Introdução
A lavagem de capitais pode ser conceituada como um processo de ocultação e dissimulação de bens, direitos ou valores ilícitos, provenientes de infração penal, executado com a finalidade de inseri-los na economia formal com aparência de licitude1.
Ocorre que, em virtude das inúmeras facilidades proporcionadas pela evolução de tecnologias de informação e comunicação, a execução do processo de lavagem de capitais tende a reunir um conjunto de características que tornam o combate ao referido delito um desafio global: globalização das atividades de lavagem de capitais; tendência ao profissionalismo de organizações criminosas especializadas em reciclagem de dinheiro; e complexidade de novos métodos empregados no processo de lavagem2.
Todas essas características tornam a identificação de operações suspeitas de lavagem de capitais uma árdua tarefa para as agências estatais responsáveis pelo combate ao referido delito.
Em decorrência desses desafios, as políticas de combate à lavagem de dinheiro prescrevem um conjunto de obrigações destinadas a entidades de direito privado – pessoas físicas ou jurídicas, que atuam em setores comumente utilizados como instrumentos para a lavagem de dinheiro –, criando uma rede de vigilância público-privada fundamental ao efetivo combate à lavagem de capitais3.
A vigilância privada e o efetivo combate à lavagem de capitais
Em regra, a estrutura de um sistema de combate à reciclagem de capitais é composta por: i) agentes responsáveis pela persecução criminal; ii) unidade de inteligência financeira; e iii) pessoas físicas e jurídicas obrigadas a comunicar operações suspeitas de lavagem de dinheiro.
Na governança planejada para o combate à lavagem de capitais, as informações fornecidas pelas pessoas obrigadas à unidade de inteligência financeira são cruciais para munir os órgãos responsáveis pela persecução criminal de elementos suficientes para dar início a investigações relativas ao cometimento de crime de lavagem de dinheiro, bem como para subsidiar investigações em curso.
Nessa configuração, a unidade de inteligência financeira pode atuar de duas formas, a depender do sentido do fluxo de informações. Por um lado, pode receber as informações encaminhadas pelos setores obrigados, analisá-las e, a depender do caso, encaminhar um relatório de inteligência financeira às autoridades responsáveis pela persecução criminal. Por outro, as autoridades responsáveis pela persecução criminal, durante procedimentos inquisitoriais de investigação, podem realizar consultas à unidade de inteligência financeira no intuito de verificar a existência de operações suspeitas de lavagem de dinheiro por determinado investigado.
Seja qualquer for o sentido do fluxo de informação, as comunicações de operações suspeitas de lavagem de dinheiro realizadas pelos setores obrigados são matéria-prima fundamental para um efetivo combate a operações de ocultação e dissimulação de bens, direitos e valores provenientes de infração penal.
Deveres de vigilância privada nas normas internacionais
A Convenção de Palermo aborda um conjunto de medidas para combater a lavagem de dinheiro4. Em seu art. 7.1, alínea ‘a’, estabelece que os Estados Parte deverão instituir um regime de regulamentação e controle sobre instituições – financeiras e não financeiras – susceptíveis de serem utilizadas por criminosos para a lavagem de capitais, no qual devem ser enfatizados requisitos relativos à identificação do cliente, ao registro de operações suspeitas e à comunicação de tais operações ao serviço de informação financeira responsável pela coleta, análise e difusão de informação relativa a eventuais atividades de lavagem de capitais.
De forma semelhante, o art. 14.1, alínea ‘a’, da Convenção de Mérida, estatui que cada Estado Parte deverá estabelecer um amplo regimento interno de supervisão e regulamentação de instituições financeiras e não financeiras, com o objetivo de exigir de tais entidades a apropriada identificação do cliente, do beneficiário final, o registro das operações dos clientes, bem como a denúncia de transações suspeitas à unidade de inteligência financeira5.
Deveres de vigilância privada na Lei de Lavagem de Capitais
Esse modelo colaborativo de enfrentamento à reciclagem de capitais, recomendado por normas internacionais6, acabou sendo incorporado ao ordenamento jurídico pátrio por meio da lei 9.613/98 (Lei de Lavagem de Capitais), reformada posteriormente pela lei 12.683/12, como bem pontuado por Pierpaolo Bottini quando observa que “[o] esforço conjunto dos países para desenvolver políticas de combate à lavagem de dinheiro impactou fortemente na produção legislativa de cada Estado, acarretando na criação de leis similares ou com institutos bastante parecidos, na esfera material e processual”7.
Alinhada, portanto, às diretrizes normativas internacionais, a Lei de Lavagem de Capitais elenca, em seu art. 9, uma série de pessoas obrigadas que devem se sujeitar a mecanismos de controle8. Dentre as pessoas obrigadas, encontram-se: instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil; entidades administradoras de mercados organizados e demais pessoas sujeitas à regulação da Comissão de Valores Mobiliários; pessoas vinculadas ao comércio de joias, pedras, metais preciosos, bens de luxo e de alto valor, à alienação ou aquisição de direitos de atletas e artistas; mineradores e produtores de pedras e metais preciosos que atuam na atividade de extração mineral; sociedades seguradoras e de capitalização, resseguradores, entidades abertas e fechadas de previdência complementar; profissionais e organizações contábeis; pessoas físicas e jurídicas prestadoras de serviços de economia e finanças; pessoas físicas e jurídicas que exerçam atividade de promoção imobiliária ou compra e venda de imóveis, em caráter permanente ou eventual, de forma principal ou acessória; comércio de antiguidades ou obras de arte de qualquer natureza; entre outros.
Tipos de obrigações impostas aos sujeitos obrigados
Da mesma forma como ocorre na Espanha9, e seguindo as recomendações de organismos internacionais10, as obrigações impostas pela Lei de Lavagem de Capitais aos sujeitos obrigados são basicamente de três tipos: i) aplicar medidas de diligência devida; ii) obrigações de informação ao órgão responsável pelo recebimento, análise e disseminação de relatórios de inteligência financeira; e iii) desenvolver medidas de controle interno, estruturadas a partir de uma análise de riscos que permita tanto a comunicação automática de operações realizadas em espécie como o encaminhamento de operações suspeitas decorrentes da aplicação de tipologias de risco elaboradas a partir das peculiaridades específicas do mercado no qual a entidade está inserida.
Medidas de devida diligência
Em relação às obrigações de identificação dos clientes a norma estabelece, em seu art. 10, I, que as pessoas obrigadas devem identificar seus clientes e manter os respectivos cadastros atualizados. Ademais, o diploma aponta ainda para a necessidade de as pessoas obrigadas manterem registro de todas as transações em moeda nacional ou estrangeira, bem como as operações realizadas em qualquer ativo passível de ser convertido em dinheiro, que ultrapassar limite fixado pela autoridade competente (art. 10, II).
Importante destacar que os cadastros de clientes e registros das operações devem ser conservados por um período mínimo de 5 (cinco) anos a partir do encerramento da conta ou da conclusão da transação. De toda forma, este prazo poderá ser ampliado pela autoridade competente responsável pela supervisão do mercado regulado11.
Da comunicação de operações financeiras
Comunicações relativas a operações suspeitas de lavagem de dinheiro, em regra12, podem ser classificadas como: comunicação sistemática e comunicação por indício. As comunicações sistemáticas ocorrem quando os sujeitos são obrigados a comunicar transações em espécie que ultrapassem determinado limite, estabelecido pelo órgão regulador competente. Por outro lado, as comunicações por indícios ocorrem após uma análise mais profunda relativa aos aspectos fáticos de determinada operação realizada por um determinado cliente da pessoa obrigada.
Ressalta-se que as autoridades competentes elaboram e disponibilizam a relação de operações que, por suas características, podem configurar risco de lavagem de dinheiro. No estabelecimento de tais tipologias, levam-se em consideração o perfil das partes envolvidas na transação, valores, forma de realização, instrumentos utilizados, e eventual falta de fundamento econômico da operação.
Políticas, procedimentos e controles internos
Ainda de acordo com a Lei de Lavagem de Capitais, as pessoas obrigadas devem adotar políticas, procedimentos e controles internos, compatíveis com seu porte e volume de operações, que lhes permitam atender as obrigações relativas à identificação de seus clientes, ao registro das operações realizadas e às comunicações de operações financeiras suspeitas, tanto sistemáticas como por indícios.
Nesse sentido, a estrutura de compliance das entidades obrigadas deve ser projetada levando-se em consideração seu porte e volume das operações, bem como os riscos de lavagem de dinheiro aos quais está exposta.
Da responsabilidade administrativa das pessoas obrigadas
No caso de descumprimento das obrigações relativas ao cadastro de clientes, à manutenção de registro de transações, ao não envio de comunicações de operações financeiras suspeitas e à não adoção de políticas, procedimentos e controles internos, as entidades obrigadas estão sujeitas a sanções administrativas que podem variar desde uma simples advertência, passando por aplicação de multa pecuniária, inabilitação temporária para o exercício do cargo de administrador das pessoas jurídicas obrigadas, até a cassação ou suspensão da autorização para o exercício de atividade, operação ou funcionamento.
No ponto, vale destacar que o processamento e o julgamento de casos de responsabilidade administrativa por eventual descumprimento dos deveres impostos às pessoas obrigadas ficarão a cargo do órgão ou da entidade fiscalizador(a) responsável por regular o mercado no qual atua a pessoa obrigada.
Observa-se, portanto, que a competência do Coaf para aplicação das sanções decorrentes dos processos administrativos sancionadores, instaurados para apurar suposto descumprimento das obrigações impostas aos setores obrigados, é exercida de forma subsidiária, por força do art. 14, § 1º, da Lei de Lavagem de Capitais.
Conclusão
A evolução e a crescente complexidade dos mecanismos de lavagem de dinheiro impõem a necessidade de uma atuação conjunta e orquestrada entre Poder Público e setor privado para um efetivo combate à lavagem de capitais.
Como as atividades suspeitas de reciclagem podem ser mais facilmente detectadas por pessoas físicas ou jurídicas que atuam em setores sensíveis a práticas de lavagem de capitais, as normas internacionais indicam que a governança relacionada ao combate ao referido delito deve ser estruturada de forma a obrigar o setor privado a aplicar medidas de identificação de clientes, de manutenção de registros de transações realizadas, de comunicação de operações suspeitas à unidade de inteligência financeira, bem como à estruturação de políticas, procedimentos e controles internos – compliance – para atuar na prevenção à lavagem de capitais.
Por outro lado, as informações fornecidas pelos setores obrigados à unidade de inteligência financeira permitem que tais dados recebam o devido tratamento e análises específicas. Além disso, eventualmente, tais informações são compiladas e disseminadas por meio de relatórios de inteligência financeira como subsídio para o desempenho das competências dos órgãos encarregados pela persecução criminal.
A possibilidade de responsabilização administrativa de pessoas obrigadas, em decorrência de eventual descumprimento de deveres de colaboração impostos às entidades privadas pelo diploma legal de combate à lavagem de capitais, pode fomentar o desenvolvimento de uma efetiva política de compliance dos setores obrigados, acarretando maior efetividade ao combate à lavagem de capitais.
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1 CORDERO, I. B. El delito de blanqueo de capitales. 4a edição ed. Cizur Menor, Navarra: Aranzadi, 2015. p.107; 206.
2 CORDERO, I. B. El delito de blanqueo de capitales. 4a edição ed. Cizur Menor, Navarra: Aranzadi, 2015. p.68-69.
3 BADARÓ, G. H.; BOTTINI, P. C. Lavagem De Dinheiro - Aspectos Penais e Processuais Penais. Nova Edição ed. [s.l.] Revista dos Tribunais, 2019. p. 37.
4 BRASIL. Decreto 5.015, de 12 de março de 2004 - Promulga a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5015.htm. Acesso em: 10 fev. 2022.
5 BRASIL. Decreto 5.687, de 31 de janeiro de 2006 - Promulga a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, adotada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de 2003 e assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/decreto/d5687.htm. Acesso em: 10 fev. 2022.
6 Para maiores informações consultar: Convenção de Palermo (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5015.htm); Convenção de Mérida (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/decreto/d5687.htm).
7 BADARÓ, G. H.; BOTTINI, P. C. Lavagem De Dinheiro - Aspectos Penais e Processuais Penais. Nova Edição ed. [s.l.] Revista dos Tribunais, 2019. p. 32.
8 BRASIL. Lei 9.613 de 3 de março de 1998 - Dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9613compilado.htm. Acesso em: 11 fev. 2022.
9 CORDERO, I. B. El delito de blanqueo de capitales. 4a edição ed. Cizur Menor, Navarra: Aranzadi, 2015. p.216.
10 Recomendações 10 e 11 do GAFI – Grupo de Ação Financeira Internacional. FATF. The FATF Recommendations. 2022. Disponível em: https://www.fatf-gafi.org/en/publications/Fatfrecommendations/Fatf-recommendations.html. Acesso em: 25 abr. 2023. p. 14-15.
11 As instruções referidas no art. 10 da Lei de Lavagem de Capitais, destinadas às pessoas mencionadas no art. 9º, serão expedidas pelo respectivo órgão supervisor do mercado regulado – Bacen, Susep, CVM etc. Somente nos casos em que não houver órgão próprio fiscalizador ou regulador, as referidas instruções serão expedidas pelo Coaf – Conselho de Controle de Atividades Financeiras, nos termos do art. 14, § 1º, da Lei de Lavagem de Capitais.
12 CORDERO, I. B. El delito de blanqueo de capitales. 4a edição ed. Cizur Menor, Navarra: Aranzadi, 2015. p.236; 238.
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BADARÓ, G. H.; BOTTINI, P. C. Lavagem De Dinheiro - Aspectos Penais e Processuais Penais. Nova Edição ed. [s.l.] Revista dos Tribunais, 2019.
BRASIL. Lei 9.613 de 3 de março de 1998 - Dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 11 fev. 2022.
______. Decreto 5.015, de 12 de março de 2004 - Promulga a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. Disponível em: . Acesso em: 10 fev. 2022.
______. Decreto 5.687, de 31 de janeiro de 2006 - Promulga a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, adotada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de 2003 e assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003. Disponível em: . Acesso em: 10 fev. 2022.
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FATF. The FATF Recommendations. 2022. Disponível em: . Acesso em: 25 abr. 2023. p. 14-15.