Migalhas de Peso

Opúscula resenha sobre a preciosa doutrina “Le fait de la création en droit d'auteur français”

A tradução das passagens que citei, tanto da obra resenhada quanto de outras mencionadas, foi realizada com o máximo de empenho a não tergiversar o seu significado. Qualquer incoerência de tradução que possa ser apontada é de minha responsabilidade

8/5/2023

Le fait de la création en droit d'auteur français: Étude de l'article L. 111-2 du Code de la propriété intellectuelle” é uma tese de doutorado1 fruto de pesquisa e arguição [soutenue] realizada pelo Professor Alexandre Portron – maître de conférences en droit privé na Universidade de Poitiers e membro do Centre d’Etudes et de Coopération Juridique Interdisciplinaire (CECOJI) – publicada como tomo da respeitadíssima coleção “Bibliothèque de droit privé”, do reputado e tradicional editorial Librairie générale de droit et de jurisprudence (LGDJ).

A obra, entre a introdução e a conclusão geral, é segmentada em duas partes [partie], com dois títulos [titre] cada e, respectivamente, dois capítulos [chapitre] cada, contando de maneira muito bem-organizada com as respectivas conclusões dos capítulos, dos títulos e das partes.2 A dimensão da bibliografia impressiona positivamente tanto pela especificidade quanto pela consistência.

No prefácio (p. V-VIII) elaborado pelo orientador [directeur de recherche] de tal trabalho, dentre outras descrições, há a de que o Art. L. 111-2 da lei francesa sobre propriedade intelectual [Code3 de la propriété intellectuelle] se revela como “o alfa e o ômega do direito de autor”. De bom tom é trazer aqui o enunciado normativo deste artigo (no original e em tradução livre, grifei):

Article L111-24:

L'oeuvre est réputée créée, indépendamment de toute divulgation publique, du seul fait de la réalisation, même inachevée, de la conception de l'auteur.

A obra considera-se criada, independentemente de qualquer divulgação pública, pelo simples fato da realização, mesmo que inacabada, da concepção do autor.

Tal artigo casa com parte do enunciado de seu artigo antecessor, que também se transcreve aqui (no original e em tradução livre, grifei):

Article L111-1:

L'auteur d'une oeuvre de l'esprit jouit sur cette oeuvre, du seul fait de sa création, d'un droit de propriété incorporelle exclusif et opposable à tous. [...].

O autor de uma obra do espírito goza, pelo simples fato da sua criação, de um direito de propriedade incorpóreo exclusivo e oponível a todos. [...]

Para além da ênfase dada pelo professor autor de que o trabalho é nutrido pela reflexão dos clássicos [Anciens] e, principalmente, das reflexões aristotélicas (p. 18), a divisão do trabalho em duas partes5 é justificada pelo seguinte:

“[...] o legislador não define a criação, mas limita-se a reputar o fato [se limite à en réputer le fait]. Recorre a uma presunção jurídica ao reputar o "fato [da] criação" por um segundo, o da "realização [...] da concepção do autor". Isso significa que a constatação da existênciade uma "obra do espírito" é uma "[...] consequência que a lei [...] extrai de um fato conhecido - aqui, a realização da concepção do autor - para um fato desconhecido - aqui, uma "obra do espírito" - cuja existência é tornada provável pelo primeiro [...]". É, portanto, por presunção jurídica que o Artigo L. 111-2 condiciona o reconhecimento do "fato [da] criação" à "realização" (Parte 2) de uma "concepção do autor" (Parte 1).”6 (p. 21, tradução livre, grifei)

Esclarecedora a abordagem do professor, através da observação de fontes [sources] jurídicas e extra-jurídicas, da passagem do uso pretérito da expressão “pensamento do autor” para a conformação posterior e atual da “concepção do autor” (em acepção subjetiva e objetiva), e como tal conformação está relacionada ao critério da originalidade e à interpretação do fato da criação.

Uma interessantíssima descrição, dentre muitas outras tão interessantes quanto, que bem revela o bom cuidado do autor ao trazer à baila a filosofia aristotélica (principalmente no que tange a teorização, pela metafísica, das causalidades) pode ser lida a seguir:

A “realização” é a segunda condição jurídica do “fato da criação”. É cumulativa com a condição de “concepção do autor”, a qual permite a manifestação externamente ao espírito [à l'extérieur de l'esprit] do “autor”. Essa exteriorização da “forma” fora do espírito [hors de l'esprit] (autêntica poiesis) é necessária para sua comunicação aos outros. Além disso, apenas a criação “em ato” [“en acte”] é apreendida [est saisie] pelo direito de autor (os elementos que permaneceram “em potência” [“en puissance”] não atingem a propriedade na ausência de “realização”). O direito apreende então o fruto do “fato da criação” através da noção de coisa à qual acrescenta um caráter incorpóreo (embora um entendimento tradicionalista da propriedade possa ter parecido por muito tempo incompatível com esta incorporiedade). Notamos que qualquer poiesis implica a intervenção de uma ou mais técnicas para obter a “forma sensível” que servirá de veículo para a “forma inteligível”. Articulada com a teoria das causalidades (particularmente, aqui, a “causa motriz”), a teoria da “ação voluntária” permite afirmar que é na “pretensão” [le “souhait”] que se descobre o fim dado à ação. A etiologia do “fato da criação” subordina assim a “causa motriz” à “causa final”, o que exige do agente um bom domínio dos meios [maîtrise du moyen] e uma adaptação da técnica utilizada ao resultado pretendido [résultat souhaité].” (p. 215, tradução livre)

Por mais que o autor sustente que a perspectiva comparada com outros sistemas civilistas sobre a temática reste na impossibilidade (provavelmente para restringir este percurso metodológico na elaboração do trabalho) devido ao fato de que outros ordenamentos não apresentam um enunciado normativo com a mesma dicção do L111-2 (p. 12)7, pessoalmente creio que a carga filosófico-conceitual que o autor aportou às suas argumentações, para além da comparatística, serve muito bem para o leitor aos estudos e meditações nacionais em sede de Filosofia do Direito e, sobremaneira, de Teoria Geral do Direito, a enriquecer profundamente a teorética brasileira destinada a disciplina jurídica do Direito da Propriedade Intelectual8.

______________

1 Confira theses.fr/2019POIT3021

2 Ao observar alguns índices de outras teses de doutorado publicadas na coleção, pareceu-me que esse estilo de divisão redacional é uma característica das teses francesas.

3 O ano de 2022 marca os 30 anos da unificação legislativa francesa dos institutos em um Code, a partir da Loi n. 92-597, de 1 de julho de 1992.

4 Na obra de comentários ao Código que tenho aqui em mãos (Sirinelli/Durrande/Latreille (orgs.). Code de la propriété intellectuelle: annoté & commenté. Paris: Dalloz, 2018, tradução livre), em relação a tal artigo, é brevemente comentado que “de acordo com esta disposição, um rascunho, um esboço [une ébauche, une esquisse, un brouillon – os dicionários que consultei apontam para uma situação de sinonímia (sentido aproximado) entre estas palavras], um trabalho preparatório etc., podem ser protegidos se ultrapassarem o âmbito das meras ideias e se a forma escolhida, mesmo que inacabada, já ostentar uma certa originalidade, uma pegada [empreinte] da personalidade do criador. É igualmente indiferente que a criação tenha sido divulgada ao público ou guardada em segredo (num diário [journal intime], por exemplo).”

5 As partes também justificam expressamente as divisões dos títulos que, por sua vez, justificam a dos capítulos, o que traz muita precisão ao discurso.

6 O autor cita em nota de rodapé desta passagem a obra sobre vocabulário jurídico, de Gérard Cornu, que apresenta dentre o espectro de significados da palavra “réputer”, a palavra “présumer”.

7 “Impossibilidade de uma abordagem comparativa com outros sistemas civilistas. No plano metodológico, verifica-se que o objeto do estudo escapa per se ao comparatismo jurídico. De fato, a grande maioria dos sistemas estrangeiros não se beneficia de uma regra equivalente ao Artigo L. 111-2 do Código Francês de Propriedade Intelectual. Esta situação encontra justificação na história do direito de autor, do qual a França foi um dos mais importantes arquitetos internacionais e porta-estandarte de um modelo singular cuja influência declinou após a Segunda Guerra Mundial.” (tradução livre)

8 Inclusive, bem aponta o advogado Karlo Fonseca Tinoco (doutor pelo celebrado CEIPI da Université de Strasbourg), referenciando Nuno Pires de Carvalho, que “o sistema adotado pelo legislador brasileiro reflete o regime construído pela jurisprudência e doutrina francesa da primeira metade do século XX” (O regime de invenções de empregados no direito brasileiro à prova dos tribunais. Revista dos Tribunais, v. 1021/2020, nota de rodapé 2), por mais que se possa levar em consideração que “hoje, a França, e em maior medida os países de tradição civilista, perderam a influência que um dia tiveram e não podem mais contar com ela para impor seu ponto de vista” (Obra resenhada, p. 18, tradução livre)

Otávio Henrique Baumgarten Arrabal
Graduando em Direito pela Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB).

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