Em 1997, antes de ingressar no STF, o que se deu em 2006, a Ministra Carmen Lúcia Antunes Antunes Rocha defendeu, em artigo publicado na RDA 209 (pág. 196), que a organização federativa brasileira não permitia que houvesse uma lei nacional sobre processo administrativo, vez que a “autonomia administrativa, que caracteriza o princípio federativo dominante da forma de estado adotada no Brasil, tem a sua afirmação rigorosa na garantia de um espaço próprio de cada entidade federada (Estados-membros, Distrito Federal e Municípios) para estruturar a sua organização e a sua forma de atuação, observados os princípios constitucionais1”.
A posição de Carmen Lúcia, longe de ser insular, era mais ou menos consensual na doutrina da época que, inclusive, além de rechaçar a possibilidade de uma lei nacional sobre o tema, também vedava a aplicação das leis federais aos entes subnacionais, conforme se pode ver das lições do Professor Andreas Krell que, no ano de 2004, afirmava categoricamente o seguinte: “segundo a ordem constitucional brasileira, leis de níveis federativos superiores não estão juridicamente autorizadas a dar ‘ordens administrativas’ aos órgãos dos entes estatais inferiores2”.
Entretanto, diferentemente da doutrina, nossos Tribunais Superiores passaram claramente a nacionalizar a lei 9.784/99, seja impondo a aplicação da lei Geral de Processo Administrativo Federal a outros entes, seja a utilizando como parâmetro interpretativo.
Veja, desde 2009 o STJ já possuía jurisprudência firmada no sentido de que: “na ausência de lei estadual específica, pode a administração estadual rever seus próprios atos no prazo decadencial previsto na lei Federal 9.784, de 1/2/993”.
10 anos depois, o STJ sumulou em seu enunciado 633 o seguinte entendimento: “a lei 9.784/99, especialmente no que diz respeito ao prazo decadencial para a revisão de atos administrativos no âmbito da Administração Pública federal, pode ser aplicada, de forma subsidiária, aos estados e municípios, se inexistente norma local e específica que regule a matéria”.
Perceba-se que a Súmula 633/STJ não encerrou a aplicação da lei 9.784/99 aos entes subnacionais apenas naquilo que for pertinente à questão do prazo decadencial para revisão dos atos administrativos, haja vista o uso da expressão “especialmente no que diz respeito”, restando claro o verdadeiro parâmetro nacional ao qual a lei Geral de Processo Administrativo Federal foi alçada.
Outro exemplo de nacionalização da lei 9.784/99, desta feita vindo do STF e não do STJ, pode ser extraído do que restou na ADI 6019, na qual o Supremo julgou procedente o pedido de declaração de inconstitucionalidade do art. 10, I, da lei 10.177/88, do Estado de São Paulo, que estabelece o prazo decadencial de 10 anos para anulação de atos administrativos reputados inválidos pela Administração Pública estadual sob o argumento de que “os demais estados da Federação aplicam, indistintamente, o prazo quinquenal para anulação de atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis aos administrados, seja por previsão em lei própria ou por aplicação analógica do art. 54 da lei 9.784/99”.
E para que não haja dúvida do grau de importância conferido à lei 9.784/99 pelo STF na ADI 6019, colha-se o seguinte trecho do voto relator: “o sistema deve fechar. Veio, no âmbito federal, a lei 9.784/99, a prever o período de 5 anos para anulação, por mão própria, de ato administrativo – artigo 54 da lei 9.784/99. Surge a irrazoabilidade no que se venha a compreender que as 27 unidades da Federação podem estipular prazo decadencial individualizado”.
Assim, tal qual o STJ, o STF também nacionalizou o alcance da lei 9.784/99.
Pois bem, os que rejeitam a nacionalização do processo administrativo federal invocam o necessário respeito à autonomia político-administrativa aos Estados-membros, Distrito Federal e Municípios prevista nos arts. 18, 25 e 29 da CF/88.
Por seu turno, analisando o RE 1.237.867/SP, no qual o STF fixou o Tema 1.097 da Repercussão Geral nos seguintes termos: “aos servidores públicos estaduais e municipais é aplicado, para todos os efeitos, o art. 98, § 2° e § 3°, da lei 8.112/90”, fica muito claro que a autonomia político-administrativa aos Estados-membros, Distrito Federal e Municípios (que, a exemplo das regras de processo administrativo também orienta as regras sobre o regime jurídico infraconstitucional dos agentes públicos) não foi empecilho para que o Supremo entendesse que: “por analogia, aplica-se aos servidores públicos estaduais e municipais que são pais ou cuidadores legais de pessoas com deficiência o direito à jornada de trabalho reduzida, sem necessidade de compensação de horário ou redução de vencimentos, nos moldes previstos para os servidores públicos federais na lei 8.112/90”.
De tal sorte, apesar de passível de críticas por alguns, a nacionalização do processo administrativo federal é um fenômeno inquestionável.
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1 Rocha, C. L. A. (1997). Princípios constitucionais do processo administrativo brasileiro. Revista de Direito Administrativo, 209, 189–222. https://doi.org/10.12660/rda.v209.1997.47051, acesso em 30/04/2023.
2 Krell, Andreas J., Discricionariedade administrativa e proteção ambiental: o controle dos conceitos jurídicos indeterminados e a competência dos órgãos ambientais, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2004, pág. 105.
3 RESP 200703082539 (10190120, Relator(a) Jorge Mussi, Órgão julgador: Quinta Turma, Fonte DJE data:03/08/2009)