedades contratuais em comandita (71 versus 50); e nisso há uma inversão em relação à universalidade das sociedades registradas: mais de 90% são contratuais (sociedade limitada): mais de seis milhões, relatamos acima. Se tomarmos o número de sociedades anônimas, 186.933, comparado com o número de sociedades limitadas, veremos que o volume de companhias corresponde a cerca de 3% do número de sociedades limitadas. Mais isso se explica facilmente: constituir sociedades limitadas é vício nacional: um cacoete de advogados, empresários e contadores. Há distorções conceituais assustadores. Tomadas sob uma perspectiva sociológica e econômica – isto é: considerando o que efetivamente se passa nas corporações – a esmagadora maiora das sociedades limitadas brasileiras funcionam como sociedades em nome coletivo, vivem segundo os parâmetros pensados para esse tipo, apenas se beneficiando do artigo 1.052 do Código Civil, ou seja, do limite de responsabilidade dos sócios ao valor das quotas que subscreveram.
Curiosamente, no exterior, vemos casos de utilização efetiva de sociedades em comandita, em destacado na Europa. A Alemanha, por exemplo, se vale de uma figura interessante, que é a GmbH & Co. KG (Kommanditgesellschaft), que se trata de sociedade em comandita que tem por sócio comanditado uma sociedade limitada. Na Itália, a sociedade em comandita por ações (Societá in accomandita per azioni - SAPA) também não encontrou muita força, mas existe um exemplo bem curioso de uma sociedade muito importante que foi constituída como sociedade limitada e posteriormente transformada em Comandita por Ações – a Giovanni Agnelli e C. S.a.p.a. que é uma sociedade holding de algumas atividades do fundador da FIAT.
A França tem um número expressivo de grandes corporações que estão estruturadas sob a forma de sociedade em comandita por ações. Por exemplo, a Michelin (Manufacture Francaise des Pneumatiques Michelin) e a Euro Disney S.C.A (société en commandite par actions). Uma das razões é o fato de que as legislações europeias estabelecem um valor mínimo de investimento (de capital social) para cada tipo societário e, no caso, é preciso investir menos para se constituir uma sociedade em comandita por ações do que uma sociedade anônima.
Mas há outra razão. Na França, o sócio comanditado não pode ser destituído da administração da sociedade em comandita pelos sócios comanditários. Noutras palavras, não apenas se faz uma distinção entre investidor(es) e administrador(es), não apenas se preserva o patrimônio pessoal dos acionistas não-administradores (que não tem responsabilidade subsidiária pelas obrigações sociais inadimplidas), como se garante uma estabilidade em favor do(s) acionista(s) que, expondo o seu patrimônio pessoal, toca a corporação. Em decorrência de tal previsão, a administração societária blinda-se de tomadas hostis (hostile takeover): por mais ações que sejam adquiridas no mercado, não se assumirá a condução dos negócios, salvo anuência do(s) acionista(s) comanditado. Assim, várias sociedades se organizam como sociedade em comandita por ações.
Uma ilustração ajudará a compreender o mecanismo. Em 2003, faleceu Jean-Luc Lagardère, fundador do Grupo Lagardère, um dos maiores conglomerados de edição do mundo (Hachette, Salvat etc.). Em seu lugar, assumiu o filho, Arnaud Lagardère. Houve várias tentativas de tomar o controle da companhia, mas todas malograram pelo fato de se tratar de uma sociedade em comandita por ações. Somente quando aceitou vender sua participação para a Vivendi SE (société européenne), o negócio se concretizou, havendo transformação para outro tipo societário: sociedade anônima.
Quer mais motivos para se dar mais atenção às sociedades em comandita? Que tal US$ 238 bilhões? Segundo a Forbes, essa seria a fortuna de Bernard Arnaud, presidente-executivo do grupo Louis Vuitton Moët Hennessy (LVMH), titular de várias empresas e marcas de luxo, a exemplo de Louis Vuitton, Christian Dior, Bvlgari, Tiffany, Fendi, Givenchy; são dezenas. Em dezembro de 2022, Arnaud assumiu a condição de sócio comanditado da Agache SCA, sociedade responsável pela marca Christian Dior e seus negócios. Ora, se o homem mais rico do mundo é um comanditado, temos um motivo (ou alguns bilhões de motivos) para ensinar aos alunos sobre sociedade em comandita. Aliás, não só os estudantes: o legislador brasileiro deveria cuidar melhor do instituto, dar-lhe atualidade, definir vantagens. A diversidade é uma riqueza; permite amoldar situações diversas, designadamente em face ao princípio da tipicidade societária.
Logo, é instituto que pode ser útil aos empreendedores, já na forma em que se encontra, mas ainda mais se o legislador nacional, como o estrangeiro, lhe atribuir algumas vantagens. O que não se pode é desprezar o tipo societário apenas por ser antigo ou atualmente em pouco uso no Brasil. Não é postura sábia. É ferramenta útil ao empreendedorismo, ainda que possa se tornar ainda mais cativante se for atualizada e agraciada de benefícios específicos. Também o empresário que atua individualmente, como pessoa natural, é figura clássica e, ainda assim, há mais de 14 milhões de inscritos (11,9 milhões são microempreendedores individuais – MEI); isso apesar da responsabilidade patrimonial direta e ilimitada.
Enquanto não aprendemos os méritos da diversidade, vamos de limitada em limitada em limitada e assim por diante: é mais fácil não pensar e simplesmente repetir o modelo. A quem serve a baixa tecnologia jurídica?