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O Impacto do “PL das fake news” nos direitos autorais

Como as próprias justificativas do PL 2630/20 apontam, seu propósito inicial é estabelecer responsabilidades e regulamentar a atividade de provedores de redes sociais e de serviços mensagem privada, como resposta legislativa para a problemática das fake news, preocupação de extrema relevância na chamada “Era da Informação”.

9/5/2023

Tratar dos impactos do projeto de lei 2.630/20, chamado de “PL das fake news”, na matéria autoral pode causar estranhamento: afinal, como a regulação da atividade de divulgação de notícias poderia afetar obras autorais? Em uma resposta curta e direta, um assunto não diz respeito ao outro e é justamente essa uma das maiores críticas ao projeto de lei, conforme detalhado a seguir.

Como as próprias justificativas do PL 2630/20 apontam, seu propósito inicial é estabelecer responsabilidades e regulamentar a atividade de provedores de redes sociais e de serviços mensagem privada, como resposta legislativa para a problemática das fake news, preocupação de extrema relevância na chamada “Era da Informação”.

Apesar desta delimitação original de escopo, no desenrolar do processo legislativo, o Deputado Relator Orlando Silva propôs, em 27/4/23, texto substitutivo e nele introduziu questões de direitos autorais, bastante sensíveis para a classe artística, para abranger a disponibilização de obras autorais por provedores de aplicações ofertantes de conteúdo sob demanda – notadamente “streaming”. O projeto de lei assim modificado ganhou a simpatia, apoio e ampla divulgação por atores e artistas.

A combinação inusitada e descabida de dois temas de extrema relevância – sejam eles a circulação de informações e a devida remuneração da produção cultural – tornou ainda mais complexos e difíceis os debates sobre cada um, não contribuindo para o esclarecimento do público em geral sobre o que está ou não em jogo em cada caso.

Propomo-nos a tratar aqui de apenas um deles: o sistema de remuneração autoral nas plataformas de disponibilização de conteúdos audiovisuais.

Antes de detalhar o teor das normas autorais introduzidas no PL 2630/20, e até para compreender o cenário que ensejou sua inclusão, cabe contextualizar, brevemente, a dinâmica e as práticas do mercado audiovisual.

Atualmente, a estrutura de remuneração dos envolvidos na cadeia criativa adota o modelo chamado de “buyout” pelas plataformas de VOD (vídeo sob demanda). Tal regime equivale a uma aquisição total dos direitos do autor ou artista, mediante pagamento de remuneração fixa como contrapartida antecipada para todas as modalidades de utilização do direito adquirido, em quaisquer mídias, territórios e finalidades, válida por todo o prazo legal de proteção dos direitos adquiridos.

Esse modelo de remuneração passou a dominar a prática do mercado sobretudo após a pandemia do Covid-19. Antes disso, o cenário da indústria audiovisual, intensiva em capital, caracterizava-se pela predominância do financiamento público, por meio da ANCINE – Agência Nacional do Cinema. Com a mudança no cenário político, a partir de 2019 a ANCINE viu-se sem recursos, tanto pela significativa queda na abertura de novos editais para fomento de produções audiovisuais1, como pela suspensão de repasse de recursos públicos que já haviam sido aprovados2.

Sem o financiamento público e com o crescimento das plataformas de streaming de vídeo no Brasil, esses investimentos privados passaram a ser disputados como fôlego vital para a produção local. Como contrapartida, , todos os envolvidos na cadeia criativa  entraram na dinâmica de equilíbrio de financiamento privado: cessão total, definitiva e por todo o prazo legal, dos direitos patrimoniais, do ator para a produtora nacional e desta para a plataforma, com o pagamento de uma remuneração única e antecipada, entendida como a contrapartida adequada ao risco assumido pela plataforma com o custo da produção caso a obra não tenha sucesso.

Esse modelo é criticado por separar o criador de sua obra, tanto da perspectiva do sucesso comercial, quanto da criação ou contribuição de suas possíveis continuações.

Por outro lado, na defesa deste tipo de dinâmica, há quem sustente que o modelo adotado já funcionaria como uma contraprestação suficiente para cobrir os royalties futuros dos autores e artistas pela circulação da obra - uma espécie de lump sum.

Em que pese as justificativas dos players para o modelo do buyout, fato é que a classe artística tem se mobilizado, com razão, para conseguir um modelo de remuneração mais equitativo e é essa problemática que os dispositivos autorais introduzidos no PL 2.630/20 buscam equacionar.

Pois bem. Dentre as alterações, a mais significativa é a inclusão do capítulo VI, específico para regulamentar os direitos de autor e direitos conexos. No caput do art. 31, o projeto de lei determina que:

“Conteúdos protegidos por direitos de autor e direitos conexos (...) ensejarão remuneração a seus titulares pelos provedores (...) na forma de regulamentação pelo órgão competente, que disporá sobre os critérios, forma para aferição dos valores, negociação, resolução de conflitos, transparência e a valorização do conteúdo nacional, regional, local e independente.”

Neste primeiro trecho, além da necessidade de regulamentação futura, vale ressalvar que, pela formulação do texto, a alteração pleiteada pode não ser suficiente para pacificar a questão e atender adequadamente os anseios da classe artística. Isso porque os titulares de direitos autorais não necessariamente são os autores propriamente ditos das obras protegidas por direitos autorais. Deixando de lado a discussão sobre a cessão de direitos conexos (decorrente do art. 13 da lei 6.533/783), fato é que a lei 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais – “LDA”) admite a cessão total e definitiva dos direitos patrimoniais sobre a obra, por seu autor a qualquer terceiro (art. 49, caput, bem como incisos I e II da LDA4). Os autores são, via de regra, titulares originários, mas terceiros podem adquirir a titularidade dos direitos patrimoniais por meio de contratos de cessão, o que os tornaria, na prática, os finalmente contemplados por este dispositivo.

Nesse sentido, aplicando-se a dinâmica do buyout, em que autores e artistas cedem a totalidade de seus direitos decorrentes das suas contribuições para as obras, a proposta de um texto legal que impõe a remuneração dos titulares desses direitos não garante que tal remuneração seja efetivamente destinada à classe artística. Além disso, o que se tem atualmente não é a ausência de pagamento pela exibição das obras em plataformas digitais, como o texto substitutivo do PL sugere. O pagamento é feito. Porém, com o buyout, explicado acima, a remuneração total e paga no momento da cessão dos direitos já incluiria todas as exibições da obra, incluindo nas plataformas digitais, objeto do incômodo dos artistas e atores.

Outras disposições importantes foram incluídas nos parágrafos 1º a 7º do mesmo arti. 31 do PL, dentre as quais destacamos a “preferência” de que o direito de remuneração seja exercido por meio de associações de gestão coletiva de direitos autorais (previsão do § 2º), a exemplo do que já ocorre com o recolhimento e distribuição dos direitos de execução pública das obras musicais e fonogramas, de competência do ECAD – Escritório Central de Arrecadação e Distribuição.

Partindo do exemplo da indústria musical, a gestão coletiva de direitos autorais, citada acima, é um mecanismo que busca facilitar o licenciamento dos direitos autorais e conexos e garantir aos autores remuneração quando uma obra musical ou fonograma são usados em “locais de frequência coletiva” – o que inclui não apenas os meios tradicionais (espetáculos, eventos, cinemas, emissoras de rádio e televisão, bares, lojas) mas também as plataformas digitais de músicas. Isso significa que, ao invés de o titular dos direitos negociar o licenciamento de suas músicas com cada um dos interessados em executá-la, negociando os royalties devidos pelo uso e recolhendo diretamente os respectivos pagamentos, a entidade de gestão coletiva centraliza toda essa função. Assim, essas entidades passam a representar os titulares frente aos usuários das obras, simplificando toda a cadeia de recolhimento e distribuição dos pagamentos pelos direitos de execução pública da obra. É essa a dinâmica que se está propondo que seja adotada também para os demais tipos de conteúdo.

O contexto trazido acima deixa claro que existem razões legítimas que fundamentam as demandas por alterações nos modelos de remuneração aos autores e artistas. Ainda assim, em se tratando de uma pauta complexa, a forma de resolver a questão deveria ser precedida de discussões mais profundas e específicas, até para que os objetivos almejados sejam de fato alcançados.

O que se percebe, porém, como a própria Secretaria de Direitos Autorais e Intelectuais do Ministério da Cultura já manifestou, é que incluir disposições sobre direitos autorais no PL 2630/20 foi uma forma de aproveitar a oportunidade para regulamentar outros serviços digitais:

“O entendimento generalizado é de que depois desse PL vai se fechar durante um tempo aporta para se discutir questões regulatórias no ambiente digital.”5

Frente aos objetivos do PL 2630/20, o texto proposto para lidar com as demandas voltadas à remuneração de direitos autorais e conexos nos serviços digitais carece de discussões aprofundadas. Trazer a discussão sobre a remuneração da comunidade criativa para a seara dos direitos autorais, dentro de um diploma legal que visa solucionar o problema das fake news pode ser insuficiente e ainda deixar lacunas para lidar com uma pauta de tamanha complexidade.

Em meio a essas discussões, vale mencionar que a demanda por outro modelo de remuneração não é isolada no cenário brasileiro. Com uma abordagem diferente, sem buscar solução na via legislativa, no dia 2 de maio de 2023, o sindicato dos roteiristas americanos – WAG (Writers Guild of America) anunciou que o setor entrou em greve6, sendo uma de suas principais demandas aquela relacionada às compensações financeiras das plataformas de streaming.

_____________

1: https://www.camara.leg.br/noticias/694223-audiovisual-critica-atuacao-da-ancine-e-demora-do-governo-em-liberar-verbas-para-o-setor/ e https://www.nonada.com.br/2022/10/desmonte-da-ancine-coloca-em-risco-financiamento-publico-do-cinema-brasileiro/. Acessos em 03/05/2023.

2: https://www.brasildefato.com.br/2019/05/24/impasse-entre-tcu-e-ancine-paralisa-concessao-de-novos-incentivos-a-setor-audiovisual e https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/03/tcu-manda-ancine-suspender-verbas-publicas-para-o-audiovisual.shtml. Acessos em 03/05/2023.

3: O artigo 13 da Lei nº 6.533/1978, veda a cessão ou promessa de cessão de direitos autorais e conexos decorrentes da prestação de serviços profissionais, prevendo em seu parágrafo único que os direitos autorais e conexos dos profissionais serão devidos em decorrência de cada exibição da obra. Apesar de a LDA permitir expressamente a cessão de direitos autorais, o Judiciário vem reconhecendo a proibição da cessão dos direitos conexos, vez que a LDA não dispõe expressamente sobre a possibilidade de cessão destes direitos, além de ter reconhecido expressamente, nas suas disposições transitórias, por meio do artigo 115, a vigência da referida Lei nº 6.533/1978.

4: Os direitos de autor poderão ser total ou parcialmente transferidos a terceiros, por ele ou por seus sucessores, a título universal ou singular, pessoalmente ou por meio de representantes com poderes especiais, por meio de licenciamento, concessão, cessão ou por outros meios admitidos em Direito, obedecidas as seguintes limitações:

I - a transmissão total compreende todos os direitos de autor, salvo os de natureza moral e os expressamente excluídos por lei;

II - somente se admitirá transmissão total e definitiva dos direitos mediante estipulação contratual escrita;

5: Disponível em: https://www.jota.info/executivo/minc-propoe-regulacao-do-streaming-e-mudancas-na-lei-de-direitos-autorais-no-pl-2630-17042023. Acesso em 02/05/2023.

6: Disponível em https://www.hollywoodreporter.com/business/business-news/wga-writers-strike-moves-forward-contract-negotiations-1235404087/. Acesso em 03/05/2023.

Laetitia d'Hanens
Sócia do escritório Gusmão & Labrunie - Propriedade Intelectual.

Gabriela Lima Silva
Sócia do escritório Gusmão & Labrunie - Propriedade Intelectual.

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